sábado, julho 26, 2014

dar no porco

A minha mãe olha pela janela do carro, admirada com tantas obras: túneis, estradas, viadutos, edifícios que ela nunca tinha visto, que nem sequer fazia ideia que existiam. O passeio teve o dom de lhe causar uma admiração rara. Depois suspirou. Suspirou um instante antes de ditar a sentença: "- Mesmo tinha de dar no porco"!
Dar no porco. Como é possível que esta expressão popular me tenha passado ao lado durante tantos anos? Dar no porco é dar errado. Dar no porco é dar para o torto.
É verdade que hoje em dia está tudo ao contrário, pois ora agora! Só depois de de ter vivido tantas coisas que deram no porco, aprendo este dito popular.
Lembro-me e comento que na Alemanha o porco está associado à sorte. Cada terra com seu uso.
Este passeio que tanta admiração causou à minha mãe deve ter já cerca de um ano. Se fosse hoje, mais admirada ainda ficaria. Cada vez mais porcos bailam por aqui e por ali, na nossa linda terra.

quarta-feira, julho 16, 2014

o iró

Sempre que passávamos junto ao Poço do Ti João Duarte, fazíamos silêncio. Queríamos ir mais depressa mas andávamos devagar, quase pé ante pé. O meu pai e a minha mãe diziam: nunca venham para aqui, nem se cheguem ao pé do poço porque ele tem um iró. Nós olhámos para o poço e não víamos nada. Mas eles insistiam que ele vivia no fundo, no meio do lameiro, ao pé da bucha do poço. O meu pai estendia o braço esquerdo, e com o braço direito tentava fazer a medida do iró: "Tem pr'aí um metro de comprido." A parte mais assustadora era quando nos explicavam que caso caíssemos dentro do poço seríamos, sem dúvida, comidas pelo iró.
Guardámos imenso respeito ao poço, junto ao qual tínhamos obrigatoriamente de passar quando às vezes, ao domingo, íamos às Fontes visitar os meus avós paternos. Eu perguntava sempre se era verdade que tinha lá um iró e eles diziam que sim e o meu pai voltava a calcular a medida do bicho. Mas a verdade é que eu duvidava. Duvidava até que existisse neste mundo algum animal chamado iró.
Pensava comigo mesma que os meus pais tinham inventado a história do iró para evitar que nos aproximássemos demasiado do poço e caíssemos lá dentro. Havia muitos poços para guardar a água de rega, mas aquele era enorme, era o maior das redondezas, e fazia fronteira com o caminho estreito, o perigo era maior. O iró, para mim, era uma espécie de "velho da saca", a figura usada para obrigar as crianças a se comportarem bem, a comerem, a se lavarem, a irem dormir à hora certa. Secretamente, achava que os meus pais tinham sido inteligentes ao inventarem semelhante figura só para nos protegerem do perigo que o poço representava.
Há pouco tempo lembrei-me da história do iró, confrontei os meus pais e, para meu espanto, havia de facto um iró no fundo do poço do Ti João Duarte, no meio do lameiro, perto da bucha do poço, que parecia uma cobra e devia ter à volta de um metro de comprimento. O iró é, afinal, uma enguia, uma espécie que eu julgava que nem sequer existia na ilha.

sexta-feira, setembro 27, 2013

ver amores



Fui ao mar para ver água
ao jardim para ver flores
à Igreja para ouvir missa
ao adro p'ra ver amores

Quadra popular recolhida no Sítio da Ribeira dos Pretetes, Caniço, no tempo em que o adro da igreja ainda era um lugar para ver amores. Tenho saudades desse tempo em que o mundo tinha o tamanho de um adro. Em que as pessoas trocavam olhares antes de entrarem e depois de saírem da missa. Em que um dia, depois de muitos domingos nesse jogo de trocarem olhares, talvez trocassem algumas palavras.
Saudades do tempo em que estava tudo à vista, em que as pessoas falavam com os olhos e com palavras ditas mesmo de verdade, palavras com som. Da simplicidade desse tempo em que ninguém sonhava que um dia existiriam computadores e aquilo a que chamamos redes sociais.Estamos enganados.
As verdadeiras redes sociais cabiam no adro de uma igreja.

terça-feira, julho 31, 2012

fura-se com uma agulha

- Vai lá ver!
O meu pai sorri, indicando o local onde improvisou, com a ajuda de um amigo, o curral para as cabras.
São três. Uma maior e duas mais pequenas.
- Aquela é filha, mas esta vê-se logo que não é!
Junto à estrutura improvisada, discute-se o possível parentesco entre os três animais, comparando cores e tamanhos.
- O que é que elas iam comer? Ardeu tudo...
O meu pai justifica assim aquela compra inesperada, mas eu sei que mesmo que o dono das cabras não tivesse ficado sem nada que lhes deitasse, mais tarde ou mais cedo ele arranjaria maneira de arranjar uma cabrinha para comer silvados à volta de casa.
Está-lhe no sangue. O porquinho, a cabrinha, as galinhas que já tivemos, os coelhos que já não temos.
Demoramos um pouco junto ao curral, saboreando a quietude do fim da tarde, e inventariando de memória os locais ali à volta onde ainda deve ser possível conseguir-lhes algum alimento.
- 'Tão magrinhas, vão engordar, garante o meu pai.
Um dos animais, em particular, está magríssimo. É só pele e osso.
Já no terreiro, quando o comento, aprendo com a sabedoria da minha mãe esta nova expressão popular: "Fura-se com uma agulha".
Ao que me é dado perceber, esta expressão, sinónimo de magreza, só é utilizada quando quando nos queremos referir a animais. Bem pensado.


quarta-feira, fevereiro 22, 2012

entromizado

" - Eu fiquei mesmo entromizado!"
Não me lembro de ter ouvido esta expressão durante a infância. Não me lembro de a ter ouvido nem da minha avó nem da minha mãe. Esta expressão veio ter comigo recentemente e de vez em quando dá um ar da sua graça, pela voz de alguns colegas de trabalho.
" - Fiquei entromizada!"
Explicam-me que entromizado é um sinónimo de impressionado, mas com algumas nuances. Utiliza-se perante uma atitude inesperada, algo que com que não contávamos, "mas mais no gozo".
Todos os dias fico entromizada com situações e atitudes que vejo à minha volta.

terça-feira, janeiro 24, 2012

o despacho de Dezembro

A meio da manhã começou a cair uma chuvinha miúda mas persistente. Retiro a roupa do estendal. Delicio-me com o cheiro a terra. Reparo nas folhas lavadas das plantas, brilhantes. Já era mais do que tempo, a chuva é tão necessária e tardava. Penso nisto e alegro-me com a benção que cai do céu.
Penso nisto tudo mas falha-me um pormenor importante, ressuscitado por uma conversa dos meus pais.
- "Hoje é o despacho de Dezembro". Então não é? Os meus pais olham para o céu cinzento e para a chuvinha miúda e têm a certeza de que é este o tempo que deverá caractarizar o mês de Dezembro deste ano. Mas quando começamos a descer para o Funchal, já não chove, apesar do cinzento do céu, coberto de núvens. - "Aqui não chove, mas no Norte deve estar a chover bem!" Não se sabe.
O que se sabe é que segundo a tradição popular os primeiros doze dias de Janeiro representam os requerimentos para o tempo respeitante a cada um dos meses do ano e os doze dias seguintes representam os despachos, ou seja o tempo que realmente deverá caracterizar cada um dos doze meses. Seguindo este raciocínio, o dia 24 de Janeiro é de facto o despacho de Dezembro.
Dezembro de 2012 deverá ser um mês de céu cinzento, com algum chuva miudinha, mas pouca, muito pouca para aquilo que deveria ser no primeiro mês do Inverno.

quarta-feira, janeiro 11, 2012

o balanço

Sinto ainda a alegria que senti no dia em que o meu avôlito nos fez um balanço no tronco da ameixeira de damasco que ficava por cima do terreiro, entre a porta da cozinha e o poço de lavar. Parecia mentira! Em alguns minutos apenas o meu avôlito fez-nos um balanço com uma corda muito grossa que foi buscar ao palheirinho.
Lembro-me de o ver a escolher bem o ramo adequado, não só o mais forte, mas também aquele que ficava no melhor lugar e tinha a altura ideal. Depois vi-o a tomar balanço, com o corpo inclinado para trás e em seguida para a frente e de repente a corda estava a voar sobre o ramo e no instante seguinte já estava cá em baixo. O meu avôlito amarrou-a bem, experimentou o peso, e disse que podíamos brincar no balanço.
O balanço ficava a meio do terreiro dos meus avôlitos. Uma de nós sentava-se, outra ia para trás e empurrava. Com mais força, mais, mais, até quase voarmos e tocarmos com uma ponta do pé num ramo da ameixeira branca. O cabelo voava. Sentíamos um frio na barriga. Era tão bom. - "Vamos se embalançar?" Não precisávamos de mais nada.
O balanço não se manteve ali por muito tempo, pelo menos na minha memória não foi muito longo o tempo desse balanço. Talvez estivesse a forçar demasiado o tronco da ameixeira, certo é que atrapalhava quem queria passar no terreiro. Durou pouco tempo esse balanço, mas foi o único que me ficou gravado na memória com esta nitidez.
Todos os nossos balanços foram semelhantes àquele, feitos com uma corda grossa atada ao tronco de uma árvore. Os balanços da minha mãe foram bem diferentes, pois nesse tempo eram as próprias crianças que os faziam, entrançando cascas de vime verde. Os balanços eram ainda mais preciosos para as crianças dessa geração porque só existiam em Junho, o mês dos balanços.
Em Fevereiro e Março era a altura de podar os vimes. Estes eram amarrados aos molhos e colocados de pé em poças de água junto às ribeiras, para rebentarem. Aos poucos, durante cerca de três meses, os vimes iam criando raízes e ficando com folhas. Depois de retirados da água, a base dos molhos era colocada sobre uma pedra e malhada com o malho. Era por aí, pela parte da casca que tinha ficado meio desfeito, que se começava a descascar o vime branco.
As crianças rodeavam os adultos eufóricas e iam recolhendo as cascas para os balanços. Basicamente faziam uma trança, com vários molhinhos de vimes, tendo o cuidado de ir acrescentando mais vime ao longo da trança, gradualmente para ficar bem seguro. Depois elas próprias procuravam um ramo e atiravam a trança ligando cuidadosamente as duas pontas, com outras cascas de vime.
Se eu só me lembro do balanço do terreiro dos meus avôlitos, já a memória admirável da minha mãe conseguiu guardar todos os balanços da sua infância. Um balanço que a Ti Filomena deixou fazer num ramo de nespereira que se estendia por cima da vereda que ia para as Eiras; um balanço no ramo do carvalheiro que ficava em cima do bardo e se estendia sobre o caminho ao pé da casa da Tia Carolina do Pinheirinho; um balanço na pereira que existia em casa do Ti Noé; um balanço na nespereira que havia à frente das casas da Turquia; um balanço em casa do Ti José Mirando, que acabou por ser mudado para outro local, abaixo do ribeiro.
- "Traz-me uma cartinha!" Era assim que as crianças pediam a quem se embalançava que tentasse agarrar, com as mãos ou com os pés, pequenas folhas de árvore, para provar o quão alto tinham conseguido ir.
Junho era o mês dos balanços, o mês em que se descascavam os vimes verdes. Quando os balanços começavam a secar, ainda tentavam salvá-los, metendo-os em água para amolecerem, mas mais tarde ou mais cedo acabavam-se os balanços. Até ao ano seguinte, na época dos vimes.
Ouço estas memórias e sinto beleza em tudo. Nos objectos, nos gestos, nas emoções e nas palavras. Fico contente por sempre ter usado a palavra balanço. A palavra baloiço foi uma novidade aprendida muito mais tarde e nunca me soou tão bem.

terça-feira, janeiro 10, 2012

ter um pai nosso nas coisas

Percorremos a casa com solenidade, guardando o silêncio a que parecem convidar-nos alguns espaços importantes. Admiramos a decoração, a limpeza extrema, o bom gosto.
Os donos da casa não disfarçam o orgulho. Aqui e ali comentam pormenores sobre a construção, sobre decisões que tomaram, escolhas difíceis, procuras complicadas ou até opções inicialmente erradas.
Reparamos nos tapassóis de madeira com dobradiças de ferro, admiramos o alpendre, experimentamos os sofás da sala. A dona da casa abre armários, explica a origem de alguns objectos, mostra o jogo de panelas, retira copos do aparador, abre panos e toalhas bordadas para melhor os admirarmos, chama a atenção para a poupança de espaço na cozinha.
Depois da agradável visita, a minha mãe vira-se para mim e exclama: "Ela tem um pai nosso nas coisas!" Foi esta a sua maneira de dizer que as coisas estavam todas extremamente organizadas, incrivelmente limpas, sem merecerem o mínimo reparo. Ter um pai nosso nas coisas é isto, é uma capacidade que algumas pessoas possuem e outras nunca conseguem alcançar, ainda que sejam católicas fervorosas e rezem o pai-nosso diariamente.

sábado, janeiro 07, 2012

nem fome nem frio

"Até à Festa não há fome nem frio!"
Respondem, com esta expressão, a uma queixa minha de que está muito frio, como ainda não tinha estado este Inverno. Já não é possível andar com roupas leves.
"Até à Festa não há fome nem frio!"
Explicam-me que o rigor do Inverno só começa realmente em Janeiro, altura em que chega a maior força do frio, e altura a partir da qual escasseiam os produtos da terra, frutos ou legumes.
Está mais frio do que antes, o ditado confirma-se.
Está frio mas não chove, como deve acontecer no Inverno. No meio de tantas anormalidades, até a chuva anda distraída e não vem no tempo certo.

