sexta-feira, junho 27, 2008

Ver a sombra na água

De todas as tradições da noite de São João, esta sempre foi a que mais impressionou. Antes de o sol sair, as pessoas debruçavam-se junto a uma superfície com água, um poço ou mesmo uma banheira, e confirmavam se a sua sombra aparecia reflectida. Se a sombra se reflectisse na água, voltavam a casa felizes e contentes, com a certeza de que viveriam mais um ano. Se a sombra teimasse em não aparecer, era sinal de que a morte lhes estava destinada nesse ano e não chegariam vivos à próxima noite de São João.
Lembro-me de a senhora Maria José me ter contado o caso de uma mulher, que já não me lembro se era sua familiar ou apenas vizinha ou conhecida, para demonstrar que esta tradicional forma de adivinhação não falhava. Na noite de São João, antes de o sol sair, a mulher terá ido até à beira do poço mas não viu a sua sombra. Terá então pegado numa criança ao colo. Olhou novamente para a água e viu apenas a sombra da criança, não conseguia ver a sua própria sombra. Dizem que morreu nesse ano, talvez do desgosto, digo eu porque os desgostos também matam.
Eu gosto de cumprir tradições e ainda este ano voltei a participar numa improvisada fogueira ao São João, desta vez sem o crepitar da folhagem de loureiro verde, e sem faúlha recolhida de propósito para a ocasião, apenas um monte de folhagem para fazer a vez, sempre era melhor do que nada.
Esta tradição de ver a sombra na água, porém, permanece incompreensível para mim e jamais a cumpriria. Qual a vantagem de uma pessoa saber a data da sua própria morte? E o que é que o São João tem a ver com isso, coitado? Mas é uma tradição nossa, um costume popular de que os mais velhos se recordam e que talvez alguns ainda cumpram, quem sabe. Todas as formas de cultura e saber popular merecem um cantinho neste meu trabalho de recolher saberes e memórias.

sexta-feira, junho 06, 2008

Enfuguitar um bespreiro

- "Faz de conta que 'tá enfuguitando um bespreiro." Acho muita piada a esta frase, que é uma espécie de sinónimo de "deitar achas para a fogueira". Neste contexto "faz de conta" serve para fazer uma comparação, deve-se ler "é como se estivesse".
Antigamente, havia muitos bespreiros (com "b" e com "r", era como se dizia), logo identificados pelo movimento de bêspras a sair de um qualquer buraco na terra, muitas vezes nos bardos junto às fazendas onde as pessoas tinham de cultivar a terra, ou à beira dos caminhos onde era inevitável passar.
Ora, nesses locais era preciso passar com cuidado, porque se as bêspras estivessem assanhadas, atiravam-se em bando para cima das pessoas, picando-as em todos os sítios possíveis.
Mas também é verdade que nessa época os divertimentos eram muito poucos, e a imaginação ia se desenvolvendo um pouco ao ritmo da natureza, baseada nos fenómenos e nos objectos com que as pessoas tinham de conviver diariamente.
Vai daí, havia quem se divertisse a "enfuguitar bespreiros", em sítios onde sabiam que passaria gente logo a seguir. Pegavam, num pau, metiam pelo buraco na terra, remexiam e toca a fugir. Enfuguitavam e fugiam a sete pés. As bêspras ficavam furiosas e atacavam os próximos caminhantes, para divertimento do autor da brincadeira. Eram brincadeiras de crianças e os adultos ainda se riam, como era o caso da minha avolita. Dizia: "Uma dentada de bêspra é como uma injecção. Não faz mal nenhum." E ria-se com os dentes todos, na sua forma de rir tão particular.
A minha mãe lembra-se sempre de uma vez em que decidiu experimentar. Estava com a Teresinha, amiga de sempre, e quiseram ver o que acontecia se enfuguitassem o bespreiro que estava ao pé do caminho da levada. A intenção não era pregar partida a ninguém, apenas "ver o passo" dos animais, perceber se era verdade que as vespas se enfureciam com a intromissão e saiam de casa desvairadas, para se vingarem.
Mas acontece que não tiveram tempo de fugir e as bêspras, furiosas, embaraçaram-se-lhes nos cabelos e na roupa e desataram a picar, a picar, e elas aos gritos, a tentar fugir, levando consigo o enxame colado aos corpos franzinos vestidos de chita. A Ti Carolina, que Deus lhe dê o céu, estava no terreiro, avistou a cena, e riu-se. Divertiu-se com a cena, afinal nenhuma das duas morreria daquilo e tão cedo não esqueceriam a lição.
E tinha de tal forma razão que a minha mãe, ao contar esta cena, se ri sempre de um riso com saudades. Resumo da história: Fizeram uma brincadeira, sofreram as consequências, aprenderam, e ficaram com uma bela história para contar aos filhos e aos netos. Havia coisas tão simples e tão eficazes na educação de antigamente, quando não se pensava e repensava filosoficamente nas coisas da educação. Porque é que as pessoas decidiram complicar tudo?
Gosto de ouvir estas histórias do tempo da simplicidade, em que as coisas se tratavam por si, sem médicos nem psicólogos, nem culpados. E gosto da expressão "enfuguitar um bespreiro", com um sentido metafórico tão genuíno. Enfuguitar um bespreiro é fazer algo para enfurecer ainda mais alguém, normalmente de propósito e não ingenuamente como a minha mãe e a Teresinha quando decidiram estudar no local e ao vivo a reacção dos insectos.

terça-feira, junho 03, 2008

João Rapado e João Barbado

- "Não tem João Rapado, vai-se com João Barbado". Anotei o ditado, mais uma vez incrédula por nunca ter reparado nele. A sabedoria popular arranja soluções imediatas, não deixa tempo para muitas lamentações. Quando não está disponível exactamente o que se quer, fica-se com a alternativa e não há mais conversa, toca andar. É uma espécie de "quem não tem cão, caça com gato". Um saber feito da experiência dos tempos, em que a sobrevivência obriga sempre a andar para a frente e a descobrir as alternativas possíveis em vez de se fixar na impossibilidade de um dado objecto ou objectivo.
Mas.
Algumas almas têm dificuldade extrema em praticar estas sabedorias mais antigas do que o norte, mais do que comprovadas por todas as experiências. São as almas sonhadoras, que se agararam a um momento, a uma ideia, a um projecto, e têm dificuldade em o largar, apara abraçar uma qualquer alternativa, seja ela qual for. Essas almas sonhadores e estranhas não conseguem conceber que alguém possa ser feliz com uma alternativa.

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