domingo, junho 26, 2005

A sorte do caracol

Deixei passar a véspera de São João sem fazer nenhuma sorte. Nem sequer a do ovo deitado no copo de água que se deixava ao sereno com uma cruz de alecrim em cima e que formava barcos, igrejas ou cemitérios. Nem a dos três papelinhos enrolados com nomes de rapazes escritos, dentro de um recipiente com água. Nem a dos cardos queimados na fogueira e plantados na terra, cada um com seu nome atribuído, a ver qual deles refilava durante a noite. Nem as três favas deixadas debaixo do travesseiro, uma com a casca, outra meia descascada e outra nua, para saber se seríamos ricos, remediados ou pobres.
Fiz todas essas sortes no meu tempo de rapariga. Todas essas sortes e mais algumas. Uma delas consistia em atirar uma moeda de um tostão para a fogueira dedicada ao santo. No dia seguinte era preciso ir procurar a moeda no meio das cinzas e com ela na mão começar a andar pelo caminho. Ao primeiro homem que se encontrasse oferecia-se a moeda e perguntava-se o nome. Esse seria o nome do nosso futuro marido.
Por oposição a esta sorte tão elaborada havia umas muito simples. Por exemplo, tomar uma bochecha de água à hora das ave-marias e aguardar atrás da porta até ouvir chamar o nome de um rapaz. O primeiro nome seria o tal. A essa hora cruzavam-se uma infinidade de nomes, que as pessoas iam chamando de propósito, adivinhando as preferências das raparigas solteiras do Sítio e os rapazes disponíveis.
Fiz todas essas sortes e mais algumas mas não me lembro dos resultados. Só me lembro com pormenor de uma vez, a única, em que fiz a sorte do caracol. Era muito simples. Na véspera de São João pegava-se num bocado de tecido preto e colocava-se sobre ele um caracol. Depois tapava-se com uma caixa de sapatos. No dia seguinte, corria-se a verificar o pano, pois dizia-se que durante a noite o caracol desenhava a primeira letra do nome do rapaz com quem havíamos de casar. Pois bem, eu decidi fazer a sorte do caracol e correu tudo bem até à hora em que levantei a caixa de sapatos, para ver a letra e o caracol continuava no sítio exacto onde o tinha colocado. Não se mexeu nem um centímetro. Naquele escurinho, adormeceu e dormiu durante toda a santa noite de São João.
Talvez tenha sido essa a última sorte que fiz, não posso garantir. Foi tão grande a decepção! Nos cardos sempre refilava algum, nos papelinhos um deles ficava sempre um pouco mais aberto, ainda que fosse o que obrigatoriamente tinha o nome do santo, o ovo na água tinha sempre semelhanças com alguma coisa. Mas a do caracol, que desconsolo! O meu caracol de há tantos anos não se mexeu. Na altura, pensei que apenas talvez tivesse escolhido mal o meu caracol, que devia ter escolhido outro mais esperto, mas paciência. Nem me passou pela cabeça a hipótese de ficar "com os pés amarelos", como a vida é engraçada.
Neste São João não fiz sorte nenhuma, mas lembrei-me das sortes da minha juventude. Lembrei-me especialmente daquele caracol malandro que eu resondei quando levantei a caixa de sapatos numa certa manhã de São João. Coitado do caracol, preso uma noite inteira debaixo de uma caixa de sapatos e em cima de uma pano preto. Foi muito bem feito! Se fosse eu também teria feito greve.