terça-feira, janeiro 03, 2012

história da bicha fera

Os pequenos eram espertos e em vez de meterem o dedo na fechadura da caixa, metiam um rabo de lagartixa e conseguiam enganar a bruxa. Esta era a nossa parte preferida de uma das histórias que mais vezes ouvimos durante a infância, a história da Bicha Fera.
A cena do rabinho de lagartixa representava uma espécie de pausa ao meio da história, era a parte em que podíamos descontrair, a parte em que sorríamos e respirávamos fundo, pois todo o resto era assustador.
Sempre que a minha mãe contava a história da Bicha Fera, eu tinha esperança que ela dissesse que os dois pequenos se tinham perdido acidentalmente na floresta. Mas a minha mãe contava sempre a história tal como ela era, era assim mesmo nesse tempo.
Os dois pequenos protagonistas desta história comportavam-se mal. Por isso, a madrasta pediu ao pai deles que os abandonasse na floresta. O pai levou-os para a floresta com o pretexto de irem à lenha e quando lá chegaram sugeriu que eles fossem para um lado e ele para o outro, reunindo-se depois no ponto e partida.
Já carregados com dois molhinhos de lenha, os dois pequenos voltaram ao local combinado mas não viram o pai de ponta nenhuma. Esperaram mas ele não chegou. Então, começaram a chamar: "Traz, traz, quanta lenha meu pai faz! Truz, truz, quanta lenha meu pai fez!" Nesta parte, a minha mãe chamava várias vezes, imitando o eco da floresta.
A certa altura, eles lembraram-se de que tinham comido tremoços pelo caminho e decidiram seguir as cascas. Mas a certa altura já não havia mais cascas para seguir e eles continuavam perdidos e estava já a anoitecer. Foram andando, andando, andando, até que avistaram uma luzinha no escuro.
Andaram até chegarem junto a uma pequena casa, onde uma velha estava a fazer malassadas. A velha colocava as malassadas no parapeito da janela e os pequenos, esfomeados, iam-nas tirando sem que ela se apercebesse. A velha tinha um gato cego de um olho e pensando que o roubo era obra sua, ia dizendo: " Sape gato de olho torto, cego-te um e tiro-te o outro. Sape gato de olho torto, cego-te um e tiro-te o outro."
Até que decidiu ir à rua e encontrou os dois pequenos, que tratou muito bem e convidou para entrarem. Meteu-os na caixa do pão, uma caixa igual à que havia na cozinha dos meus avós e em todas as outras cozinhas de antigamente.
A velha ia alimentando as duas crianças pelo buraco da fechadura da caixa e de vez em quando queria saber se eles já estavam gordinhos. Mas os pequenos eram espertos e quando ela lhes pedia para meterem o dedo pela buraco da fechadura, eles metiam um rabinho de lagartixa que tinham na algibeira.
Era aqui que nós ríamos. Parávamos. Respirávamos. Que engraçado! Que bom eles terem levado a lagartixa na algibeira! Bem feito para a velha.
A velha começou a desconfiar por eles estarem sempre magrinhos, apesar de toda a comida que lhes dava e um dia decidiu abrir a caixa. Qual não foi o espanto quando os viu tão gordinhos! Então, disse aos pequenos para irem à lenha e deu-lhes um pão, uma garrafa de vinho e peixe, dizendo: "Vocês comem o pão e trazem o pão, comem o peixe e trazem o peixe, bebem o vinho e trazem o vinho."
Pelo caminho, os dois irmãos começaram a chorar por não saberem o que fazer em relação às coisas que tinham de comer e trazer ao mesmo tempo. Apareceu-lhes então Santo Antoninho, que era o padrinho de um deles, e recomendou-lhes que comessem o miolo do pão e levassem de volta a côdea, que comessem o peixe e levassem de volta as espinhas e que bebessem o vinho e levassem de volta a garrafa cheia de água. Disse-lhes ainda para não obedecerem à velha quando ela lhes dissesse para irem para a frente do forno bailar, que antes lhe pedissem para os ensinar. Os pequenos ficaram mais sossegados e pararam de chorar.
A velha ficou satisfeita com a solução encontrada pelos pequenos para as coisas que lhes tinha dado para levar e trazer e começou a aquecer o forno. Quando já estava quente, disse-lhe que fossem para a frente da porta do forno bailarem para se aquecerem, coitados, tinham vindo da serra e estavam gelados. Mas eles disseram-lhe que fosse ela primeiro para os ensinar como fazer, e assim que a mulher começou a bailar ao pé da porta do forno, pegaram na pá e empurraram-na para dentro do forno.
A mulher começou a arder e a gritar e saiu-lhe um cachorro pela boca que fugiu pela porta fora porque, afinal, ela era uma bruxa. Acabava assim a história da bicha fera, uma das histórias que mais vezes ouvi durante a infância e que nunca me tinha lembrado de contar à minha filha. Contei-lha um dia destes, fazendo pausas aqui e ali para me tentar lembrar - algumas partes tive de confirmar depois com a minha mãe.
Divertimo-nos a comparar a história de Hansel e Gretel dos livros infantis com esta versão madeirense e fizemos uma pausa para sorrir na parte em que o rabo de lagartixa metido pelo buraco da fechadura da caixa serve para aldrabar a velha. Estive tentada a começar dizendo que os dois pequenos se tinham perdido acidentalmente na floresta, mas acabei por fazer como a minha mãe fazia e contar a história tal como ela é.

quinta-feira, dezembro 15, 2011

tempo da cabra afanada

O pior tempo, porém, o pior tempo de todos, era o tempo "da cabra afanada".
- "Lembro-me de minha mãe apontar para baixo da Ribeira das Cales, em direcção à cidade", conta minha mãe, que só depois da nossa conversa anterior sobre particularidades meteorológicas, se lembra deste pormenor.
-"Não sei bem como era que eles diziam...Parecia-me tempo da cabra afanada."
Tempo muito rigoroso era esse tempo de sudoeste, com muita chuva, vento e nevoeiro.
"- Era um desabrigo!"

domingo, dezembro 04, 2011

Tempo de cima, tempo de baixo...

O tempo está de cima. O tempo está da serra. O tempo está do norte.
É por isso que está mais frio, mas chove muito pouco, apenas alguns chuviscos de vez em quando, e não há nevoeiro.
- "E verdade que está frio, mas este tempo é menos aborrecido do que o tempo de baixo", explica minha mãe.
Meu pai descreve o tempo de baixo: - "É um nevoeiro terrível, não se vê nada, e com muita chuva." Tempo de baixo. Tempo do Sul. Tempo do mar.
O Tempo da Ribeira das Cales também é muito aborrecido. A minha mãe recorda-se que a minha avó detestava esse tempo:"É muito desabrigado!" Esse tempo de oeste traz também um nevoeiro desgraçado e chuva forte.
O tempo de Machico é mais ou menos. O meu pai encolhe os ombros: "Não é muito mau. É parecido com o tempo de cima."
Em breves minutos estão descritos os tempos.
Hoje o tempo está de cima, da serra. Está frio, mas não chove nem há nevoeiro.

quinta-feira, dezembro 01, 2011

ainda vai ter Natal

Acontece, por vezes, demorarmos a estrear um peça de roupa, um utensílio de cozinha, ou outro objecto qualquer. Há coisas que ficam esquecidas sem percebermos bem porquê. Há peças que ficam à espera da ocasião ideal para serem usadas e quando nos damos de conta já passou muito tempo, afinal.
Pego numa dessas peças e espanto-me por a ter deixado de lado, esquecida. Já não me lembrava!
- "Ainda vai ter Natal", afirma prontamente a minha mãe.
Não conhecia a expressão "ter Natal" como sinónimo de "ser estreado".
A todos os outros, muitos, significados de Natal, junto-lhe este. Contente.
Os tempos são de crise mas o Natal expande-se em sentidos e significados.

quarta-feira, novembro 30, 2011

enxógalhar

Falta pouco para a Festa e pedem-me a receita do licor de maracujá. Confirmo as medidas com a minha mãe. Primeiro deita-se a polpa de cinquenta maracujás num litro de álcool. Quinze dias depois, faz-se uma calda com um litro e meio de água e dois quilos de açúcar e leva-se ao lume durante alguns minutos. Deixa-se arrefecer e junta-se o álcool onde os maracujás estiveram em infusão. Há quem opte por coar e há quem prefira deixar algumas sementes de maracujá no licor. Só falta um pormenor importante: "- Durante o tempo em que a polpa de maracujá fica no álcool, é preciso enxógalhar a garrafa todos os dias."
Enxógalhar é um pormenor que pode fazer toda a diferença. A palavra enxógalhar é de tal forma habitual que só por acaso me ocorreu tratar-se de uma palavra que não existe no dicionário. O dicionário diz que a palavra correcta é agitar, eu digo enxógalhar. Digo enxógalhar porque todos me perceberão melhor e também porque esta é uma daquelas palavras que têm o sabor, o cheiro e as cores da infância. A palavra enxógalhar pertence às pessoas simples que talvez saibam mais do que as pessoas que sabem coisas muito complicadas.

terça-feira, novembro 22, 2011

ficar com as calças na mão

- Fiquei com as calças na mão!
A primeira vez em que ouvi esta expressão era ainda criança.Talvez tivesse sido o meu pai, talvez o meu tio, talvez o meu avô. Um deles usou esta expressão numa conversa de pessoas grandes e suscitou a minha curiosidade
- Fiquei com as calças na mão!
Na altura em que ouvi esta expressão pela primeira vez, eu não sabia ainda nada sobre metáforas. As palavras tinham o sentido literal, apenas esse e mais nenhum. Foi por isso que eu imaginei o quadro, muito provável na época, de alguém que ia fazer as suas necessidades no meio de um pinhal, ou atrás das canas de uma fazenda, ou num poio mais afastado do caminho, e era surpreendido por outra pessoa que por ali andava, antes de ter tempo de voltar a compor-se.
- Fiquei com as calças na mão!
Era mesmo isso que acontecia por vezes. As pessoas trabalhavam no campo, faziam longos percursos a pé, e quando precisavam utilizavam um destes lugares, supostamente mais escondidos. Ora, como eram muitos os que procuravam lugares mais escondidos para o mesmo fim, nada mais normal do que muitos serem literalmente apanhados "com as calças na mão".
- Fiquei com as calças na mão!
Por ser uma possibilidade tão real e possível, e deveras embaraçosa, é que as pessoas a transformaram numa bela metáfora. Uma pessoa fica com as calças na mão quando é apanhada desprevenida, totalmente desprevenida. Quando é apanhada desprevenida e fica sem saber o que fazer, porque já foi apanhada de qualquer maneira.
São poucos os que não estão com as calças na mão!

quinta-feira, outubro 27, 2011

a discrição do padre

Talvez nos tenhamos cruzado na Rua dos Netos, no tempo em que a Rua dos Netos era a rua da rádio, a minha rua de todos os dias de trabalho. Talvez nos tenhamos cruzado mas a verdade é que não me lembro da figura de um padre que alguns recordam até hoje por causa da história que eu vou contar.
Contaram-me a história que eu vou contar a propósito de uma conversa que surgiu como as cerejas a partir de outra história que também aqui hei-de contar e que surgiu como as cerejas, a propósito de um simples um copo de vinho.
Pois bem.
Havia um padre que passava muito na Rua dos Netos. Entrava sozinho no bar do senhor José, e pedia dois cálices de aguardente. Vendo-o sozinho, perguntavam-lhe: para quem é o segundo? Ele respondia que era para um colega, que vinha atrás, mesmo atrás, já devia estar quase a entrar.
O padre bebia de um único gole o seu cálice de aguardente. Depois dirigia-se até à porta, como quem procurasse o suposto colega, olhava para um lado, olhava para o outro e voltava para junto do balcão. Com um encolher de ombros, bebia o segundo cálice, enquanto explicava, fingindo surpresa, que o colega, afinal, não apareceu.
Ora bem.
Segundo a interpretação do colega que me contou esta história, guardada carinhosamente por entre as memórias do tempo em que a Rua dos Netos era a nossa Rua por ser a rua da rádio, o Padre com quem talvez eu também me tenha cruzado mas não me lembro, era um padre discreto. Não queria dar nas vistas, não queria parecer demasiado ávido por bebida, não queria ser criticado. O padre que bebia dois cálices de aguardente no bar do senhor José queria tanto passar despercebido que acabou ficando na história.

segunda-feira, outubro 10, 2011

uma frigideira mascarrando uma panela

Situações do dia-a-dia conduzem-me muitas vezes à recordação desta expressão, que na minha juventude ouvia da boca das pessoas mais velhas.
Esta expressão era utilizada com propriedade nos momentos em que alguém criticava outra pessoa, sem se aperceber que cometia os mesmos erros, aqueles que apontava, talvez até mais alguns, e quem sabe bem mais graves.
Antigamente tanto as panelas como as frigideiras andavam sempre mascarradas porque eram colocadas directamente sobre as pedras do lar, apanhando com o fogo da lenha praticamente em toda a superfície. Ora, uma frigideira tem menos superfície para mascarrar do que uma panela.
A expressão faz sentido e tem piada. O que eu gostava era que não se tivesse banalizado tanto o contexto em que encaixa como uma luva.

