sexta-feira, setembro 29, 2006

Parece quem 'tá variando

Esta foi uma das expressões que me habituei a ouvir enquanto crescia. Era dita sempre que se nos deparava um qualquer facto inacreditável. Perante um acontecimento que causava espanto, normalmente pela negativa, porque chocante, lá vinha a exlamação: "Parece quem 'tá variando!"
Muitas vezes surpreendo a expressão bailando-me na memória. Se não ganha asas e toma forma é só porque o mais provável seria ter de explicar o que significa. Mas são tantos os factos estranhos, impensáveis, são tantos os que acontecem diariamente que uma pessoa parece que "está variando".
Penso que a expressão "variando" poderá ser uma deturpação linguística de "delirando", pois sempre a associei a esse conjunto de fragmentos, desorganizados e sem sentido, que caracterizam o delírio.
Penso que se pode traduzir "parece quem 'tá variando" como "parece mentira". Mas a primeira expressão tem outra força, sem dúvida. Revela com mais excatidão o espanto perante o que devia ser impossível mas afinal está à frente dos nossos olhos.
"Parece quem 'tá variando". Não consigo dizer mais nada.

quarta-feira, setembro 27, 2006

Vassourinha nova varre bem

As aulas recomeçaram há dois dias e nesses dois primeiros dias, as coisas correram muito bem lá em casa. A minha menina escolheu a roupa de véspera, programou o despertador para a hora que lhe pareceu mais conveniente, saltou da cama assim que este tocou, tomou o pequeno almoço, arrumou o lanche na mochila, e não se esqueceu de nada em casa.
Pois bem, ontem eu fiz a asneira de me gabar deste início de ano sem muito sono de manhã, sem birras para ver novelas à noite, e sem a roupa toda se tornar feia à última da hora. A minha mãe olhou para mim e disse, no seu tom habitual, calmo e sábio: "Vassourinha nova, varre bem."
Se calhar estou a ficar com problemas de memória, mas juro que não me lembro de ter antes ouvido ou usado esta expressão tão simples e tão engraçada. A minha mãe teimava que sim, que era impossível eu nunca ter ouvido nem usado uma expressão tão comum e ainda por cima mais velha do que o norte.
"Vassourinha nova varre bem." No princípio parece tudo é bom, tudo é fácil. O pior é depois. E neste caso, parece-me que o meu depois começou hoje, o terceiro dia de escola deste ano lectivo. Para já, o único problema é que a cama estava muito quentinha e custa muito sair de uma cama quentinha às sete da manhã, temos de concordar. Como seria bom se as vassourinhas fossem sempre novas e varressem sempre tão bem como no primeiro dia!

A ninguém dói o coração, como ao dono do furão

Descobri por acaso este antigo provérbio e, a propósito dele, aproveitando que a minha mãe estava de pachorra, estivémos a escarafunchar memórias ao longo da tarde.
Começámos por reflectir no sentido do provérbio. "A ninguem dói o coração como ao dono do furão." É bem verdade, ora se é. Ninguém sente verdadeiramente as coisas a não ser quando passa por elas. "Mesmo que uma pessoa diga que tem muita pena, nunca é a mesma coisa. Só sabe quando lhe chega." Explicado o sentido do provérbio, passámos para o furão. Eu nunca vi nenhum, mas a minha mãe fartou-se de ver o furão que o Ti Caquilha levava para a caça, dentro de uma caixa de madeira redonda, com uns furos num lado para o furão respirar, e colocada à bandoleira.
Descreve o animal como um bicho feio, muito magro e comprido. Reles também. Era usado pelos caçadores para obrigarem os coelhos a sairem das luras. Na véspera da ida à caça, o furão tinha de ser muito bem alimentado, para não cair na tentação de comer a caça.
Muitas vezes, o furão amuava dentro da toca dos coelhos e teimava em não sair de lá para fora. Os homens ficavam furiosos. Tinham de ficar horas à espera que ele se decidisse e a minha mãe diz que até houve casos em que acabaram por deixá-lo na serra e voltarem no dia seguinte, à procura dele, porque entretanto tinha anoitecido e ele não saía para fora por nada.
Daí a uns instante, damos por nós a falar da utilização da palavra furão em sentido figurado. "Aquilo é um furão!" Esta expressão pode ser utilizada, com toda a propriedade, para classificar pessoas. Refere-se a pessoas muito espertas, no sentido em que conseguem furar tudo, e chegar a qualquer lado, resolver qualquer situação.
Um simples provérbio deu muito pano para mangas.
A ninguém dói o coração como ao dono do furão. Nem mais. Cada um sente as suas dores de forma única. Qualquer dor acaba sendo muito solitária. Porque a ninguém dói o coração com ao dono do furão.