quarta-feira, junho 22, 2005

O patroquês e a vaquinha Vitória

"Conta-me uma história, mãe. Conta." Eu disse que sim e depois enganei-a como me enganavam quando eu, da mesma idade, também pedia uma história mas a pessoa a quem pedia não estava com muita pachorra. "Conta-me uma história, mãe. Conta." Está bem.
"Era uma vez....." Depois do era uma vez, fiz a pausa da praxe, para aumentar o suspense e fazer redobrar a atenção. Ela estava em silêncio, concentrada já no que viria a seguir. Repeti: "Era uma vez.... - nova pausa, aqui - ....um patroquês. Passou-te pelas barbas, não sei o que te fez." O resultado foi o esperado. A mesma exclamação de espanto e desilusão que eu tantas vezes repeti. "Já acabou? Oh!"
"Era uma vez um patroquês. Passou-te pelas barbas, não sei o que te fez." Claro que a minha menina também me fez a pergunta que eu tantas vezes fiz à minha mãe: "O que é um patroquês?" Eu lembrava-me da pergunta mas não me lembrava da resposta. Puxei pela cabeça mas não me lembrei, talvez nunca tivesse havido uma resposta lógica e convincente. Continuei a puxar pela cabeça à procura de palavras semelhantes, que eventualmente pudessem estar na origem de uma deturpação linguística, mas a palavra mais parecida que encontrei foi "português".
"Não sei. Deve ser só para dar certo. Assim rima, reparaste?" Ela riu-se e concordou.
"Era uma vez um patroquês. Passou-te pelas barbas, não sei o que te fez." Repeti a brincadeira e de imediato lembrei-me da outra história-relâmpago com que tentavam satisfazer a minha avidez por histórias. "Vou contar-te outra." Novo silêncio a mostrar que a atenção estava já toda na história que vinha a caminho. "Era uma vez....." Pausa.
"Era uma vez uma vaquinha chamada Vitória. Morreu a vaquinha, acabou-se a história." "Oh, já acabou? "E porque é que a vaquinha morreu?" A mesma pergunta. A pergunta que eu repetia de todas as vezes que tentavam convencer-me de que esta era uma história como as outras. Mas não era. Uma histórias tem mais pormenores, tem muitas peripécias pelo meio. Uma história de verdade não acaba antes de ter começado.
Nenhum destes dizeres, nem o do patroquês nem o da vaquinha Vitória, é uma história como deve ser, mas ontem à noite foi com eles que a minha menina adormeceu. Eram coisas novas para ela, como é possível que em nove anos nunca eu me tenha lembrado delas?
Consigo inventar sempre novas histórias ou transformar histórias já velhas, e adaptar outras bem conhecidas. Penso que esta é a explicação e eu fico contente por nunca antes ter sentido necessidade de recorrer ao patroquês e à vaquinha Vitória. Mas ainda bem que ontem eu estava sem inspiração e sem muita pachorra. Ainda bem que me lembrei destas duas histórias-rápidas-de-enganar-crianças-ávidas-por-histórias. O patroquês e a vaquinha Vitória são histórias minúsculas, nem sequer merecem o estatuto de histórias. São pequenas mas não são dispensáveis. Comparo-as a pequenas gotas, essenciais para completar o balde de alegria da infância.