sexta-feira, outubro 07, 2011

cravos e rosas

O meu amor é um cravo
Foi o qu'o craveiro deu
Toda a gente tem inveja
Daquele cravo ser meu

Eu sou cravo, tu és rosa
Qual de nós se estima mais
Os cravos andam pelas janelas
E as rosas pelos quintais

Rosa que 'tás na roseira
deixa-te 'tar fechadinha
qu'eu vou lá fora e venho
Rosa tu vais seres minha

Não quero amor alto
Que não me caiba na porta
Quero um amor rasteirinho
Com'um craveiro na horta

Menina por ser bonita
não julgue que mais merece
quanto mais bonita é a rosa
mais depressa desvanece

Minha avó chama-se rosa
minha mãe Rosa Maria
Eu também me chamo Rosa
Minha mãe c'a rosaria

Daqui até à minha terra
é tudo caminho chão
é tudo cravos e rosas
plantados por minha mão

Muitas quadras populares, como estas que recolhi no Sítio da Ribeira dos Pretetes (Caniço) em 1986, mencionam estas duas flores tão comuns: cravos e rosas.
Normalmente, o povo utiliza a imagem do cravo para se referir aos rapazes e a da rosa para se referir às raparigas. Cravos e rosas nos jardins. Rapazes e raparigas nas eiras, nos adros das igrejas, nos bailaricos, nos afazeres diários, à distância exigida pelas convenções da época, mas nunca separados.

quinta-feira, outubro 06, 2011

dívidas e pecados

"Dívidas e pecados cada um paga por si."
A minha mãe utilizou esta sábia expressão, numa conversa simples que tivemos hoje à tarde.
Vim embora e trouxe-a comigo, presa ao ouvido.
Penso: é bem verdade. As minhas dívidas e os meus pecados, mais ninguém paga senão eu.
Penso: que máxima interessante. Se cada um pagar pelas suas dívidas e pelos seus pecados, tudo está certo no mundo.
Mas depois penso no mundo. Depois penso no mundo em ponto pequeno onde vivo e trabalho. Depois percebo que já não e bem assim. Depois entristeço-me. Porque até as máximas mais universais começam a perder actualidade.

domingo, outubro 02, 2011

de arrancar castanheiros

Para além da massa cortada grada, a sopa tinha de tudo e mais alguma coisa: nabo, semilha, batata, feijão, pimpinela, abóbora amarela, cebola, cenoura, vajinha, maçarocas, couve fechada, folhas de couve, inhame, e ainda abundantes bocados de carne de vaca com um pouco de gordura e talvez mais alguma coisa de que não me lembro.
O meu pai deixou a enxada a meio do poio, no local exacto onde cavara as últimas semilhas e onde deveria recomeçar a tarefa, sacudiu a terra das botas d'água, lavou as mãos no poço de lavar, entrou na cozinha, sentou-se à frente do prato fumegante, esfregou as mãos de contente e exclamou: - "Esta é de arrancar castanheiros."
Duas colheradas depois, voltou a gabar a sopa e a usar o dito dos castanheiros. Contive-me. Deixei passar mais um bocadinho, mas algumas colheradas depois lá estavam as minhas inevitáveis perguntas sobre a expressão "de arrancar castanheiros", às quais respondeu com bom humor. Graças a um prato de sopa à moda da minha mãe, fiquei a saber que os castanheiros são as árvores mais difíceis de arrancar. Por isso se diz dos pratos mais substanciais, daqueles que dão muita energia, que são "de arrancar castanheiros".

terça-feira, setembro 27, 2011

um maranho

O movimento da loja justifica três funcionários na caixa, em simultâneo. Uma funcionária regista os produtos e informa sobre o preço, outra funcionária dobra as peças de roupa, e um terceiro funcionário passa-lhe o saco para as guardar.
Repetem gestos mecanicamente, enquanto conversam.
Retiro o cartão multibanco, espero que me passem a máquina, confirmo o preço, escrevo o código, escuto a conversa.
- "É um maranho que nunca mais acaba!" resume o funcionário, encerrando o diálogo sobre o assunto do momento, o assunto de que todos falam e que a todos diz respeito: a dívida da Madeira. Um maranho!
O povo foi ao adjectivo emaranhado, que significa embaraçado, enredado, e decidiu encontrar-lhe um substantivo. E aqui está ele: um maranho. Tomara que não estivesse!

quinta-feira, agosto 18, 2011

bebé com cuspo na boca

- "Vejam, a menina tem cuspo na boca!" E até esse pequeno pormenor suscita graças e mimos, e exclamações e conversas dirigidas à bebé naquelas estranhas vozes que os adultos não resistem a fazer na presença de crianças de colo.
Olho com atenção para a bebé e reparo que na verdade tem um pouco de espuma na boca minúscula, onde parece formar-se uma muito mais minúscula bola transparente, tipo bolinha de sabão.
Aquilo que não passa de um pequeno pormenor, motivo de distracção para nós, ganha outra dimensão com a chegada da avó. A avó aproxima-se e de repente tudo está explicado: " - Coitadinha, tem comichão!"
Comichão. A avó é a única pessoa a saber que a bebé sente comichão, por causa desse pormenor a que ninguém tinha dado importância. "- Quando os bebés têm cuspo na boca é porque sentem comichão."
Este é um dos muitos atributos das avós: desvendarem os mistérios do mundo.

sábado, julho 09, 2011

pôr o soalho num prato

- "Ela põe o soalho num prato!" A frase é dita com admiração e por isso as palavras saem mais lentamente do que o normal. Cada palavra tem um contorno, um peso; a frase parece mais erudita do que é realmente, graças à forma solene como são pronunciadas as palavras. Para que fique bem claro o elogio.
Um "soalho num prato" é um soalho impecavelmente limpo. Tão limpo que cintila e faz pena pisá-lo. "Está num prato", exclama a mulher, voltando a admirar o trabalho de outras mãos. Há mãos assim, especiais. Mãos que fazem brilhar as coisas em que tocam. Mãos que conseguem pôr qualquer soalho num prato.
Mais tarde, a explicação que procuro: "Então não vês que está tão limpo como o fundo de um prato, pronto a se deitar o comer dentro? Até está luzindo!"

quarta-feira, junho 15, 2011

muito mal ouvisto

"- Ele é muito mal ouvisto!"
A senhora Maria Isabel dizia estas palavras de repreensão como se fossem palavras de carinho. Afagou o cão que acabava de acusar de ser mal ensinado, e reafirmou: "Ele é muito mal ouvisto." Depois, ainda com a mão afagando a cabeça do animal, perguntou: "É, não é?"
O cão só queria brincadeira e voltava a colocar as patas da frente sobre o colo das visitas, indiferente ao facto de a dona o ter apelidado de "mal ouvisto".
A cena deliciou-me tanto com a expressão que não ouvia há muito tempo. Mal ouvisto.
Quem é que nunca foi mal ouvisto?
Lembro-me de a minha mãe se queixar de eu ser mal ouvista quando na dolescência me pedia para eu fazer alguma tarefa doméstica, exactamente na hora em que estava no auge o episódio do Sandokan ou do Tarzan, na televisão acabada de ser instalada em casa. Ou quando me custava sair da cama para percorrer quase hora de caminho nos piores dias de Inverno, até chegar à escola. E quando. Quando tanta coisa. Cenas semelhantes às que vim a viver com a minha filha, apenas com a diferença dos nomes dos programas e dos canais de televisão, e do computador no lugar dos livros.
Nada mais normal do que as crianças e os adolescentes serem mal ouvistos, não em exagero mas na medida certa.
E os adultos? Também. Acho que os adultos podem e, em alguns casos, até devem ser mal ouvistos. O mais difícil é conseguirem sê-lo com os motivos certos, nos momentos certos e na medida certa.

segunda-feira, maio 23, 2011

Amigados


Na infância proibiram-me a palavra amigo. Uma palavra ondulante, bonita, que aprendera no livro da primeira classe, e que eu senti orgulho em usar pela primeira vez, quando anunciei que um amigo da escola ia lá a casa brincar connosco. Planeávamos fazer manteiga a partir do polén amarelo que saía da flor do pinheiro. Planeávamos procurar ninhos, planeávamos construir uma casa com ramos de acácia e muito mais.
A minha avó e a minha mãe disseram-nos que a palavra amigo não era uma palavra bonita. A pessoa que vinha brincar nessa tarde era, sim, um colega. A palavra colega não tinha problema nenhum e podíamos dizer as vezes que quiséssemos. Amigo, porém, era uma palavra proibida. Uma palavra má.
Matutei naquele episódio durante muito tempo sem chegar a qualquer conclusão. Apalavra era bonita, e ondulava quando se dizia, todas as palavras deviam ser assim, ondulantes. Então, porquê? Mas nesse tempo não se explicava nada às crianças. Era assim e acabou-se a conversa.
A memória desta proibição e a dor de ter sido privada de uma palavra tão bonita durante anos, tornou-se mais nítida quando, há poucos dias, ouvi uma conversa entre um casal de idosos. Conversavam e eu percebi que tentavam esclarecer quem era quem, não faço ideia a propósito de quê. Era uma daquelas conversas dos velhos - velhos também é uma palavra bonita - que, de repente, sentem necessidade de se localizarem num mapa. Lembram-se dos que já morreram, dos que enviuvaram, dos que embarcaram e voltaram, dos que nunca mais viram.
- Aquele que era amigado com a Filha de não sei quem, não sei de onde?
- Esse mesmo. Deixou a mulher e amigou-se com ela, quando arranjou aquele trabalhinho lá em cima.
Amigados. Eram amigados.
Lembro-me mais desta palavra, mas as pessoas também utilizavam amancebados como sinónimo de amigados. Os amigados eram aqueles que juntavam os trapinhos sem a bênção do casamento pela igreja. Eram casos tão raros que de imediato se tornavam no assunto do momento na freguesia inteira e até fora dela, e como pude comprovar, ainda hoje são óptimas formas de identificação de conhecidos e vizinhos de outros tempos.
Uma vez, ouvi numa conversa entre adultos: " O marido da Maria arranjou uma amiga para os lados do Funchal e agora nem sequer vem a casa." Foi talvez o primeiro caso do meu sítio. E presumo que seria ainda pior se fosse ao contrário: "A Maria arranjou um amigo".
Foi por isto que me roubaram uma palavra ondulante e bonita.
Mas. Aquilo que nos tiram, cresce sempre em nós com mais vigor. Hoje, a palavra amigo e a palavra amiga sãos dos maiores tesouros que carrego para todo o lado.

domingo, maio 22, 2011

alguém te perguntou?

Aguardava-se com solenidade a chegada do Espírito Santo. Com a casa cheirando a flores, a vinho e a bolo doce. Com as portas abertas à espera da visita. Com as coisas todas lavadas, com uma arrumação mais cuidada do que o habitual. Não havia foguetes mas a música de fôlego dava sinal do percurso e tonava o ambiente ainda mais festivo.
- Vou convidar este, aquele e mais outro...e tal, porque eles ajudam-me muito quando eu preciso, porque sempre me dão a mão, são meus amigos...
- Alguém te perguntou quantos anos tens?
A conversa pareceu-me tão a despropósito que fiquei sem saber o que dizer.
- Não sabias desta moda antiga?
Tantas coisas que ainda desconheço! Não, não sabia. Nunca tinha ouvido. O que é que a data dos anos tem a ver com aquilo que estava a ser dito?
- "Nada. Mas era isto que se dizia antigamente, quando alguém se dava à maçada de explicar algo que não lhe tinha sido perguntado."
E pelos vistos a resposta tanto podia ser desta forma interrogativa, como na afirmativa: "Ninguém te perguntou quantos anos tens." Ponto. Ou seja: ninguém está interessado nessas justificações, porque ninguém as pediu. Ponto.
Nesse tempo vivi-se e sentia-se tudo de forma mais simples. Se não fosse feio, eu teria inveja.

sábado, maio 21, 2011

sábado, domingo e segunda

Perante a indecisão do céu no início deste sábado, a esperança impôs-se, vitoriosa. Tudo por causa de um ditado.
A "- Dizem que não há sábados sem sol..."
B:"- Minha mãe sempre disse: não há sábado sem sol, não há domingo sem missa e não há segunda sem preguiça."
C:"- Eu cá sempre ouvi dizer que não há sábado sem sol, nem há noiva sem lençol..."
Eu conhecia apenas a versão do sábado com sol e da noiva com lençol e fiquei surpresa com este achado. Que engraçado!
Não há sábado sem sol, não há domingo sem missa, não há segunda-feira sem preguiça.
Esta versão, que alarga o ditado até à segunda-feira, coincidindo com a tradição do Dia dos Mestres, é dita em Santo António. A tão curta distância, no Caniço, o dito resume-se ao sábado, ou talvez seja aquilo que sobreviveu do mais completo.
O sol apareceu, naturalmente. Cumprindo a tradição. Caminhamos para a missa do domingo e depois para a preguiça da segunda-feira.
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domingo, maio 01, 2011

o dia dos mestres

Mais um dia e o Primeiro de Maio calharia este ano numa segunda-feira, o dia dos mestres.
Sempre ouvi dizer que a segunda-ferira é o dia dos mestres, mas confesso que ainda não percebi exactamente porquê.
Um colega de trabalho explicou-me que o dito estará relacionado com os trabalhadores da construção civil, que "passavam o fim de semana na venda, na bebedeira e, na segunda-feira ainda estavam de ressaca e trabalhavam muito pouco ou nada."
De acordo com esta versão, a segundo feira seria o dia dos mestres, pelo facto de estes passarem o dia praticamente na vadiação, sem render no trabalho. Assim sendo, tinham uma "folga extra" porque sabendo disso, as pessoas não gostavam de os contratar nesse dia.
Para a minha mãe, a interpretação é diferente e não está relacionada com os mestres da construção civil mas sim com os da obra de vimes, arte a que se dedicavam grande parte dos homens do sítio.
A segunda-feira, sendo o primeiro dia útil da semana, era o dia que os trabalhadores da obra de vimes dedicavam à preparação do material que usariam para os fundos, para as bandejas, os cestos e para todos os objectos que tinham de encomenda.
Chegavam à tenda mais tarde, por volta do meio-dia, e dedicavam-se a aguçar os vimes, colocando-os de seguida de molho no poço que havia para o efeito junto à tenda. No que ficava do dia, iam para casa descansar, às vezes depois de encetar o trabalho tapando uma bandeja. No dia seguinte começariam a sério.
Os mais malandros, tiravam mesmo o dia de folga: só quando chegavam, na terça-feira de manhã, é que ainda iam preparar os vimes e acabavam por só começavar a trabalhar na quarta-feira de manhã. Claro que aos sábados também era dia de trabalho.
No meu sítio, quase ninguém se dedicava à construção civil e esta explicação tem lógica. No sítio da pessoa que me deu a primeira explicação, não era costume fazer obra de vimes. Talvez haja tantas explicações quanto as freguesias ou localidades. Fico à espera de outras.