terça-feira, setembro 26, 2006

História de um carneirinho

Nas minhas recolhas de 1986, encontro a história de um carneirinho, em verso, que foi me foi dita pelo senhor Josezinho, vizinho de sempre da casa dos meus pais. Penso que está incompleta. Ao reler os versos que então escrevi, à medida que ele os ia dizendo, tenho a impressão de que faltam alguns entre a terceira e a quarta quadra. Não é costume estas histórias serem tão curtas. Também me ocorreu que talvez estes fossem versos do Feiticeiro do Norte. Muitas pessoas sabiam de cor os seus versos e não era de admirar se este fosse um desses casos. De qualquer forma, aqui fica registada a história, agradeço a quem a souber, que me ajude a completá-la.


Quando eu era rapaz novo
Fui a São Vicente ao gado
E eu comprei um carneirinho
Que me custou um cruzado

Eu vinha pelo caminho
Disseram benza-te Deus
Qu'o carneirinho é pequeno
Mas quem dá sorte é Deus

Um dia 'tava na cama
Tinha a boca como fel
E o carneirinho soltou-se
Pela corda e o cordel

(......)

E o carneirinho foi morto
A vinte e cinco de Agosto
A pelinha que ele tinha
Deu p'ra pagar o imposto

As perninhas que ele tinha
Deu uma roca p'ra fiar
E até as pobres caganitas
Deu umas contas p'ra rezar

(José da Trindade Quintal)

quarta-feira, setembro 20, 2006

Prender pelas pontas todas

Acho que todos nós, nem que seja de vez em quando, caímos na asneira de "prender pelas pontas todas."
Fazemos isso quando tudo parece demasiado mau. Quando não nos apetece enxergar soluções. Quando as saídas apontadas pelos outros nos irritam em vez de nos animar.
É exasperante ver alguém "prender pelas pontas todas", apetece dar-lhe uma malha bem dada, para que veja as coisas como são em vez de as dramatizar, colocando um entrave a qualquer possível e imaginária maneira de resolver o problema.
"O que é que queres que te diga, se tu prendes pelas pontas todas?" A minha mãe é perita em identificar a situação. À segunda desculpa, faz logo o diagnóstico: "Estás a prender pelas pontas todas."
"Prender pelas pontas todas" exige mais esforço mental do que tentar descobrir uma solução. No entanto, as pessoas são capazes de permanecer agarradas a esse subterfúgio por um tempo indefinido.
Reconheço que faço isso às vezes. Prendo pelas pontas todas. Não vejo soluções. Em tudo o que me apontam, vejo um entrave. Só entendo bem a estupidez desse comportamento quando sou eu a estar do outro lado, a tentar lidar com alguém que "prende pelas pontas todas".
"Que queres que te diga, se tu prendes pelas pontas todas?" Talvez o melhor seja ficar calada e esperar que onda passe.

terça-feira, setembro 19, 2006

Quem dá aos pobres, empresta a Deus.

