sexta-feira, agosto 31, 2007

Fazer rebaldarias

Tenho saudades do tempo em que as crianças faziam rebaldarias.
As crianças de antigamente punham a criatividade a funcionar e faziam rebaldarias que nunca mais eram esquecidas, nem por elas nem pelos adultos. As rebaldarias mais insólitas transformavam-se sempre em histórias para recordar e mais tarde contar aos filhos e aos netos.
Felizmente, eu fui desse tempo em que as crianças faziam rebaldarias. Felizmente tenho rebaldarias para contar à minha filha, como se contasse verdadeiras histórias.
Rebaldaria é o termo que no meu sítio usamos como sinónimo de traquinice. E no meu tempo todas as crianças faziam rebaldarias e ainda bem que faziam. Não tínhamos televisão, não tínhamos computador e não tínhamos medo de nos mexermos. Faziamos rebaldarias com o mesmo à-vontade com que depois corríamos à frente de um adulto de vergasto na mão que de certeza nos avançaria as canelas mais tarde ou mais cedo. Arriscávamos as rebaldarias, apesar das malhas que se seguiam.
A minha mãe fazia o possível para evitar as rebaldarias, cujo risco aumentava pelo facto de sermos três irmãs com apenas um ano de diferença, quando uma dizia mata outra dizia esfola. Ora, a minha mãe tratava de colocar tudo, absolutamente tudo, fora do nosso alcance. Tirava todos os objectos das gavetas e das prateleiras do armários onde houvesse a mínima possibilidade de chegarmos e colocava tudo no local mais inacessível da casa: em cima do vestuário.
Lembro-me de ficarmos de cabeça erguida a olhar para o amontoado de objectos em cima do vestuário, que frustação. Assim sendo, transformávamos e mesa de cabeceira numa máquina de costura e fingíamos que cosíamos roupas. Mas a brincadeira cansava e não havia absolutamente mais nada para fazer. Foi numa dessas tardes de aborrecimento que eu me lembrei de uma rebaldaria que ficou para a história.
Lembrei-me de despejar a palha da cama. Dito e feito. Mas não a despejei com as minhas mãos, nada disso. Dei instruções às minhas duas irmãs, ambas mais novas, para realizarem o feito.
Parece que estou a ver a minha mãe a entrar no quarto, no intervalo de uma qualquer tarefa na cozinha ou no quintal, talvez no poço de lavar, e deitar as mãos à cabeça: "Valha-me Deus!"
A palha da cama estava toda espalhada pelo chão, nada sobrava dentro do tecido riscado que servia de colchão. A minha mãe ralhou-nos mas não me lembro de nos ter dado uma malha dessa vez. Certo é que essa rebaldaria nunca mais foi esquecida.
Tenho saudades.
Tenho saudades do tempo em que era normal as crianças fazerem rebaldarias simples e saudáveis e em que essas rebaldarias eram transformadas em histórias para recordar e contar aos filhos e aos netos.

quarta-feira, agosto 29, 2007

Temperar água com açúcar

No tempo em que a minha mãe era uma menina, se por algum motivo a minha avó tivesse de se ausentar de casa, deixando as crianças sem a supervisão de um adulto, havia uma rebaldaria que era pela certa.
Face ao reduzido leque de possíveis traquinices, porque em casa só havia o essencial, e nada mais do que o essencial, os mais pequenos temperavam água com açúcar para beberem.
As crianças assaltavam a lata do açúcar e deliciavam-se com água açucarada como se se tratasse da melhor guloseima do mundo. Ao doce acrescia o sabor do proibido, tornando a mistura numa bebida única, ainda hoje recordada com uma nostalgia enternecedora.
A minha mãe fala muitas vezes nesse gesto mágico de temperar água com açúcar, mas fá-lo sobretudo quando fala com os irmãos, amigos ou vizinhos da mesma geração. " - Estiveram a temperar água com açúcar?" A pergunta é uma espécie de código, e depois dela vem sempre um desfiar de memórias. A pergunta é feita, sempre, numa situação particular: quando alguém (uma pessoa ou mais) fica sozinho em casa, sem as pessoas que normalmente partilham o mesmo espaço e aproveita para fazer algo fora do comum. " - Não temperaram água com açúcar?"
Os olhos brilham, o riso baila nos lábios da minha mãe e a memória fervilha com as pequenas coisas transformadas em grandes memórias, desse tempo maravilhoso em que ela foi uma menina.

domingo, agosto 26, 2007

Desadorada!

" - Ai, estou desadorada!" Antes que eu pudesse dizer fosse o que fosse, acrescentou: " - Como dizia a minha avó."
Mesmo que eu nunca tivesse ouvido o adjectivo "desadorada", teria percebido logo o seu significado. Bastaria reparar na expressão de desânimo, com o rosto fechado e os braços caídos em sinal de falta de energia e de pachorra.
Tínhamos pela frente um longo dia de trabalho, afinal eram nove da manhã, e aquela expressão deixou-me um pouco atarantada. Lembrei-me logo que ainda não tinha registado aqui a palavra "desadorada".
Preparava-me para perguntar o porquê daquela tão visível ausência de esperança quando alguém nos interrompeu com outro assunto e acabámos seguindo os caminhos que devíamos seguir sem mais conversa.
Este pequeno episódio aconteceu há cerca de três semanas e já por várias vezes o surpreendi na memória. A explicação é simples: lembro-me devido ao blog, devido à urgência de agarrar novas palavras para ir completando esta já extensa lista de palavras e histórias madeirenses.
Este é a explicação visível, óbvio, clara. A outra, talvez a verdadeira, é que, também eu, me tenho sentido desadorada. Como dizia a minha avó.

sexta-feira, agosto 10, 2007

O Rabo do Gato faz hoje 3 anos

Faz hoje três anos que iniciei este blog. Nos últimos dias não tenho escrito com o ritmo dos primeiros tempos, mas continuo a embalar este sonho com o mesmo carinho de sempre, e sobretudo com a mesma curiosidade, e com a mesma alegria.
Continuo atenta ao falar madeirense, às nossas tradições, às pequenas histórias individuais que depois se tornam parte da memória colectiva.
A todos os leitores deste blog o meu obrigada sincero. O blog só se justifica graças às vossas visitas. Desde 25 de Agosto de 2005 - só mais de um ano depois descobri como introduzir no blog um contador - "O Rabo do gato" recebeu 23.021 visitas, de todo o mundo. Este é o post número 342.
De hoje a um ano conto estar aqui com um novo sorriso nos lábios. Continuarei a escrever como até aqui, orgulhando-me da simplicidade das palavras e da riqueza das memórias que talvez pareçam pequenas mas que para mim não têm tamanho.

Já estou isando....

" - Já estou isando chegar ao Inverno." Queixava-se de dores num joelho e de dores numa perna, também dores nas costas. Tantos problemas nos ossos, coitada da mulher.
No Verão, queixa-se mas ainda vai suportando, que remédio. O pior é mesmo o Inverno, lá isso é. E sofre por antecipação: "Já estou isando chegar ao Inverno."
Descobrir ali a expressão "estar isando" deixa-me quase contente, só não me deixa verdadeiramente contente porque não sou capaz de ignorar as dores alheias.
"Estar isando" é estar com receio, é temer alguma situação, que no fundo já se sabe que irá acontecer.
"Eu já estou isando......" Detenho-me nas muitas coisas que poderia acrescentar à popular expressão madeirense. Mas prefiro isar baixinho, para dentro de mim. Como se o facto de não as nomear pudesse conferir às coisas menos realidade.

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