terça-feira, junho 21, 2005

Bassolai e outras palavras inventadas


Sempre gostei de palavras. Recuo até onde a memória me deixa, bem longe no tempo, no princípio da infância, e já encontro esse fascínio pelas palavras, o desejo de descobri-las, de inventá-las, de criar uma linguagem nova. Uma das primeiras palavras que inventei foi "Bassolai".
Decidi que era demasiado normal chamar à minha Tia Salomé o nome que toda a gente chamava e baptizei-a de Bassolai. Tia Bassolai. Achava que Bassolai era um nome lindo. Diferente e lindo. Muito mais bonito do que Salomé, ora agora!
Lembro-me de estar a meio das passadas que ligam a casa dos meus pais à dos meus avolitos, a tentar ensinar à minha irmã, que andava sempre atrás de mim e chamava-me "mana", a palavra Bassolai. Diz: "Bassolai." Fazia-a repetir. Bassolai. Ensinava-lhe assim o nome da Tia. Acrescento: "A Maria da Tia Ascensão diz Tia Salomé, mas está errado. É Tia Bassolai. Bassolai."
Falava numa espécie de código mas não era por não saber as palavras originais. Apenas as substituía por outras, inventadas por mim. Uma vez, estando eu em casa da senhora Conceição, perguntaram-me onde tinha ido o meu pai. Eu respondi que ele tinha ido ao Pico "buscar policissa, elisas e satotas." Era verdade. Ele tinha ido ao Pico, à fazenda, busar policissas, elisas e satotas. Policissa era a minha palavra inventada para cebola. Elisa era a minha palavra inventada para semilha. Satota era a minha palavra inventada para maçaroca.
"O meu pai foi ao Pico buscar policissas, elisas e satotas." Recordo a gargalhada conjunta das filhas da senhora Conceição. A Lídia, a Maria dos Anjos, a Maria Justina e a Margarida deram uma gargalhada gigante e exclamaram: "Ora, policissa p'ra cebola!". A gargalhada aumentou de tamanho quando eu repeti a expressão: "Policissa p'ra cebola." Afinal eu sabia! E elas nunca mais se esqueceram daquilo. Passados mais de trinta anos, ainda se lembram da minha resposta. "O meu pai foi ao Pico buscar policissas, elisas e satotas." Por entre um sorriso recordam as minhas bochechas vermelhas, as minhas tranças, com mais tempo até os meus vestidos. A memória culmina com a frase: "Ora policissa p'ra cebola."
Policissas, elisas e satotas eram nomes giros. Mais giros do que os originais, usados por toda a gente. Mas o meu nome inventado preferido continua a ser Bassolai. O meu nome inventado mais bonito foi o teu, Tia Bassolai.

quinta-feira, junho 16, 2005

Marmelada de ameixa

Sempre dissémos assim. Marmelada de ameixa e marmelda de pêra, que engraçado! A outra marmelada, a marmelada que respeita a gramática e é feita a partir do marmelo, era apenas marmelada. Claro que era boa, especialmente dentro do paposseco que a professora primária preparava para nos dar na hora do recreio. Era deliciosa a marmelada gramaticalmente correcta mas as outras, a marmelada de ameixa e a marmelda de pêra, tinham o sabor daquilo que tem algo de nós.
A minha mãe fazia marmelada de ameixa com dois tipos de ameixas: ameixa amarela, também chamada ameixa francesa, e ameixa encarnada, que dizíamos ameixa de sangue ou ameixa "braba".
Havia duas ameixeiras amarelas no terreiro dos meus avolitos, cujos frutos eu só achava bons enquanto estavam verdes. Lembro-me de a avolita ficar irritada quando essas ameixas decidiam amadurecer ao mesmo tempo, ficando muito amarelas e caindo ao chão, porque ninguém gostava de as comer assim tão maduras.
As ameixas "brabas" eram cor de sangue, vermelho muito vivo. Havia uma dessas ameixeiras num bardo um pouco à esquerda e abaixo da casa dos avolitos. E havia também uma à frente da casa da Prima Ali, acima do Cabôco.
A marmelada exclusivamente de ameixas amarelas ficava muito mole, por isso a minha mãe juntava sempre algumas das encarnadas para enxugar. De qualquer maneira, a nossa marmelada preferida, a que desaparecia num abrir e fechar de olhos, era a de ameixas "brabas", porque tinha um azedinho, não era simplesmente doce como a de ameixas amarelas, nem como a de pêra, que se fazia bem mais adiante, no Inverno.
Estou a ver-nos à volta de uma banheira, preparando as ameixas de sangue para a marmelada. Os frutos tinham de estar bem maduros, de forma que quando lhes retirávamos a casca e os caroços, as ameixas tranformavam-se numa pasta vermelha e mole dentro da banheira.
A mesma medida de ameixas, para a mesma medida de açúcar e toca a cozer durante uma hora. Aquele tempo parecia que nunca mais passava e o pior ainda era depois de ter passado, porque a marmelada não se pode comer quente, mesmo que apeteça, porque o mais certo é "intejar" a marmelada, talvez para o resto da vida.
Andávamos à roda da minha mãe, sempre a perguntar se a marmelada já estava cozida, em agonia, e ficávamos contentes quando a víamos pegar num pires e enchê-lo com água fria da torneira "da fonte". Aquele ritual era solene, merecia a máxima concentração. Com uma colher a minha mãe deitava um pouco da marmelada na água e esperava o resultado. Se a marmelada se desfizesse na água, ainda não estava bem cozida. Mas se acaso o pingo de marmelada ficasse enxuto no fundo do pires, no meio da água, então estava na hora de tirar do lume.
Às vezes a minha mãe realizava este teste mais do que uma vez. O que não podia era arriscar a deixar cozer demais, se isso acontecesse a marmelada ficava como "visgo". Era incrível o que comíamos de pão quando havia marmelada! E como ela acabava num instante.
A marmelada aguenta bastante. Mas a de ameixas "brabas" nunca aguentava como a de pêra, que a minha fazia com as pêras lobas da pereira de trás do pôco dos avolitos. São pêras grandes e pesadas, que às vezes o meu avô vendia aos estreiteiros, ainda nas árvores, quando estavam em flor.
Era mais agradável preparar as pêras para a marmelada do que as ameixas: era descascá-las, retirar as partes pisadas, porque a marmelada era feita com as muitas pêras que o vento atirava ao chão, e depois cortá-las aos bocados, retirando o caroço. Mas o resultado era desanimador: a marmelada de pêra era demasiado doce e com uma espécie de areia pelo meio. Ficávamos com saudades e à espera da maravilhosa marmelada de ameixa "braba", escura e com o seu azedinho. Até o doce, a nossa "marmelada", é muito melhor se não for apenas doce, se tiver o tal azedinho. Tal como a vida. A vida é uma enorme taça de marmelada de ameixa "braba".