Este era um dos ditados preferidos da minha avolita. E ela não se ficava pela teoria. Todos os dias passavam no nosso sítio muitos pobrezinhos, sobretudo de Machico e do Caniçal, e ela ficava com pena de todos.
A minha avolita não tinha quase nada, a comida escasseava para alimentar a casa de dez pessoas, mas ela ninguém passava naquele terreiro sem saciar a fome ou levar alguma coisa. Parecia que ela fazia um verdadeiro milagre de multiplicação.
Muito crente em Deus, na virgem e em todos os santos possíveis, a minha avolita dava aos pobres porque "quem dá aos pobres empresta a Deus". O pago haveria de chegar, mais tarde ou mais cedo. Fiando-se na justiça divina, passou este ensinamento a todos os filhos.
"Quem dá os pobres, Deus depara o dobro", disse ela ao meu tio João, que era o menino da casa, num certo dia em que passou por aqui um pobre do Caniçal. "Ah, João, dá ao pobrezinho aquele dinheiro que tu tens. Olha que Deus ajuda. Ele depara o dobro daquilo que se dá aos pobres."
O meu tio ouviu aquilo, fez contas de cabeça e depressa concluiu que ficaria a ganhar com aquele negócio com Deus. Tinha quatro escudos. Ora, se Deus dava a dobrar, ficaria com oito escudos, nada mau!
Foi buscar o dinheiro que tinha em cima do toucador e deu-o ao pobrezinho do Caniçal, contente com o primeiro bom negócio da sua vida. O pobrezinho foi embora, contente também, e o meu tio ficou à espera que se cumprisse a segunda parte do negócio: a parte em que Deus lhe deparava o dobro. O dia foi avançando, avançando....e nada.
O meu tio João foi ficando preocupado, cada vez mais preocupado, até que desatou numa choradeira infernal. Chorou quanto pôde até que a minha avó se viu obrigada a lhe dar os oito escudos que ele estava à espera de receber de Deus.
Esta história aconteceu há perto de sessenta anos, e nunca mais foi esquecida. De vez em quanto, lá está alguém a recordar o caso dos quatro escudos que o meu tio deu ao pobrezinho do Caniçal, porque a minha avó o convenceu de que Deus deparava o dobro.
O meu tio era criança e não entendeu a metáfora. É verdade que Deus dá o dobro. Dá em alegria, dá naquilo que se sente quando se consegue ajudar alguém que realmente precise. E quem tiver dúvidas que pergunte aos Criadores de Sorrisos .

sábado, setembro 16, 2006

À janela


No mesmo caderno amarelado de que falei, descubro inúmeras quadras, ou versos como diria a minha avó. Alguns são do brinco (fixados dos brincos que se faziam na festa, ou dos que se faziam na ida aos grandes arraiais da ilha), outros da erva ou do trigo, outros da Romagem do Triguinho ou de outras romagens, alguns do xaramba...
Foram registados tal como a memória da minha avó, da minha mãe e dos meus tios os foi desencantando. São muitos e no velho caderno não respeitam qualquer tipo de organização.
O primeiro que leio fala numa janela (e eu gosto tanto de janelas!) e por isso decidi juntar neste post outros "versos" que se refiram a esse elemento, bem como a varandas. As primeiras quatro quadras foram recolhidas junto de Maria de Jesus Ornelas e a última de Justina Fernandes.




Tenho na minha janela
O que tu não tens na tua
Um ramo de violetas
Que dá cheiro em toda a rua

Rua abaixo, rua acima
Mariquinhas na janela
Comendo sopinhas d'alho
Afogada seja ela
(24/03/1986)

Quem me dera 'tar agora
Onde o meu sentido anda
Pelas portas do céu dentro
Por cima de uma varanda
(29/03/2006)

Menina que 'tá à janela
Lindo cabelo rifado
Não sei a menina
Como não se tem casado
(sem data)

Eu ia por aqui abaixo
Escorreguei num poça
Dei um salto a uma janela
Dei um beijo numa moça
(sem data)

Romance

Há vinte anos, quando comecei a recolher versos, histórias, e todo o tipo de tradições da zona em que vivo, a minha avó ainda nos fazia companhia e lembrava-se de excertos de alguns antigos romances tradicionais. Não se lembrava de nenhum na totalidade, mas de alguns ainda conseguia dizer grande parte. Tinha então oitenta e seis anos e a memória começava a atraiçoá-la, como é natural. Eu tinha gosto em ouvi-la e ia escrevendo essas histórias num pequeno caderno, mesmo sem estarem completas, mesmo com as hesitações dela pelo meio, mesmo sem sequer saber o título. Nunca tive tempo de investigar de que romances se tratavam. Mas ainda guardo, com imenso carinho, todas as anotações que fui fazendo nesse ano de 1986. Dei com o velho caderno um destes dias e lá dentro, numa folha solta, estava este romance tradicional, a parte que dele a minha avó se recordava. São benvindos todos os contributos, pois gostaria de saber de que romance se trata.