sábado, abril 02, 2011

puxar pelo focinho

- "Aquilo é que foi ela falar mais ainda. E c'uma brabeza!"
- "Deveras?"
- "Então não! Mas eu mesmo quando lhe disse aquilo era para lhe puxar pelo focinho."
O falar mais, e ainda por cima com brabeza, foi o resultado de algo que fora dito de propósito. Uma verdade que, surgida de repente, dita cara a cara, desmascarando, sem alaridos, a inveja e a mentira da outra parte, feriu e desatou ainda mais uma língua desde sempre habituada à maledicência.
- "Puxei-lhe pelo focinho, sim senhora", acrescentou sem conseguir esconder um sorriso de satisfação. Quando as pessoas não têm razão, ou calam-se ou exaltam-se para lá dos limites. Basta dizer-lhes, serenamente, uma pequena verdade. Sem acusar, sem gritar, sem nada disso. Pode ser uma simples pergunta que toque no lugar certo. Puxar pelo focinho. E depois ficar calmamente a ver a reacção.
Acabo de ouvir a expressão "puxar pelo focinho" e voltei a achar piada a este sinónimo de desafiar, espicaçar e, na minha terra, de "enfuguitar um bespreiro".
Ninguém reage bem a alguém que, mesmo na brincadeira, lhe puxe pelo nariz. Nem sequer as crianças e muito menos os adultos. Haverá reacção pela certa.
Não nos faltam ocasiões para "puxar pelo focinho" de alguém. Na maioria das vezes, porém, fico quieta. Prefiro gastar a energia em actos mais positivos e úteis.

sábado, março 05, 2011

Pensava que já tinha morrido!

Um grande sorriso iluminou-me o rosto quando, numa longa espera no centro de saúde, vejo quase a meu lado a senhora Maria José do Ti Germano. Ela sorriu também e trocámos palavras simples, porque as palavras complicadas são sempre dispensáveis.
Ela ficou espantada com o tamanho da minha menina e até disse que parecíamos irmãs e eu agradeci-lhe o elogio com outro sorriso.
Sentada numa cadeira do corredor, mesmo à entrada do gabinete para onde fazíamos fila, uma mulher olhava atentamente para a minha interlocutora. De repente, exclamou: - Não é a senhora Maria José de lá de cima, mãe do José, que trabalha nos carros do Caniço?
O senhora Maria José abanou a cabeça, exibindo outro dos seus simpáticos sorrisos.
- Sou sim senhora. Dele e de outros. Tenho mais filhos.
A mulher sentada, sem mais demora, continuou: - Ah, eu pensava que já tinha morrido. Ainda hoje quando fosse comprar o passe, tinha a ideia de perguntar ao seu filho se já tinha morrido.
A senhora Maria José não levou a mal e continuava sorrindo: - Quem já morreu foi o meu marido, já há mais de vinte anos.
E a outra, mesmo depois destas explicações, insistia: - Pois eu cá pensava que a senhora já tinha morrido!
Acho que a conversa ficou por aí. E mesmo que tenha continuado, eu já não ouvi mais nada porque chegou à minha vez.
Passei o resto do dia a pensar na naturalidade com que ali se falou da morte. Algo que só as pessoas sábias e antigas conseguem fazer. Antigamente, a morte era enfrentada de forma muito mais natural.
Lembro-me que os velórios dos bebés eram autênticas festas, onde as pessoas se divertiam durante toda a noite.
Lembro-me de a minha avó me ter levado pela mão, ainda bem pequena, a casa do Ti José Miranda, onde o homem estava deitado dentro do caixão, vestido com o seu melhor fato, meias negras com ar de novo, mas sem sapatos.
Lembro-me de ter sido levada pela mão a casa de uma amiga da minha avó, no Cabeço, onde ela tinha ido de visita com o bordado. A certa altura a mulher, idosa, abriu uma caixa de madeira e mostrou-lhe a roupa que tinha guardada para quando morresse. Mostrou a roupa cmo se mostrasse um tesouro. Era um longo vestido branco, como se fosse um vestido de noiva, porque essa senhora nunca tinha casado e merecia entrar no céu vestida de branco.
Tudo isto mostra como a morte era mais natural. Porque toda a gente acreditava em Deus e acreditava no céu.
Por isso é que as pessoas aceitavam a morte com serenidade, e preparavam-se para ela. É urgente voltar a acreditar para viver sem medo.

quinta-feira, fevereiro 10, 2011

Porco gabado

Sim, claro que sim. Trabalhos novos. Projectos interessantes. Novidades.
Automaticamente, preparo-me para estender o microfone. Vamos gravar? De que se trata exactamente? Quando se concretizarão essas ideias?
Quem? Como? Quando? Onde? Porquê?
Calma. Alto lá, diria o meu avolito.
Pausadamente, divertido, o meu interlocutor justifica o silêncio: - "Porco gabado não chega à Festa!"
Sem outra alternativa a não ser concordar, divirto-me também e registo a expressão mais certa do que muitas outras. E que é apenas uma maneira bem mais engraçada de dizer que o segredo é a alma do negócio ou talvez que não se deve contar com o ovo no cu da galinha. E o mau olhado? E a invejidade?
Porco gabado não chega à Festa. O melhor é apresentar o trabalho feito e deixar as palavras para depois.

segunda-feira, fevereiro 07, 2011

quem dá o que tem

- Mas não tinhas um?
- Tinha, mas dei. Na altura não pensei que viesse a precisar.
- Pois então, paciência! Nunca ouviste dizer: "Quem dá o que tem, a pedir vem"?
O objecto não interessa, porque podia ser um qualquer. O ditado é que tem piada e talvez venha a ser mais lembrado nesta altura de crise.
É claro que conhecia o dito antigo, mas sem nunca o ter levado muito a sério, talvez pelo meu feitio de não deitar fora coisas que supostamente e remotamente ainda me possam vir a ser úteis. Claro que a falta de espaço acaba por nos tornar mais flexíveis nestas questões. E claro que não é bom ter em casa coisas que não têm uso. E claro que fico contente quando posso oferecer algo que faça mais jeito a outrem num determinado momento. Nem se pensa mais nisso. Nem nada disso está em questão.
O que é para aqui chamado é este ditado antigo, que talvez volte a fazer sentido para muita gente em tempo de vacas magras: "Quem dá o que tem a pedir vem".

domingo, janeiro 30, 2011

alpardinha


Alpardinha é o meu momento preferido do dia. Alpardinha é o momento entre a tarde e o anoitecer em que todas as coisas adquirem uma cor misteriosa e um sossego sem nome. Há um silêncio que parece de espanto. Um silêncio que nos prepara para o descanso da noite mas que nos dá tempo para olharmos para trás e nos despedirmos de um dia que pode ter sido alegre, que pode ter sido triste, que pode ter sido tudo, que pode ter sido nada.
Tenho saudades de percorrer os caminhos da minha terra quando está alpardinha e se ouve aqui um barulho de água correndo numa levada, ali uma porta que se fecha, além um cão ladrando ao dono que chega a casa. Tenho saudades dos momentos entre a tarde e o anoitecer em que todas as coisas adquirem uma cor e um silencioso misteriosos.
Sempre associei alpardinha ao fim da tarde. Mas o meu pai também diz que está alpardinha quando o dia ainda se espreguiça. É alpardinha também esse momento de uma estranha cor, em que o sol ainda não saiu e a noite, preguiçosa, demora em retirar-se. Por uma questão de horários de trabalho, esta é agora a única alpardinha que posso apreciar. Olhá-la-ei com mais atenção. Apesar das saudades da verdadeira alpardinha. As saudades por vezes não nos deixam ver.

sábado, janeiro 01, 2011

Um povice

Gente, gente e mais gente. Na noite de São Silvestre todos os lugares pareciam ter gente a mais. Antes do fogo, durante o fogo, e depois do fogo. A caminho dos melhores locais para presenciar o espectáculo, nos restaurantes da cidade, nas ruas, nos locais com melhor visibilidade e depois, nas inúmeras festas para assinalar a passagem de ano.
Lembrei-me da palavra "povice", antigamente muito utilizada para referir aglomerados de pessoas para além do normal.
- Estava um povice!
Se estava! Mas valeu a pena.
Bom ano.

quinta-feira, dezembro 16, 2010

a consciência numa folha de vinha

A conversa girava à volta de uma pessoa de atitudes muito pouco honestas. Um caso daqui, um caso dacolá, e lá se ia compondo uma descrição nada abonatória. As expressões mostravam ora indignação, ora incredulidade, ora simples reprovação.
- "A consciência estava numa folha de vinha, passou uma cabra, comeu a folha de vinha, lá se foi a consciência."
O Quê? É isso mesmo. Esta expressão muito antiga, segundo percebi, é utilizada para reforçar a ideia da ausência de consciência, que se reflecte nas atitudes de uma pessoa em relação aos outros.
A conversa continuou, mas eu já tinha desligado. Pensava na imensa quantidade de folhas de vinha de repente comidas por um qualquer animal que passava. De contabilização impossível!

segunda-feira, novembro 29, 2010

requinquesta e recuesta

O meu avolito não nos acompanha no almoço do dia de Festa há muitos natais. Já não é necessário alguém segurar-lhe no copo para ele beber porque o meu avolito tremia das mãos desde que me lembro. O meu avolito já não é deste mundo e continua a ensinar-me coisas.
Ao quinto dia antes da Festa, o meu avô chamava requinquesta e ao quarto dia chamava recuesta. Seguiam-se a revéspera e a véspera de Festa.
O ensinamento do meu avô ficou bem guardado num cantinho da memória da minha mãe, e há dias, quando nos referíamos aos dias que antecedem o dia de Natal, ela revelou-os. Nunca os tinha ouvido em mais lado nenhum, e questiono-me se outros pessoas usariam as mesmas expressões, ou se ele as teria inventado.
Mas a que propósito o meu avolito inventaria duas palavras? O mais provável é que ele também as tivesse herdado dos seus antepassados. Seja qual o caso, aqui ficam registadas mais duas palavras e eu estou mais rica. Sinto-me afortunada com este tipo de heranças, mais do que se herdasse uma fortuna em bens materiais.

sábado, novembro 13, 2010

a restolhada das galatrixas

-"Ouvi uma restolhada em cima do zinco do telheiro. Afinal era as galatrixas!"
As galatrixas fizeram uma restolhada em cima do zinco do telheiro e conseguiram arrancar-nos algumas gargalhadas. A minha filha olhou para mim, depois olhou para o avô, depois para mim: " - Galatrixas? "
Rimo-nos todos e o avô continuou a falar das galatrixas, embora ela lhe explicasse que o nome correcto é lagartixas.
O nome galatrixa levou-me de volta à infância, era assim que ouvia chamar aos pequenos animais que os rapazes da escola conseguiam apanhar pela cabeça fazendo um laço na ponta de uma erva rija comprida. Depois deitavam atrás das raparigas para as assustar.
No campo, muita gente ainda diz galatrixa e não é difícil perceber porquê. Basta dizer as duas palavras para perceber que é muito mais fácil dizer galatrixa do que lagartixa. Este é um fenómeno que acontece também com outras palavras, dizia-se a forma mais fácil e pronto. Para quê complicar? O importante era que os outros percebessem do que se falava. Quem é que não entende o que é a restolhada das galatrixas?

sexta-feira, outubro 29, 2010

quando a maré deita....