quarta-feira, junho 15, 2005

"Quem vai adiante..."

"Quem vai adiante, leva o seu brilhante." "Quem vai no meio, leva Nosso Senhor no seio." "Quem vai atrás, leva o seu rapaz." Ouvi estas rimas hoje pela primeira vez. Eram rimas do tempo da minha mãe. Eu nunca as disse, tenho a certeza. Se as tivesse dito, lembrava-me. O mais próximo que me recordo de dizer era: "Quem vai ao mar, perde o seu lugar" ou, em alternativa, "Quem vai a São Martinho, perde o seu cantinho."
Enquanto decidiam quem ia à frente e quem ia atrás no meu carro, a minha mãe ou a minha tia, e depois entravam, a minha tia para a parte da frente, ao meu lado, e a minha mãe para a parte de trás, juntamente com a minha prima, a minha mãe repetiu as rimas da sua infância.
Primeiro exclamou para a minha tia, enquanto esta se ajeitava na parte da frente: "Quem vai adiante, leva o seu brilhante." E logo acrescentou, referindo-se a ela própria, que também ainda procurava ajeitar-se na parte de trás, "E quem vai atrás, leva o seu rapaz." Completou com a situação entremédia: "Quem vai ao meio, leva Nosso Senhor no seio." A minha tia demorou uns instantes a procurar na memória essas expressões mas depois lembrou-se e repetiu-as também, com um sorriso da cor da infância.
Eu, com a minha curiosidade: "Era só assim? Não havia mais nada? Havia alguma rima para "quem vai à frente..."? Não. Não havia nenhuma porque nesse tempo ninguém dizia à frente, mas sim adiante. "Minha mãe dizia tantas vezes, anda p'ra diante!"
Eu nunca disse estas rimas do tempo da minha mãe mas é como se as tivesse dito. As rimas do tempo da minha mãe são rimas minhas também porque o tempo todo é da minha mãe e a minha mãe é do tempo todo. A minha mãe é a própria eternidade.