Já agora. Já que estou aqui. Já que falamos sobre isto. Já agora.
- "Ora essa! Quando a maré deita, é que se aproveita!"
E foi assim que, sem estar à espera, fiquei a conhecer mais um ditado madeirense, ouvido na infância do meu interlocutor, nascido e criado no Porto da Cruz.
Quando a maré deita é que se aproveita: as oportunidades devem ser agarradas no momento em que aparecem. Não antes, não depois, mas no momento em que nos surgem à frente. Antes não é o momento certo e depois já o momento passou.
Parece fácil. Parece.
No entanto, nem sempre o ser humano consegue actuar com esta precisão. Enquanto pensa, indeciso, a oportunidade desaparece e normalmente não volta, pelo menos dos mesmos termos. Pior do que isso, muitas vezes não conseguimos reconhecer a oportunidade deitada pela maré. E se não reconhecemos a oportunidade, como aproveitá-la?
A primeira sabedoria é esta: reconhecer o que está à nossa frente.

sábado, outubro 16, 2010

trancas de ferro

-"Porta arrombada, trancas de ferro".
Ouvi no meu sítio esta versão do conhecido ditado "Casa arrombada, trancas à porta" e resolvi registar a particularidade. Não bastam as trancas à porta, é necessário uma tranca de ferro.
E isto não se aplica apenas às portas físicas, aplica-se também a outras portas, as mais importantes, que são as nossas portas emocionais.
Mas é pena! Porque as trancas de ferro são difíceis de destrancar, mesmo por dentro.

terça-feira, outubro 12, 2010

destrocar dinheiro na bandejinha da missa

Quando eu era criança e na minha paróquia a Igreja ainda era uma casa com dois quartos grandes no rés-do-chão, um para as mulheres e outro para os homens, havia uma mulher que tinha o estranho hábito de destrocar dinheiro na bandejinha das ofertas.
Durante o ofertório, alguém ia circulando entre os presentes com uma bandejinha de vimes e eu gostava de ouvir o tilintar das moedas por entre o côro das orações, quando alguém as atirava com mais força e de uma altura maior.
Quando a bandejinha chegava ao pé da tal senhora, em vez de atirar uma moeda de baixo valor, ela atirava uma maior, ou então uma nota de vinte escudos, daquelas que tinham a imagem do santo António de Lisboa, e começava a remexer em todo o dinheiro da bandeja retirando troco, de forma a que a sua oferenda fosse exactamente o valor que ela decidira.
Aquela operação demorava uma eternidade e ninguém se conseguia aperceber de quanto ela retirava realmente da bandejinha de vimes onde todas as outras pessoas tinham colocado o seu humilde contributo. De maneira que as pessoas suspeitavam - ou talvez não, talvez dissessem aquilo devido ao curioso da situação apenas - que ela talvez tirasse mais do que colocava. Quem sabe?
O meu olhar de criança fixava-se nas mãos da mulher escolhendo troco e eu não percebia. Se a bandejinha era para colocar dinheiro porque é que ela o retirava? Já no longo caminho de regresso a casa, a minha mãe explicava-nos a tal operação do destrocar.
Lembro-me sempre disto naquelas situações - que infelizmente não são poucas - em que por trocas e baldrocas a pessoa que supostamente está a dar, acaba ficando com mais do que aquilo que deu. Vejo alguém convocar toda a comunicação social para a entrega de um donativo e lá está, na minha memória, bem viva, a imagem da mulher que destrocava o dinheiro na bandejinha da igreja.

segunda-feira, outubro 11, 2010

uns peneirinhos

- "Estava uns peneirinhos!"
Esta desculpa foi usada para cancelar um compromisso, ou alterá-lo talvez, não tenho a certeza. Sei que os peneirinhos foram responsáveis pela mudança de planos de alguém que falava ao telefone junto à tabacaria, quando ali passei.
Deduzi que os peneirinhos eram nada mais nada menos do que a bezegaiazinha que caía nesse momento. Uma chuvinha muito fina, como se a chuva fosse peneirada algures no céu e à terra chegassem uns fiozinhos muito finos, tão finos que quase não molham.
Estamos no Outono e estas chuvinhas finas fazem parte da época. Nunca tinha ouvido serem chamadas de "peneirinhos", mas faz todo o sentido, então não!
Os peneirinhos deixam a paisagem lavada e brilhante. O Outono é bonito, escrevia eu no caderno de redacções, porque as folhas das árvores ficam com cores bonitas e caem no chão.
O frio ligeiro torna-se aconchegante porque apetece mais estar em casa com uma manta à volta dos joelhos e apetece mais tomar chá e até apetece bordar e apetece ler e parece que há mais tempo para falar com as pessoas. O tempo é uma ilusão, eu sei que o tempo é um fato à medida e por mim ele continuará a tornar-se maior no Outono, mesmo sendo os dias bem mais pequenos. Os peneirinhos têm de tornar-se em chuva a sério quando tiver de ser, é essa a lei da Natureza. Só espero que tudo aconteça com conta, peso e medida.



domingo, outubro 10, 2010

não dizer batatas duas vezes

- "Ele não diz batatas duas vezes. "
Este foi sem dúvida o dito mais engraçado que a minha memória registou nos últimos tempos.
É muito mais do que engraçado, chega a ser delicioso, e é utilizado para fazer referência às pessoas que tentam armar-se em mais do que aquilo que são.
A explicação é muito simples: uma pessoa que se quer fazer mais erudita do que na realidade é, tenta dizer batata em vez de semilha, partindo do pressuposto de que semilha é o termo do povo, usado pelas pessoas de menos instrução.
Mas quando as coisas são forjadas em vez de naturais, normalmente não correm bem. à segunda, sai semilha onde devia sair batata e entorna-se o caldo, melhor dizendo-se descobre-se o engano e o que sobressai é o ridículo da situação.
Nada como cada um ser aquilo que é. Mas quando a sociedade dá mais valor à aparência do que à essência, é muito difícil resistir à tentação de tentar parecer. É de tal forma difícil, que todos aqueles que dizem batata à primeira e semilha à segunda merecem a minha compreensão e solidariedade.

segunda-feira, setembro 27, 2010

pragas e prissões

Não acompanhei o início da conversa, mas a certa altura apercebi-me de que as duas mulheres falavam sobre pragas.
- "Minha mãe sempre dizia que pragas são como prissões". As coisas que a minha avó sabia!
- "Ora porquê? As prissões saem de um lugar, dão a volta e vão ter outra vez ao mesmo lugar." Imagino a procissão da padroeira, ao ritmo do hino da banda, mas logo me concentro no resto da explicação: - "Quem roga pragas, elas acabam por vir ter com a pessoa, como as prissões."
Na minha terra as pessoas mais antigas ainda dizem "prissão" em vez de procissão, penso que por uma questão de economia.
Nunca tinha ouvido este dito que compara as pragas às procissões, mas se a minha querida avó que Deus a tenha o dizia é porque deve ser verdade. A comprová-lo existem vários provérbios talvez mais modernos como "quem faz mal ao seu vizinho, o seu já vai pelo caminho" e aquele outro bem mais utilizado de "virar-se o feitiço contra o feiticeiro."

quinta-feira, setembro 02, 2010

fazer ramelas

Desde criança que ouço a expressão" fazer ramelas" como sinónimo de causar inveja. " - Está te fazendo ramelas?" era a forma corrente de perguntar: "- Estás invejoso?"
Não sei o que é que as ramelas têm a ver com a inveja, talvez o ponto de ligação seja o olhar, tal como na crença popular do "dar olhado"que é afinal uma forma de invejar, tão forte que acaba por causar mal à outra pessoa.
"Fazer ramelas" é uma inveja bem mais inocente e que até pode ser levada na brincadeira, pelo menos é essa a impressão que me ficou de todas as vezes que ouvi a expressão.
Às vezes digo quem me dera isto, quem me dera aquilo, gostava disto e daquilo, queria a, b, ou c. Mas pensando bem há bem poucas coisas que me façam ramelas. Talvez nenhuma. O ter faz na verdade pouco diferença; o SER é que faz a diferença toda.

terça-feira, agosto 31, 2010

o sustento e o ensino

- "Quem dá o sustento, dá o ensino".
Agarrei a frase no ar, fora de contexto, quando passava junto às duas mulheres que conversavam dentro de uma loja. Apercebi-me que falavam sobre uma criança. Provavalmente a propósito de alguma birra ou cena de má educação. Talvez a tivessem presenciado, quem sabe?Talvez eu a tenha perdido por instantes.
- "Quem dá o sustento, dá o ensino".
Agarrei no ar o antigo ditado que mantém uma actualidade indiscutível e decidi de imediato que merecia ser registado e metido pelos olhos dentro de muitos pais que hoje pensam que basta dar o sustento, e que o resto fica com os outros, não importa se é a televisão, o computador, a escola, os colegas, os avós ou sei lá que mais.
- "Quem dá o sustento, dá o ensino." Ensino no sentido de educação, de valores, de ideiais. As crianças não precisam de ter todos os jogos que same no mercado nem todos os últimos modelos de telemóveis nem as roupas de marca que entenderam. Sem isso vivem bem. Mas não vivem bem sem o ensino. Assusta-me ver tanta gente a pensar o contrário e a fazer o contrário do ditado que apanhei no ar, fora de contexto, quando passava junto a duas mulheres que conversavam dentro de uma loja.

domingo, agosto 29, 2010

nascer ao domingo

Segundo os antigos, o melhor dia para nascer era o domingo.
Quem nascesse ao domingo tinha assegurada uma espécie de protecção especial: nenhum mal ou bruxaria poderia afectar a pessoa ao longo da vida.
Não sei se isto é verdade.
Só sei que nasci num sábado, mais um bocadinho e estava lá.

terça-feira, agosto 24, 2010

rabalhusca

- "Ela estava toda rabalhusca!" Quando usava este termo a minha avolita não estava verdadeiramente a fazer uma critica, porque ela sempre achou piada às pessoas de modos bruscos. A minha avolita ria-se quando alguém lhe falava de forma rabalhusca. Em vez de se irritar quando lhe falavam com falta de delicadeza, era capaz de se perder numa longa gargalhada, que contagiava toda a gente. A minha querida avó era assim, e eu tenho pena de não ter herdado dela essa qualidade.
Os modos rabalhuscos, dependendo de onde vêm, e das circunstâncias em que acontecem, conseguem deixar-me ora triste, ora irritada, ora furiosa. Gostaria de conseguir fazer como a minha avó, de me rir muito e achar piada.
Porém ela já não está cá para me ensinar como se faz isso.

quinta-feira, agosto 19, 2010

quem fala sozinho

- "Desculpe, estou falando sozinha".
- "Tem dinheiro no banco!"
- "Como?"
-" Tem dinheiro no banco".
E eu sem perceber.
-"Então nunca ouvi este dito antigo? Já minha avó dizia: "Quem fala sozinho tem dinheiro no banco!"
Ao lado, outra pessoa confirma: "É verdade, sim senhora, minha avó dizia a mesma coisa. Não me diga que nunca tinha ouvido, e gosta tanta destas coisas!"
É verdade. Gosto destas coisas mas nunca tinha ouvido este dito, que engraçado! Porquê? Qual a relação entre falar sozinho e ter dinheiro no banco?
- "Olhe, também eu fazia essa pergunta a minha avó, mas ela nunca soube me responder. Era uma coisa que ela já ouvia dos pais dela..."
Talvez as pessoas que tinham mais posses tivessem tendência a falarem muito consigo mesmas, deitando contas à vida, fazendo as contas do dito dinheiro, enquanto as outras, sem posses nenhumas, iam vivendo o dia a dia sem contas para fazer. Quem sabe?

quarta-feira, agosto 18, 2010

Quem não poupa nem herda

Nestes seis anos de Rabo do Gato, tenho tido algum cuidado nas expressões que aqui coloco e reconheço ter feito alguma censura a frases mais brejeiras.
Hoje não resisto a registar um provérbio que ouvi recentemente e diz assim: "Quem não poupa nem herda, não tem senão merda." No tempo em que o ditado foi inventado talvez fosse verdade, mas hoje todos sabemos que não.
Poupar e herdar já não são as formas mais habituais de ter algo de seu. Bem pelo contrário: Quem mais tem normalmente nem herdou, nem poupou e muitas vezes nem trabalhou.
Eis um bom exemplo de evolução da língua e dos costumes, em que os sábios ditados de outros tempos ficam totalmente desactualizados.

terça-feira, agosto 17, 2010

O enjoo do fumo

-"Não se suporta o enjoo do fumo". Uma vizinha da senhora que olhava à volta e via tudo abrasado e do senhor que perdeu uma gavela de bicharada, falou no enjoo do fumo. Mais uma vez pego na palavra e anoto-a no canto da memória onde vou guardando material para o blogue. Continua-se a usar enjoo como sinónimo de mau cheiro, ou talvez não seja exactamente sinónimo. Acho que o enjoo é pior do que o mau cheiro.
Enjoo é um mal-estar normalmente com vómito, uma náusea, aquilo que muitas mulheres sentem durante o início da gravidez, aquilo que muitos sentem ao viajar de barco. Mas esse sentido só aprendi muito depois de ter aprendido o outro, o que a mulher do Ribeiro Serrão, ainda com a voz assustada, usou para se referir ao mau-cheiro. Na minha infância, enjoar era cheirar mal e não havia mais conversa. Enjoar também pode ser utilizado com sentido figurado, já ouvi e já usei. Por isso digo que não se suporta o enjoo do fumo nem se suporta o enjoo de tantas outras coisas, que não vale a pena aqui mencionar, para bom entendedor meia palavra basta.

segunda-feira, agosto 16, 2010

uma gavela de bicharada

No mesmo sítio, um dos vários que ficou todo abrasado, um homem disse com o mesmo desespero na voz e o mesmo choro na alma: "Perdi uma gavela de bicharada!"
Logo reparo em mais esta palavra da infância, a palavra gavela. A minha contava que quando ia ganhar dias na ceifa, nas chamuscas, fazia gavelas de trigo que mais tarde era debulhado na eira. Uma gavela é portanto uma mão-cheia, um punhado de espigas cortadas, amarrado com uma das palhas. Mas como acontece com muitas outras palavras, o sentido alarga-se a outras situações. Uma gavela passou a significar uma determinada quantidade, que não sei precisar e dependerá de quem utiliza a expressão. Uma gavela de bicharada serão quantos animais? Coitado o homem! Mesmo que fosse só um.
Maldito Lume!

domingo, agosto 15, 2010

Está tudo abrasado!