terça-feira, junho 14, 2005

Coisas do diabo

"Mãe, o diabo existe?" Fui surpreendida pela pergunta assim que entrei na sala de aula. A minha menina perguntou e ficou à espera da resposta certa, verdadeira, inabalável. E quando eu disse que não, que o diabo não existe, ela virou-se para a colega do lado, satisfeita: "Já viste? Se a minha mãe diz que o diabo não existe, é porque não existe." Mais tarde, fiquei a saber que aquele assunto, a existência ou não do diabo, e uma série de crendices à volta dessa figura, tinham deixado apavorados os miudos da escola durante todo o dia.
Uma das coisas que os miudos colocaram a circular na escola foi: "Se andarmos para trás, ensinamos o caminho ao diabo." Tal e qual dizíamos quando eu era criança. Lembro-me de ouvir dizer que se rezássemos o pai-nosso ao contrário em frente de um espelho, o diabo aparecia no espelho. Nunca tentei confirmar nem uma nem outra versão, com medo do resultado. A versão que contaram na escola da minha menina é diferente: "Mãe, a Diana disse que se dissermos três palavrões à frente do espelho, o diabo nos responde."
Foram várias as aventuras ao longo desse dia de escola, e em todas as crianças ficaram apavoradas com uma possível intervenção do diabo. Desde o barulho do vento entrando pela frecha de uma porta à água acastanhada da ferrugem, que saiu de uma torneira pouco utilizada. Ela voltou a perguntar: "Mas não existe mesmo? Tu tens a certeza?" Dei por mim a repetir que não, que o diabo não existe. Mas acrescentei que existem pessoas tão más que parecem o diabo. Ou o "demôine", para usar um sinónimo madeirense.
Lembrei-me de uma outra superstição sobre o diabo e de um episódio da minha infância de que nunca me esqueci. Não lhe contei para não a amedrontar, pois tenho bem presente o medo terrível que senti nesse dia, em que eu e as minhas irmãs chamámos palavrões à Margarida porque ela não nos quis levar com ela. Estávamos em cima do terraço da cozinha, e ela em baixo, no nosso terreiro, quando a chamámos "macaca estuporada" como retaliação. Ela disse que o diabo aparecia a quem dizia palavrões.
Nós não ligámos àquilo e fomos sossegadas para baixo, para dentro de casa. Estávamos no quarto dos meus pais a brincar, enquanto a minha mãe fazia a cama, quando ouvimos um barulho no terreiro. Espreitámos através da janela e vimos uma coisa preta a mexer-se. Ficámos paralizadas de medo, embora tenhamos reconhecido o xaile negro e muito velho da minha avó, que cobria a Margarida, enquanto ela levantava os braços e fazia "Uhhhh", com os dentes brancos luzindo por um buraco do xaile. Eu sabia que só podia ser a Margarida mas fiquei sempre com uma pequena dúvida lá dentro: e se não fosse?
Lembrei-me desta história depois de sossegar mais uma vez a minha menina em relação à existência do diabo. Sorri para mim mesma, olhando a cena com um certo carinho. A Margariada travestiu-se de diabo com o xaile da minha avó: Quantas vezes melhor um diabo assim a fingir do que os muitos diabos que por aí andam à solta travestidos de gente.

segunda-feira, junho 13, 2005

Quando eu me precatei...

Quando eu me precatei, ela estava de branco vestida e com flores brancas no cabelo. Na primeira fila, cantava a mesma canção que eu cantei há trinta anos: "Anjos do Céu, que por amor inflamam...". Quando eu me precatei, daí a instantes, vi-a ser chamada para a primeira grande responsabilidade da cerimónia. Arregalei os olhos para as lágrimas não cairem quando a ouvi ler na perfeição todas as palavras difíceis da primeira leitura, do Livro do Êxodo. Leu sem hesitar, com voz segura e clara.
Passou tudo demasiado rápido. Quando eu me precatei, já ela estava na fila, à frente, para ir receber a primeira comunhão. E daí a pouco, quando eu me precatei, já ela estava a acender a vela do baptismo. Depois, vi-a correr em alvoroço para me saudar e de súbito desaparecer pela igreja à procura de outros familiares a quem queria cumprimentar. Quando eu me precatei já tinha terminado a primeira comunhão da minha menina.
Quando eu me precatei....Uso a expressão antiga para um sentimento que me parece sempre novo. O sentimento da descoberta de a ver crescer, de a ver cumprir rituais que assinalam etapas de vida, de a ver ultrapassar obstáculos, numa corrida em que o tempo não pára, mesmo que fiquemos imóveis tentando reter tudo, tentando fazê-lo parar, adormecido no silêncio da nossa respiração retida, sem som.
"Quando eu me precatei": quando eu dei por mim, quando eu me apercebi.
Tenho os olhos molhados e contentes, cheios da emoção de todos os dias. Levanta-te, esta roupa é bonita, sim senhora, claro que é, já lavaste os dentes?, despacha-te com o pequeno almoço, já tens a pasta da música?, hoje não poderei ir buscar-te à escola, vais para casa da avó, tira o cabelo dos olhos, que mania, de certeza que os deveres da escola estão todos feitos?, já viste duas novelas, não precisas ver a terceira, para a cama, não digo mais nenhuma vez, cama, está bem, hoje podes dormir na minha, boa noite, dorme bem.
Quando eu me precatei já passaram mais de nove anos dentro desta alegria de mãe. Quando eu me precatar mais anos terão passado. Por isso, eu arregalo os olhos e mantenho-os molhados, e vou vivendo na emoção das pequenas coisas de todos os dias e nas grandes coisas dos dias grandes como o de ontem, em que me precatei com ela de branco vestida, com flores brancas no cabelo, entoando a mesma canção que eu cantei no dia da minha Primeira Comunhão.

quarta-feira, junho 08, 2005

O tempero das pessoas

"É uma pequena; parece que ainda nem sequer está bem temperada!" Ouvi esta expressão para descrever uma rapariga que já deve andar perto dos trinta mas mantém um ar "menineiro", em suma, uma daquelas pessoas que parecem sempre mais novas do que na realidade são. Reconheci e voltei a achar graça ao uso do verbo "temperar" aplicado a pessoas. " Na adolescência, em tardes dedicadas ao bordado ou à tela, por entre os pontos da agulha, e a atenção dispensada às cores das linhas ou das lãs, ao risco do desenho, ou à peça do modelo, lembro-me de fazermos comentários a respeito dos rapazes do sítio e de ouvir às mulheres mais velhas sentenças como esta:"É verdade que ele agora não tem graça nenhuma, mas quando temperar vocês vão ver, há-de ser bonito como um cravo." A minha avó adorava usar a expressão "bonito como um cravo" para os rapazes e "bonita como uma rosa" para as raparigas. E não era difícil ela achar as pessoas bonitas. Para ela, eram praticamente todas.
Mas afinal o que é "uma pessoa bem temperada"? É uma pessoa com os traços, ou as feições já bem definidos, não sujeitos a grandes variações que não sejam as normais do envelhecimento, como as rugas ou os cabelos brancos. O conceito deste "tempero" das pessoas é ter tudo na medida certa, depois daquela fase em que no rosto das pessoas há sempre algo que parece grande ou pequeno demais, ou estranho, como o nariz, a testa, ou as faces cheias de espinhas. Sempre ouvi a expressão usada para o aspecto físico, mas talvez se possa acrescentar a maturidade de sentimentos, pensamentos e acções.
De repente, surpreendo este pensamento: Ao tempo que eu estou "temperada", há tanto tempo que chega a ser assustador. É porém um medo breve, dura apenas uns instantes. Afinal, o "tempero" é a medida certa e nada melhor do que o equilíbrio. Mas também é bom assistir ao crescimento, (especialmente se não é o nosso, comenta o meu eu adolescente) e eu vou tentar assistir ao processo de "tempero" da minha menina transmitindo-lhe a serenidade que ninguém pode ter enquanto não está "temperado". Ela vai irritar-se com os meus comentários e os meus conselhos, é claro que vai, também faz parte. Ela já é linda, mas quando "temperar" há-de ficar ainda mais, de feições e de coração.