- "Está tudo abrasado!"
Sentia-se o desespero na voz da mulher que descrevia assim a paisagem à sua volta, depois de uma noite inteira a tentar salvar uma casa humilde das chamas.
-"Está tudo abrasado!"
Lembrei-me que na infância também usava a palavra "abrasado", em vez de queimado. Está correcta mas não sei proquê caiu em desuso.
Tocávamos numa coisa quente e dizíamos: - "Abrasei-me". O sol estava muito quente e dizíamos que estava abrasando.
Graças à mulher do Sítio do Ribeiro Serrão que descrevia assim o que via à sua volta, lembrei-me desta palavra-memória. Gosto de me lembrar. Mas não assim, por motivos tão negros. Preferia tê-la esquecido para sempre.

quarta-feira, agosto 11, 2010

O gófio da Ti Joaquina

A minha bisavó materna chamava-se Joaquina e sabia fazer gófio. Nunca provei essa estranha comida mas sinto que a saboreei muitas vezes, à boleia das memórias de infância da minha mãe. Todas as vezes que a minha mãe fala da sua avó materna chamada Joaquina, recorda o sabor desse antigo prato com um entusiasmo e com uma saudade tão intensos que dá gosto ouvi-la e dá gosto participar nessa viagem ao passado.
A minha bisavó Joaquina fazia gófio com centeio, que semeava, mondava, ceifava, malhava. Antes de levar ao moinho os grãos de centeio, a minha bisavó Joaquina que eu só conheço através destas memórias, torrava-os numa panela. Era por isso que a moleira ficava muito aborrecida quando a via chegar com o seu saco de centeio; as pedras do moinho ficavam sujas, que grande aborrecimento! Então a minha bisavó levava também um saquinho de trigo, para ser moido no final, assim as pedras do moinho ficavam tão limpas como estavam.
A farinha de centeio era deitada dentro de um alguidar, enquanto a minha bisavó fazia à parte, na panela de ferro colocada sobre o lar, um guisado com muita cebola, tomate, feijão e outros legumes, bem temperado como só ela sabia e mais ninguém.
Quando o guisado ficava pronto, deitava todo o conteúdo da panela para dentro do alguidar e amassava-o juntamente com o centeio, até ficar com a consistência ideal. Então, enquanto as crianças davam carreiras, entrando e saindo da cozinha e se acotovelavam à volta dela, aguardando o almoço, a Ti Joaquina fazia bolas redondas com a mistura do alguidar. Este prato é o que a minha mãe guarda como o mais saboroso de toda a sua infância.
Todos sabemos que os sabores da infância têm um sabor único apenas se não voltar a haver oportunidade de se repetirem. E felizmente foi o que aconteceu com o gófio, um prato que julgo não ser confeccionado há muito tempo na Madeira, pelo menos nunca o vi em lugar nenhum nem ouvi falar dele a não ser nestas memórias maternas.
O gófio deve ter sido trazido para a Madeira por influência das Canárias, onde também não o provei mas sei que é um prato tradicional e onde há cerca de 20 anos aprendi a seguinte quadra do folclore popular: "Isla de Fuerteventura/isla donde naci yo/isla de gofio e tarena/y de bon mojo picon."

terça-feira, agosto 10, 2010

Seis anos de Rabo do Gato

Basta que sim! O Rabo do Gato completa hoje seis anos. Os primeiros textos foram aqui colocados no dia 10 de Agosto de 2004. Actualmente tem cerca de 700 textos. São inúmeros, por vezes até eu me surpreendo, porque já não me lembrava de os ter escrito. Devido à extensão do blogue os textos não aparecem todos na página principal. Para aceder aos mais antigos basta clicar à direita em arquivo, no respectivo mês e ano.
Muitas pessoas me perguntam porque não publicar estes textos em livro. Porque não? Esse continua a ser um objectivo mas dá tempo. Então não! O mais importante é continuar a registar. A minha memória fervilha de palavras e de histórias e espero daqui a um ano estar novamente aqui a fazer referência ao aniversário do blogue. OBRIGADA A TODOS pela leitura e pelo incentivo.

terça-feira, maio 25, 2010

"O Rabo do Gato" no Colóquio "O Património Cultural Imaterial de Machico"

No próximo sábado, dia 29 de Maio, "O Rabo o Gato" será um dos temas do III Colóquio "O Património Cultural Imaterial de Machico", organizado pela ARCHAIS.
É algo a que não estou habituada e confesso que quando me fizeram o convite hesitei em aceitar. Acabei por aceder, sobretudo por respeito para com os leitores fieis deste blog, mas também porque das trocas de impressões ficamos sempre mais ricos e porque conhecendo este trabalho talvez outras pessoas se enstusiasmem e passem a registar mesmo aquilo que parece insignificante mas faz parte da nossa cultura tradicional.
Convido os leitores do "Rabo do Gato" a participarem. O colóquio engloba muitos outros temas e oradores e terá início às 9.00 no Fórum Machico.
As inscrições são gratuitas mas devem ser feitas para o telefone 291964118, do Solar do Ribeirinho.
Obrigada a todos.

segunda-feira, maio 10, 2010

uma inficância!

- "Fizeram logo uma inficância!" Ora se fizeram, e não era para menos! Havia motivos mais do que suficientes para se sentirem entusiasmadas e assim o demonstraram, fazendo uma inficância.
Conheço este termo desde criança e ainda há bem pouco tempo voltei a ouvi-lo no meu sítio. Fazer uma inficância é demonstrar grande entusiasmo perante algo. Mostrar-se contente, mostrar-se interessado, dar largas à sua satisfação.
Curiosa, apostada em tentar desvendar a origem desta expressão, perguntei a algumas pessoas de outras zonas se a conheciam e até agora ninguém me respondeu afirmativamente.
Talvez noutros locais a inficância tenha nome diferente, é o mais provável, ou talvez seja inficância também mas o termo esteja esquecido já. Não interessa.
O que interessa verdadeiramente é que haja sempre motivos para "fazer uma inficância", o nome que se lhe dá é o que menos conta.

sexta-feira, abril 30, 2010

o mocinho da cesta

Contemplávamos, embevecidos, uma ninhada de patos. Por entre a euforia das crianças, por entre as conversas e os risos, a minha mãe apontou para um dos patinhos amarelos, de penugem leve, e disse: "Olha, o mocinho da cesta!"
Segui-lhe o gesto e percebi logo. Um dos patinhos da ninhada era visivelmente mais pequeno e frágil do que todos os outros.
Segundo a explicação da minha mãe, entre os muitos filhos das famílias de antigamente havia sempre um mais pequeno e desajeitado do que os outros, a quem chamavam o moço da cesta. Talvez por ser aquele que, não tendo tanta força para o trabalho, acabava ficando com a incumbência de fazer os recados e de levar o comer ao pai e aos irmãos, por exemplo.
Ora, nada mais simples do que aplicar a um pequeno pato um dito originalmente usado para pessoas. Tal como ao contrário também não seria de espantar. Uma das muitas características interessantes do falar popular é precisamente esta elasticidade.

quinta-feira, abril 29, 2010

o estrapagado

No meu sítio as pessoas chamam estrapagado ao patagarro, uma ave marinha que antigamente passava junto às casas durante a noite, sobretudo em algumas épocas do ano.
A minha mãe conta que os estrapagados se ouviam em especial na altura em que as faveiras estavam em flor, e causavam logo o pânico no sítio.
O estrapagado tinha o dom de anunciar a morte.
Quando o ruído característico do estrapagado se ouvia numa qualquer noite sossegada, todos temiam o que estava para vir: "- Quem será que vai morrer?"
A minha mãe lembra-se muito bem de um estrapagado que certa noite pendeu a bater contra as janelas da enfermaria onde estava internada, na clínica ortopédica do Lazareto. No dia seguinte, sem nada o prever, sem mais nem menos, morreu uma senhora dessa enfermaria, por sinal aquela que mais se sentiu incomodada com a presença do bicho durante a noite.
Que terá acontecido aos estrapagados? Eu nunca ouvi nenhum, não sei sequer reconhecer o seu canto na noite. Mas de vez em quando, quando chega a sua vez, as pessoas morrem na mesma.

quarta-feira, abril 28, 2010

da mesma brónica

- "Elas são mais ou menos da mesma brónica." Explicaram-me assim as semelhanças entre duas mulheres. Semelhanças físicas mas muito gerais, como a idade, a altura, o peso, nada de muito particular.
Percebi a ideia mas não lhe consegui encontrar um sinónimo, uma única palavra que dissesse tudo isso. Este é um dos motivos pelo qual sobrevivem certas particularidades linguísticas, porque têm utilidade. Devido à sua precisão, poupam palavras e mais explicações. São palavras económicas.
Disseram-me: "Elas são da mesma brónica" e eu fiquei esclarecida, não precisei de perguntar mais nada, e a conversa seguiu o seu caminho.
Nem sempre temos esta a capacidade de usar as palavras: usamo-las em demasia e querendo dizer muito dizemos muito pouco ou não dizemos nada.

terça-feira, abril 27, 2010

...não azeda

Desculpando-me com o imenso trabalho que me esperava em casa, preparava-me para me despedir de uns vizinhos da casa da infância que encontrara por acaso, e com quem ficara um pouco a conversar.
O senhor exclamou, em tom paternal: "Ah, Não azeda!" A senhora, complementando a expressão do marido, disse: "Põe no frigorífico!"
Foi tão engraçado que não resisto a colocar aqui as duas expressões, cada uma remetendo para uma época diferente.
Lembro-me perfeitamente de não termos frigorífico em casa, e da atentação da minha mãe com a comida pois esta azedava facilmente, sobretudo nas épocas de mais calor. No Verão não valia a pena guardar nada de uma hora para a outra porque azedava.
Ora, o trabalho de casa não azeda. Há tanta coisa que pode ser deixada para mais tarde, simplesmente porque há coisas mais importantes. No caso em questão, que poderia ser mais importante do que aquela agradável troca de palavras com quem não falava há muito?
O senhor lembrou-se do dito antigo e a senhora acrescentou-lhe um toque de actualidade: "Põe no frigorífico!"
Que Deus nos dê a todos a sabedoria de perceber o que não azeda e o que pode ser colocado no frigorífico.

segunda-feira, abril 26, 2010

dar doces

Ouço sem querer uma conversa que acontece ao meu lado. Depois de enumerar uma série de exigências feitas pela pessoa de quem falavam, uma das mulheres exclama, rematando a descrição: - "Mas eu não lhe dei doces!"
O incómodo que sentia por estar a ouvir uma conversa alheia sem querer, dissipou-se com este achado inesperado. Ao tempo que eu não ouvia a expressão "dar doces"! E que bom foi ouvi-la assim, usada no contexto de uma conversa do dia-a-dia, viva.
Recordava-me mais da expressão na afirmativa, tornando-se a ironia perceptível através da entoação dada à frase. "Eu vou te dar doces" significa na verdade "eu não vou te aturar, não vou fazer as tuas vontades" e julgo ser equivalente à expressão "eu vou te dar troco!" já referenciada neste blogue.

quarta-feira, abril 21, 2010

amar e padecer

A conversa nada tinha a ver com amores. O assunto era política internacional e falava-se de alguém que enfrentava duras críticas, pouco tempo depois de ter assumido um importante cargo.
"Quem se põe a amar, põe-se a padecer." A sentença assentou que nem uma luva e aligeirou a conversa. Muito bem visto.
Quem ocupa um cargo de poder está sujeito a inúmeras e inevitáveis criticas, tal como quem ama está sujeito ao sofrimento.
São consequências previsíveis e que ninguém desconhece. Cartas na mesa. Nada na manga. Claro como água. No entanto, quase todos aspiram ao poder e todos sonham com o amor.

quarta-feira, março 24, 2010

uma semana à espera do sarampo

O sarampo atacou a casa dos meus avós e deixou quase toda a gente de cama. Quase. Enquanto os irmãos agonizavam com a febre e o mal-estar causado pela doença, o meu tio José Manuel continuava sem qualquer sintoma.
Acreditando que mais tarde ou mais cedo o sarampo havia de lhe pegar, o meu tio passou uma semana à espera da doença, alimentando a esperança de tomar leite de vaca como os outros. O leite de vaca, comprado ao leiteito que passava todos os dias de manhã pelas casas com as folhas e as medidas enfiadas num cajado, era um verdadeiro luxo, só permitido quando uma pessoa estava fragilizada por uma qualquer doença e precisava de cuidados suplementares na alimentação.
Os meus avós tinham uma cabra de leite, mas também tinham uma casa de gente, dez pessoas no total, o leite da cabra não chegava para todos e além do mais havia alturas em que a cabra não dava leite ou dava muito pouco.
Demasiado atento a qualquer sinal que pudesse indiciar a chegada do sarampo, o meu tio sentiu um dia uns ligeiros tremores de frio. Não fez mais nada: meteu-se na cama, satisfeito, e foi daí, de entre os lençóis e as mantas, que gritou para o leiteiro, quando o sentiu passar no terreiro, que deixasse mais um litro de leite.
Mas às vezes as pessoas têm azar e a verdade é que os tais tremores foram um falso alarme e o meu tio José Manuel nunca chegou a ter o sarampo nem pôde, pelo menos nessa altura, beber o precioso leite de vaca vendido pleo leiteiro de porta em porta.
Claro que esta história nunca foi esquecida. Durante muito tempo os meus outros tios e tias, e até os vizinhos, gozaram com o meu tio José Manuel graças a ela. E claro que a história passou a ser lembrada sempre que alguém se põe à espera de algo que muito provavlemente não vai acontecer, e espera por ela com tanto afinco como o do meu tio José Manuel, na sua longa espera de uma semana.