quinta-feira, junho 02, 2005

Alcançar

Há três dias que eu não como
Há quatro não bebo vinho
Há cinco que eu não alcanço
Da tua boca um beijinho

A voz é bonita. É a da minha mãe. A quadra também é bonita, deve tê-la aprendido na infância distante, na altura em que faltava tudo menos cantigas. Havia pouca comida, havia só um vestido, e os pés andavam descalços, mas havia um infindo número de cantigas, para todos os casos e para todas as ocasiões, para todos os trabalhos, festas e ritmos.
"Mãe, o professor não mandou trabalho de casa, ouviste? Vamos ficar três dias sem fazer trabalhos. Três!" Com a excitação dos previstos dias de brincadeira, sem obrigações escolares, a minha menina carregou na forma como disse este "três" final.
Ao meu lado, a voz cristalina da minha mãe, de imediato se transformou nesta cantiga, entoada ao som de um brinco imaginário.

Há três dias que eu não como
Há quatro não bebo vinho
Há cinco que eu não alcanço
Da tua boca um beijinho

Quatro simples versos e muito se podia dizer sobre eles. Qual a falta maior? E a subjectividade do tamanho do tempo!
Calada, embrenhada nestes pensamentos, fixei-me na palavra "alcançar", que há tanto tempo não ouvia. Agora as pessoas preferem dizer "conseguir" em vez de "alcançar". Alcançar era mais bonito. A minha avó dizia: "Pega-te com Nossa Senhora do Monte. Eu já alcancei muitos milagres."
Também tenho saudades do outro sentido da palavra. Parece que já ninguém vai alcançar ninguém. Mas antes "ir alcançar alguém" fazia parte da rotina diária de qualquer pessoa, porque as veredas eram longas, os caminhoas dificeis, e havia talvez mais vontade de ajudar ou de estar com os outros.
Na vereda em frente da nossa casa, muito ao longe, onde as pessoas ficavam do tamanho de formigas, às vezes parava alguém e fazia um gesto na direcção da nossa casa. Havia sempre alguém que reparava no movimento da vereda, e que conseguia não só distinguir esse gesto, mas ´como distinguir quem era, pelo vestido que trazia, pela moda do cabelo, ou por outra qualquer indicação, talvez intenções ou voltas previamente anunciadas.
E lá ia alguém "alcançar". Encontravam-se a meio da vereda e a pessoa que tinha ido "alcançar" normalmente ajudava a trazer algum saco que pesava e oferecia companhia para o resto do caminho, que passava a ser mais leve, a ter mais sombra, a ser bem melhor de percorrer por já não ser solitário e porque a conversa distraía das piores subidas e num instante já estava passada a ribeira e o poço da fonte e só faltava a ladeira, depois de um descanso debaixo do castanheiro da Ti Carolina.
Durante anos, a minha mãe ia alcançar-me à paragem do autocarro, ao Valeparaíso, nos dias pequenos, em que anoitecia demasiado depressa. Levava um olho-de-boi e conversávamos durante a meia hora que demorava a percorrer o caminho de volta a casa. Por vezes, os dias ficavam grandes e era ainda dia, mas ela lá estava, junto á paragem do autocarro. Tínhamo-nos habituado àquela conversa diária por entre pinheiros e eucaliptos, ao cair da tarde.
Que saudades eu tenho de todas os significados e de todas as formas e concretizações deste verbo "alcançar".