domingo, março 21, 2010

lagarto pintado

"-Lagarto pintado, quem te pintou..." Sinto saudades de ensinar este jogo a uma criança. As saudades bateram à porta de repente e sem explicação e fazem-me recuar a várias infâncias:
primeiro à minha, depois à da minha filha, depois à dos meus sobrinhos.
"Assim, segura com cuidado as minhas orelhas, estás a ver? assim como eu seguro as tuas." Sinto as mãos pequeninas segurando as minhas orelhas, um pouco trémulas da excitação provocada pela nova brincadeira.
É difícil começarmos o jogo porque nos rimos e de repente já não temos as mãos nas orelhas, no sítio certo para puxar quando for a altura certa. Agora. Os corpos balançam lentamente, ao ritmo da melodia, para trás e para a frente, enquanto os braços se encontram ao meio, cada uma agarrando as orelhas da outra:

Lagarto pintado
quem te pintou
foi uma velha
que por aqui passou

No tempo da eira
faz poeira
puxa lagarto
por esta orelha

Puxa, agora! Mas sem magoar. Mais. Puxa lagarto por esta orelha!
"- Mais uma vez, mais uma vez, vá lá." E eu cedo, depois de fingir que não, depois de dizer que já chega da brincadeira; cedo e ela volta a encaixar-se no meu colo, virada para mim, com as pernas para trás das minhas costas, em posição de puxar pelas orelhas. Rimos. Acertamos outra vez as mãos nas orelhas, sincronizadas e lá vamos: "Lagarto pintado, quem te pintou?..."

segunda-feira, março 15, 2010

Cura de Aranha ou Bicho

Entre as muitas curas de que as pessoas se socorriam para resolver os seus males existia a Cura de Aranha ou Bicho. Como no caso das outras, esta reza tem de ser repetida nove vezes, e deve ser feita sobre a pessoa que sofre do mal. Tem, no entanto, uma particularidade: durante a reza, a curandeira deve segurar num galho de pessegueiro de pêssegos (e não pessegueiro de cheiro), que vai cortando, enquanto recita os antigos dizeres.
As pessoas recorriam à cura de aranha, quando lhes surgiam erupções cutâneas de que não sabiam a origem, havendo a possibilidade de se tratar de mordidas de aranha ou de outro bicho.

"Nas horas de Deus e da Virgem Maria eu te curo de aranha, aranhão, safanhão, cancro ou de lapa, impinja carnal, impinja rabija e rabisca patarisca e toda a qualidade de bicho que tu és, eu te corto: os teus raios, as tuas veias, as tuas linhas, as tuas unhas, os teus dentes, os teus parentes, os teus netos, os teus bernetos, a tua cabeça, os teus pés, o teu bofe, o teu fígado, o teu coração e toda a tua geração e tu não cresças nem permaneças mais no teu corpo, (diz-se aqui o nome da pessoa que está a ser curada)."

Informador: José Isidro da Silva Nóbrega

domingo, março 14, 2010

a saia de fora

Nenhuma mulher se atrevia a sair à rua sem saia. A saia era uma peça de roupa obrigatória e vestia-se por dentro do vestido. O nome fino era combinação, mas no meu sítio não se usava o nome fino. Dizia-se saia e para a diferenciar da saia que se vestia por fora, chamava-se a esta última saia-de-vestido.
A saia de dentro devia ficar totalmente escondida pelo vestido ou pela saia-de-vestido, mas acontecia por vezes que uma ponta, normalmente de renda, sobrava na roda do vestido e ficava à vista de toda a gente. Dizia-se então que o marido, noivo ou namorado dessa mulher namorava outra.
Assim sendo, era preocupação de todas as mulheres que a saia ou combinação ficasse sempre mais curta, que esta nunca espreitasse pela beira do vestido. Elas olhavam por cima do ombro, pediam por vezes às irmãs ou amigas que confirmassem se estava tudo como deve ser. Claro que não era só pela superstição, era também porque a saia de fora do vestido dava a impressão de se tratar de uma pessoa mal arranjada.
As saias - combinações segundo o nome fino - foram abolidas definitivamente do guarda-roupa feminino há muitos anos e não me deixam grande pena. Nem sequer pelo seu poder de adivinhar uma traição, ao se tornarem visíveis por debaixo do vestido ou da saia-de-vestido.

sexta-feira, março 12, 2010

cair em graça ou ser engraçado?

- "Mais vale cair em graça do que ser engraçado". Desta vez eu própria atirei com a sentença aprendida na infância. E, surpreendentemente, a pessoa a quem disse o velho ditado não o conhecia. De maneira que fiquei com a dupla satisfação de utilizar uma expressão popular e de a ensinar a alguém.
Cair em graça é daquelas coisas que valem mais do que ouro. Cair em graça nada tem a ver com o facto de ser ou não ser engraçado, é algo que simplesmente acontece e normalmente beneficia alguém sem que as razões sejam muito claras para os outros. Cair em graça é um dos mistérios que sempre existirão quando em causa está o relacionamento entre as pessoas.
Há quem tenha jeito para cair em graça, e há quem não tenha jeito nenhum. Eu diria que cair em graça é uma espécie de segunda sorte. Uns caem, outros não caem e nesse equilíbrio de forças vai girando o mundo.

quinta-feira, março 11, 2010

a capruça do velho

"- Credo, Cruzes, Abrenunça
Olha um velho sem capruça"

A rima é uma dos aspectos mais importantes da nossa tradição oral e esta espécie de lengalenga que guardo da infância é uma prova de que à rima tudo se pode sacrificar.
"Credo, Cruzes Abrenuncia" é uma expressão usada para repelir o mal, para afastar o diabo. Aprendi a acrescentar-lhe mais um verso: "Olha um velho sem capruça." Qualquer expressão servia de pretexto para mais uma pequena lengalenga.
Roubou-se um "i" a "Abrenuncia" , que passou a rimar com capruça, uma forma deturpada de dizer carapuça.
Tenho a ideia de sempre ter ouvido dizerem capruça, e nunca a forma correcta da palavra: Carapuça. A troca de letras ou de sílabas é um fenómeno muito comum no falar popular. Há poucos dias, por exemplo, voltei a ouvir carmuça em vez de camurça. Carmuça é a forma popular de dizer camurça. A troca de lugar de uma simples letra torna a palavra mais fácil de dizer, disso não há qualquer dúvida.

quarta-feira, março 10, 2010

carotos ou caragas?

O poço ainda lá está, junto à vereda, mas há muito que não tem água. Sempre que passo junto ao poço do Ti'Lexandre sinto imensas saudades do coaxar dos carotos. Devia haver carotos em todos os poços, mas por um dos inexplicáveis mistérios de que são tecidas as memórias de cada um, é áquele poço que associo o característico coaxar, capaz de transmitir a qualquer paisagem uma serenidade quase sobrenatural.
No meu Sítio as rãs chamam-se carotos, nunca lhes conheci outro nome. A palavra rã, aprendida no livro da primeira classe numa qualquer lição, soou-me à coisa mais estrambólica do mundo. Porque raio haviam de chamar rãs aos carotos? Não tinha jeito nenhum, pensava eu com os meus botões no caminho de regresso da escola.
A palavra continuou a fazer parte dos livros, mais uma curiosidade das muitas que povoavam o mundo em descoberta. A ameaça revelou-se passageira porque em casa todos continuavam a dizer carotos, graças a Deus.
Há poucos anos, fiquei a saber que no centro do Caniço se chamam caragas às rãs. Fiquei tão surpreendida como a pessoa que me revelou esse facto, com a existência de dois nomes diferentes, com géneros diferentes, dentro da mesma freguesia, a uma distância de poucos quilómetros.
É um facto: na parte norte do Caniço, no Sítio da Ribeira dos Pretetes, as rãs são carotos. Nas partes mais baixas da freguesia, as rãs são caragas. Desconheço a origem de uma e de outra palavra e não tenho qualquer tipo de justificação para a diferença. Deixo-me apenas deslumbrar por esta riqueza linguística e sinto que todos os dias este trabalho que iniciei há quase seis anos ganha um novo sentido.

terça-feira, março 09, 2010

um pezinho de fora da algibeira

Foi a Ti Refininha dos Moinhos que ajudou a trazer ao mundo quase todos os dez filhos da minha avó materna. Digo quase todos porque no início parece que a parteira foi uma tal de Ti Carlota, que depois passou à história.
Ora, aos mais pequenos dizia-se que era a Ti Refininha (diminutivo de Rufina, pronunciado com um "e" no lugar do "u") quem trazia os bebés dentro da algibeira e disso estavam convenciadas todas as crianças. A Ti Refininha era a cegonha desses tempos!
Um dia, a Maria Lurdes da prima Ali encontrou-a algures no caminho e quando chegou a casa anunciou: "- Encontrei a Ti Refininha, que ia entregar um bebé. Eu vi um pezinho de fora de algibeira. " Acharam todos muita graça e nunca mais se esqueceram da história.
Passando de boca em boca no Sítio, a história do pezinho de fora da algibeira acabou por adquirir um estatuto de ditado, adequado à situação em que as pessoas julgam ter visto algo que na verdade não viram.
Foi assim que o ditado e a história vieram à baila, quando recentemente se comentava num serão familiar os muitos boatos que surgiram logo após o temporal. Eu dizia que muitas pessoas falavam de factos que não se conseguiam comprovar, com base em algo que tinham ouvido dizer a alguém que por também tinha ouvido de alguém. Teria alguém realmente visto?
De um canto da mesa, quebrando um súbito silêncio, a minha mãe contou a história da Maria Lurdes da Prima Ali e do pezinho que jurara ver de fora da algibeira da Ti Refininha. Uma história deliciosa, que vem enriquecer este blog.

segunda-feira, março 08, 2010

mal empregado

Este é o exemplo de uma expressão que pode ter dois sentidos totalmente diferentes, dependendo da intenção com que é dita. O sentido torna-se claro se tivermos atenção ao contexto e sobretudo à entoação da voz.
Num primeiro sentido, mal-empregado é um lamento por algo que não deveria ser dessa maneira. Recordo uma quadra em que se percebe bem a utilização de "mal-empregado" com esta intenção.

"O Manuel da vizinha
embarca segunda-feira
mal-empregado rapaz
ir da ilha da Madeira".

Num segundo sentido, mal empregado é uma expressão usada para demonstrar vingança. Algo não correu muito bem a determinada pessoa e alguém, contente com o infortúnio alheio, exclama: "Mal empregado". É outra forma de dizer que é muito bem feito, que não sente pena nenhuma pelo sucedido, que a pessoa merecia essa e quem sabe outras chatices. Naturalmente o tom de voz denuncia esse sentimento negativo.

Gosto mais do primeiro exemplo da expressão "mal-empregado", mas a outra também existe e não posso fazer de conta que não. Afinal, toda a nossa vida está cheia de dualidades, de situações e de sentimentos ambíguos, de imensas contradições. Mal empregado!

sexta-feira, março 05, 2010

comer o morgado

"Quem come o morgado é afortunado". Recordo esta antiga superstição que julgo ter caído definitivamente no esquecimento.
Chamava-se "morgado" ao primeiro ovo posto por uma galinha e acreditava-se que a sorte bafejaria a pessoa que o comesse. Como se sabe, o morgado era o filho mais velho, o primogénito (e em muitos casos único herdeiro da fortuna da família) e julgo que fica clara a intenção ao utilizar a mesma palavra para designar o primeiro ovo de um galinha.
No tempo dos meus avós, em que todas as famílias tinham um galinheiro junto à casa e acompanhavam diariamente a vida das galinhas, dos galos e dos bisalhos, era bem possível socorrer-se deste estratagema para chamar a sorte.
Hoje os ovos compram-se no supermercado, ninguém sabe onde pára o morgado. Perdeu-se, por culpa o progresso, uma antiga crença. Mas o pior é ter-se perdido de vez um potenciador da sorte, afinal a sorte nunca é demais e todos precisamos dela.

quinta-feira, março 04, 2010

mal empregado tempo

"Chuva rega, vento seca
mais vale chuva que vento
Ah tempo mal empregado
Ah mal empregado tempo"

Quadra recolhida no Sítio da Ribeira dos Pretetes, Caniço, no dia 2 de Abril de 1986.

quarta-feira, março 03, 2010

outorgar

Em mais uma conversa feita de memórias, as duas irmãs recordavam uma personagem que tivera um papel importante na sua adolescência e juventude. A irmã mais velha, acabada de chegar da Venezuela em mais uma de muitas viagens para matar saudades, não hesitou no elogio:
- "Ela outorgava muito a gente."
Há muito tempo que não ouvia a palavra outorgar usada desta forma. Este "outorgar" significa dar ouvidos, dar atenção. Esta memória tão bem guardada comprova a importância de ouvir os outros, de ter disponibilidade para as pessoas. Sei pouco dessa mulher a quem se referiam na conversa, mas sei que outorgava as raparigas e elas, agora com mais de 70 anos, não o esqueceram.

terça-feira, março 02, 2010

a retrete do cose-botas

Era uma vez um homem que cosia botas, algures nas Fontes. Não era sapateiro, não senhor, apenas sabia coser botas e tinha bastantes clientes, então não! O calçado era algo precioso e muito bem aproveitado: descosia-se, mandava-se coser e não tinha mais conversa. Chamavam-lhe o Cose-Botas, o nome verdadeiro não interessa para nada. Ora, o Cose-Botas ficou na história de que são feitos os ditos da minha terra graças à sua retrete ou casinha, que era o que se chamava às casas de banho de antigamente.
A retrete do Cose-Botas era ao estilo da que existia em casa dos meus avós: uma casinhota de madeira do mais simples, com duas tábuas no chão, onde as pessoas se equilibravam, meio levantadas, meio agachadas, para fazerem as suas necessidades. Estas mantinham-se ali em baixo, até serem lavadas de vez em quando. Não sei se devido ao muito trabalho que dava cozer as botas do sítio, se apenas por malandrice ou descuido, esse era um hábito que o homem parecia não ter. A casinha ficava ao pé da vereda estreita e chamava a atenção de quem passava o facto de estar tão cheia, a chegar acima, tão cheia que metia dó, para não dizer outra coisa.
As pequenas de cá de cima repararam naquilo quando foram levar botas a cozer e é claro que transformaram o caso num motivo de conversa e daí a nascer um novo ditado, ainda hoje em uso, foi um pequeno passo. Sempre que viam alguma coisa demasiado cheia, diziam: - "Olha, parece a retrete do Cose-Botas." E levavam a expressão a um tal extremo que até de um prato de comida demasiado cheio diziam que parecia a retrete do Cose-Botas, imagine-se!
Este homem que não cheguei a conhecer coseu botas algures nas Fontes mais ou menos há uns sessenta anos e não sei mais nada dele. Sei apenas que qualquer coisa que se apresente demasiado cheia parece a retrete do Cose-Botas. A expressão continua a ser usada na zona do Pomar, também conhecida por Achada do Capitão.

sábado, fevereiro 20, 2010

uma pena no peito

Tenh'uma pena no peito
Não é pena de galinha
Dá-lhe o vento não avoa
Não há pena quem'a minha

Tenh'uma pena no peito
Não é pena de pavão
Dá-lhe o vento não avoa
Dá-lhe a chuva não cai ao chão

Quadras de um fado, recolhidas no Sítio da Ribeira dos Pretetes, Caniço, em 1989

sábado, fevereiro 06, 2010

o levadeiro

- "E quem é que vai ser o levadeiro?"
Os homens apinhavam-se à volta do porco, acabado de trazer o chiqueiro à força. O marchante disse que deixassem o animal descansar um bocado, e essa breve pausa na função da morte do porco, foi logo aproveitada para uma primeira rodada de vinho seco.
- "E quem é que vai ser o levadeiro?"
Um deles adiantou-se, pegou no garrafão e no copo e começou a distribuição. Estava eleito o levadeiro do dia, aquele a quem caberia de vez em quando medir rodadas de vinho, e servi-las a todos os homens convidados para ajudarem na morte do porco num dia já tão afastado da tradição das vésperas da Festa.
Este levadeiro tem a responsabilidade de assegurar que nenhum dos presentes fica de goelas secas muito tempo, é um cargo importante e imprescindível uma "morte do porco", tal como antigamente eram imprescindíveis os outros levadeiros, os que trabalhavam dia e noite nas levadas de verdade, zelando para que a distribuição se fazia de forma correcta e às horas marcadas.
Como existiam horas de rega nocturnas, tinha de ser, o levadeiro permanecia junto ao entalhador da levada e à hora exacta tapava a água para o sítio correcto. Contam-me que tocava numa corneta, para alertar os regantes de que estava na hora de irem buscar a sua parte da água.
O levadeiro tinha a responsabilidade de cumprir à risca a divisão da água, numa altura em que esta era essencial para assegurar o sucesso das colheitas e, logo, a subsistência de praticamente todas as famílias nas zonas rurais.
O outro levadeiro, o cargo que hoje fiquei a conhecer por estar numa "morte do porco", tem tambem um caro de responsabilidade. Se não houvesse vinho seco, distribuído de vez em quando, num tempo quase cronometrado, não muito perto e não muito distante da vez anterior, pelo "levadeiro", teriam conseguido reunir oito homens para ajudar na morte do porco?

domingo, janeiro 31, 2010

o filho do ferreiro

"Quando está nevoeiro não há neve". A sentença sábia foi proferida logo no início da subida mas apesar do nevoeiro continuei o caminho em direcção ao Areeiro. "É melhor voltarmos para trás, a estrada é perigosa com este nevoeiro." Mas eu fui me aventurando um pouco mais na subida até à serra.
- "Isto é como a história do filho do ferreiro".
Enquanto eu me aventurava devagar por entre o nevoeiro, fiquei a saber que nessa história antiga de que a minha mãe não se lembra senão uma pequena parte, havia várias pessoas que tentavam descer num buraco, mas ninguém conseguia porque iam aparecendo muitas coisas estranhas e assustadoras. Desciam num cesto equipado com uma campainha, que tocavam para que os puxassem para cima. Até que o filho do ferreiro decidiu resolver o assunto e disse: "Quanto mais eu tocar à campainha, mais vocês me empurram para baixo."
E assim foi: ele tocava, tocava porque queria que o puxassem para cima, tocava porque não aguentava mas eles cumpriam as ordens e davam mais folga à corda para que ele descesse ainda mais.
Cruzamo-nos com um carro em sentido contrário, já na descida do Areeiro e a minha mãe exclama: "Olha, outros filhos do ferreiro".
Acabei por inverter a marcha mas continuámos a falar do famoso filho do ferreiro. "É uma história tonta. Ele chega a um lugar que tem feiticeiras, depois acho que chega a outro onde está o diabo." Parece que nesse lugar todos eram obrigados a beijar o cu ao diabo e aí se desenvolveram as muitas aventuras do filho do ferreiro.
A história perdeu-se mas a metáfora continua a ser usada na perfeição, para situações adversas em que as pessoas insistem em continuar caminho, numa teimosia digna do herói do conto popular.

quarta-feira, janeiro 20, 2010

caçoar ou fazer caçoada

- "Este senhor está sempre fazendo caçoada". A mulher apontou para o homem ao lado, que não perdia uma portunidade de dizer uma piada, mesmo numa situação desagradável. Reclamava e dizia de sua justiça, mas não perdia o humor.
Tudo o que o senhor dizia tinha graça e as pessoas à volta acabavam por esboçar sorrisos, embora estivessem aborrecidas com o que estava a acontecer.
Há pessoas com este dom, graças a Deus! As pessoas que fazem caçoada conseguem passar melhor pelo mundo. Caçoam e tudo se torna mais leve, viver torna-se quase fácil.
Adoro a expressão "fazer caçoada"ou "caçoar", sobretudo por aquilo que ela representa: a arte suprema de brincar com as situações, mesmo as menos boas. Tenho a sorte de lidar diariamente com pessoas que dominam esta qualidade e considero-me uma sortuda.

segunda-feira, janeiro 18, 2010

daqui à cidade

Quando antes se dizia "daqui à cidade" era para nos referirmos a algo extenso. E fazia sentido. Afinal, era muito complicado chegar à cidade e isso só acontecia em ocasiões muito particulares. "Daqui à cidade" substituía na perfeição os adjectivos longo, extenso, comprido, e podia ser aplicado às mais variadas situações, até como metáfora de bilhardice: "- Ela tem uma língua daqui à cidade".
Ainda há pouco tempo utilizei a expressão aprendida na infância porque ela continua a significar o mesmo embora "a cidade" esteja hoje tão perto, tão acessível. E apesar de hoje existirem muitas outras cidades, incluindo o Caniço. A realidade é totalmente diferente mas a expressão "daqui à cidade" continua a ser sinónima de longo, extenso, comprido. Isto acontece porque as expressões ganham autonomia, tornam-se independentes, crescem, adquirem a sua própria história.

domingo, janeiro 17, 2010

um gato em cima da barriga

"- Olha, põe-lhe um gato em cima."
Era esta a resposta certa quando antigamente alguém se queixava de dores de barriga. Não havia medicamentos disponíveis para tudo e mais alguma coisa. Em casa dos meus avós não havia medicamento nenhum para eventualidades como essa.
Quando uma das minhas tias se queixava de uma dor de barriga, a minha avó dizia que "era uma dor de frio" e mandava-as colocar uma coisa quente em cima da barriga. Podia ser um barrete de orelhas ou outra coisa de lã bem quente.
Talvez a história do gato tenha surgido por ser um animal quentinho, alguém pode ter começado por dizer para colocar um gato na brincadeira. Ou será que alguém terá realmente alguma vez colocado um gato em cima da barriga para tentar curar "uma dor de frio"?
E quantas dores ajudará um gato a curar? Veremos. Em breve terei um gato em casa.

sábado, janeiro 09, 2010

ir à missa com o que se tem

- "Sabe, isto cada um vai à missa com o que tem."
Claro que não falávamos de ir à missa. Numa breve e rotineira entrevista, o meu interlocutor tentava clarificar uma situação qualquer e de repente usou esta expressão.
Ir à missa é sinónimo de se mostrar, de aparecer perante os outros. Antigamente mais, mas ainda hoje nos sítios pequenos, é na ida à missa que as pessoas se vêem, que ficam sabendo do estado de saúde dos outros, dos relacionamentos, das roupas novas, de todas as bilhardices da comunidade.
É na ida à missa que as pessoas mais ficam expostas aos olhos dos outros.
Antigamente os meus tios iam a missas diferentes para poderem usar todos o mesmo casaco, já que era o único. Encontravam-se pelo caminho e passavam o casaco de um para o outro. E como eles tinham idades e tamanhos diferentes mas o casaco era o mesmo, nuns o casaco ficava grande, noutros pequeno. Mas era o que havia.
- "Sabe, isto cada um vai à missa com o que tem." Ou seja: cada um mostra aquilo que tem e é assim que deve ser. Quem tenta mostrar mais do que realmente é ou tem, não o consegue fazer para sempre. E para quê?

sexta-feira, janeiro 01, 2010

dar os amãs

- "Ela não fez bem mas tu já 'tás lhe dando os amãs. Dás-lhe sempre os amãs." Não sei se a acusação tinha razão de ser. No caso em concreto, não posso avaliar se havia demasiada condescendência de um lado ou demasiada intolerância do outro.
Mas posso dizer que conheço bem a expressão "dar os amãs" e que sempre a associei à palavra "mão", como se ao defender alguém a pessoa estivesse a dar-lhe a mão. Sempre achei que havia esta relação mas talvez estivesse errada e a verdadeira relação seja com a palavra "amen", pois ao defender uma pessoa estamos afinal a concordar com ela ou com a sua atitude.
Qualquer uma destas possibilidades é especulação minha, gosto deste jogo de inventar uma história para cada palavra, todas as palavras têm a importância suficiente para merecerem a sua própria história, pensava e repensada e, porque não, colocada neste blog à vista ede toda a gente.

quarta-feira, dezembro 23, 2009

o mija na erva

À volta da mesa ouviu-se um suspiro de alívio. Não houve "rapa" na bisca de seis graças ao terno. A carta com menos valor salvou o jogo e eu fiquei a saber qual o nome popularmente atribuído ao terno do naipe que calhou à mesa.
- "Se não fosse o mija na erva... apanhava-se rapa". O "mija na erva", sim senhor. Nunca tinha ouvido tal coisa mas também é verdade que só raramente jogo à bisca. Só em ocasiões festivas como naquele dia, em que há pessoas suficientes para uma bisca de seis, às vezes para revezar alguém ou simplesmente para completar o painel de jogadores.
Deduzo que "mija na erva" seja sinal de pobreza, de pouco valor. Daí o nome ser atribuído à carta que menos poder tem. Mas como não regra sem excepção, lá vem o dia em que o pobrezinho tem a sorte de pode mostrar que vale alguma coisa.
Vamos jogar uma bisca de seis durante a tarde do dia de Festa, isso é garantido, porque há tradições que têm de ser cumpridas Desta vez, posso me gabar de saber um pouco mais desse típico jogo de cartas. Sei que o terno é o "mija na erva".

domingo, dezembro 13, 2009

desabandonados

-"Olhe, os velhinhos ficavam pr'aqui todos desabandonados." A senhora comentava o papel dos centros de dia na vida dos idosos da Calheta, o concelho mais extenso da Madeira e um dos mais envelhecidos. Se não existissem esses centros, na opinião da senhora , os velhinhos ficavam desabandonados. E ficarem "desabandonados" é algo bem mais grave do que ficarem simplesmente abandonados. Esta transformação do adjectivo "abandonado" em "desabandonado" serve para lhe dar mais ênfase, para lhe amplicar o sentido, para o dramatizar. Neste caso, o "des" não torna o adjectivo no seu oposto, mas no seu extremo. Não há dúvidas de que o "desabandono" é um drama. O "desabandono" é uma coisa horrível. O "desabandono" mata as pessoas lentamente. Como se sentirão os "desabandonados" com o aproximar do Natal? Quantos prefixos teríamos de acrescentar à palavra para lhe encontrar o tamanho certo?

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