quarta-feira, junho 01, 2005

Nonas e Anonas

Uma anona! Que inesperado presente, ainda para mais no último dia de Maio. Ofereceram-me uma anona, e eu fiquei com ela na mão e com um sorriso grande e foi com esse sorriso e com o brilho dos olhos que agradeci o presente-surpresa. A anona foi-me oferecida por três raparigas italianas, que nos últimos anos estiveram a traduzir para essa língua fantástica, cheia de música, 28 contos madeirenses. Um dos pequenos contos que elas traduziram e agora faz parte do livro "Nostalgia Dei Giorni Atlantici" foi escrito por mim e foi por isso que eu tive direito a uma anona que tem a forma de um coração.
Durante as traduções, elas encontraram algures a palavra anona e essa palavra, de um fruto que não conheciam, nem conseguiam imaginar com era, nem que sabor tinha, passou de certa forma a simbolizar a aventura desconhecida e deliciosa que era a aproximação, através das palavras, à cultura, ao imaginário, aos cheiros e aos sabores de uma ilha distante.
No colóquio em que apresentaram textos maravilhosos sobre a experiência de todos os sábados das suas vidas nos últimos cinco anos, porque era os sábados que dedicavam à tradução do madeirense para o italiano, levaram anonas, os frutos que tanto as intrigaram e que finalmente puderam conhecer tocando-as, sentindo-lhes os nós da casca, aspirando o cheiro e demorando a boca no exótico sabor. Levaram um cesto com anonas e no final ofereceram uma anona a cada um dos autores presentes.
Fiquei com a anona na mão, como um coração que batia e falava. Foi por acaso, mas acho que fiquei com a anona mais bonita.
Fiquei durante muito tempo com aquela anona na mão, enquanto regressava, devagar, ao local onde tinha o carro estacionado. Demorei-me de propósito, sentindo-lhe os desenhos da pele, o peso, os verdes, e sobretudo a bonita forma de um coração. E também me lembrei do tempo em que as anonas eram apenas "nonas". Antigamente as anonas não tinham um "a" no início.
Na infância as anonas eram "nonas" apenas. Na nossa casa nunca tivemos uma anoneira sequer, nem em casa dos meus avós, rodeada de tantas árvores de frutos, houve alguma vez uma. As anoneiras que conheci existiam junto à casa da minha tia Ascensão, nas Eiras, e junto à casa da "Tia do Pão", cujo nome merece uma história sozinha. Em São Roque, em casa dos tios da minha mãe, acho que também havia anoneiras, mas delas apenas me lembro de frutos que às vezes vinham juntamente com as visitas. Num poio abaixo da casa dos meus tios Catorze (outra alcunha cuja história merece ser contada) e Salomé também existia uma, que aliás lhes sobreviveu. Mas essa não conta porque nunca foi enxertada e sempre deu "nonas" minúsculas, muitas vezes sem gosto, porque é isso que acontece quando as árvores não são enxertadas. O ano passado, como por magia, as "nonas" eram muito saborosas, apesar de se manterem pequenas em tamanho, e com a vantagem de serem fáceis de apanhar, pois essa anoneira nunca cresceu para cima, mas sim para os lados, mantendo os ramos espalhados, praticamente à altura das nossas mãos.
"Queres uma nona?"A voz que me faz esta pergunta é da minha tia Salomé, que bom voltar a ouvir-lhe a voz ainda que apenas retirada da memória. "Quero sim, obrigada pela nona, tia." "Nona".
Só quando vi a palavra escrita pela primeira vez, já não me lembro quando nem onde, é que me apercebi do subtil roubo do "a" inicial. Dois "as" seguidos, na verdade, não dá muito jeito para dizer e as pessoas sempre gostaram de abreviar, há outros exemplos no madeirense falado em que desaparecem letras que de alguma forma parecem estar a mais, ou complicam a pronúncia.
"Nona", como os frutos da infância que também se colocavam em cima da mesa na lapinha, ou "anona" como o fruto que me foi oferecido por três raparigas italianas, ligadas à ilha pela magia e pelo poder das palavras. "Nona" como ouvi dizerem os mais velhos quando era pequena, ou "anona" com a pronúncia perfeita do português aprendido e com a musicalidade da língua original de quem aprendeu. "Nona" ou "Anona". As duas palavras são, para mim, igualmente perfeitas, porque são perfeitas as memórias, os sabores e os sentidos que delas agora guardo.

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