Menina que tanto sabe
Também há-de saber ler
Sei ler e sei escrever
Também sei andar de roda
Eu tinha perfeito gosto
de entrar na sua escola
(ou: ainda gostava de entrar
Menina na tua escola)
Minha escola 'tá fechada
Nela não entra ninguém
Só a quem eu tenho amizade
A quem mais eu quero bem
A quem mais eu quero bem
Dentro do meu coração
Mas eu peço por caridade
Que não me toques c'a mão
Eu não te toco c'a mão
Nem me desvelo convosco
Mas dormir na tua cama
Eu tinha perfeito gosto
Esse gosto que vós tendes
Desgostai por vida vossa
Que esta rosa que aqui vedes
Já é doutro não é vossa.
Se essa rosa não é minha
Eu espero dela ser
Menina diga a seu pai
Que nos mande a receber
Não digo nada a meu pai
São palavras escusadas
Qu'eu não 'tou p'ra fazer coisas
.....................................................

sexta-feira, setembro 15, 2006

Adepois

Os meus pais ainda usam esta palavra para localizarem algo que aconteceu há pouco tempo. " - Foi há muito tempo?" "- Não. Foi adepois". É tão normal ouvir a palavra "adepois" com tal significado que só há pouco reparei como é curiosa esta utilização.
Não fora um colega meu dizer que ouviu a expressão não sei onde depois de muito tempo sem a ouvir e eu não me lembraria de que a ouço praticamente todos os dias.
O que é curioso é que "adepois" (dito "adepôes") se usa tanto para significar posterioridade como anterioridade. A mesma, exacta palavra pode ter sentidos totalmente contrários. Pode já ter sido e pode ainda vir a ser. Tudo depende do contexto, da forma como é dita.
Este "adepois" (ou "adespois") , palavra pequena, à partida sem nada de especial, é simplesmente brilhante. Porque aumenta o fascínio da língua. O duplo sentido, e neste caso sentidos antagónicos, torna ainda mais interessante a forma como falamos.

"Vi correr, corri também"

"Vi correr, corri também". A expressão surge de imediato, para ilustrar uma qualquer situação em que alguém repete o que viu fazer, sem questionar nem as razões nem as consequências, nem nada.
Quando as pessoas se limitam a imitar os outros, a maioria, sem ao menos saberem o que estão a fazer, o povo do meu sítio esboça um sorriso e conta um episódio que não consigo precisar bem no tempo.
A história passou-se com um rapaz lá do sítio, coitado, parece que tinha alguns problemas de desenvolvimento intelectual.
Um certo dia, viram-no a correr desalmadamente e perguntaram-lhe porque o fazia. Ele encolheu os ombros: "Vi correr, corri também!" Não tinha outra explicação.
Assim fazem muitas pessoas, infelizmente. Vêem correr, correm também. Sem pensar, sem questionar, sem ao menos tentarem informar-se. Se virem criticar, criticam. Se virem aplaudir, aplaudem.
O rapaz do meu sítio, que eu não cheguei a conhecer mas que ainda hoje é lembrado por causa desta expressão, ao menos tinha um bom alibi, não tinha culpa de ter nascido assim. Mas não é o caso dos outros, que correm por verem correr. Desses é que eu tenho pena.

segunda-feira, setembro 11, 2006

Azougar

Há poucos dias, dei por mim a usar o verbo "azougar". Olhei para o pequeno aquário que tenho em cima da jardineira da sala e um dos meus peixinhos vermelhos estava a boiar na água. Corri na tentativa de o salvar, mas nada consegui fazer. O peixe vermelho tinha azougado. "Terá sido o Neptuno ou a Ondinha?" quis saber a minha filha, pesarosa. Mas eu não sei distinguir os machos das fêmeas e o mais provável até é que fossem os dois do mesmo sexo.
Ficámos tristes com aquela perda. Mas porque será que o nosso peixinho azougou?
Azougar é o sinónimo de morrer quando nos referimos a animais. Os animais não morrem, azógam. Há quem diga azoigar, com um i ao meio da palavra.
Nunca tive muita sorte com animais domésticos. A todos os cães que tive aconteceu uma destas coisas: ou desapareceram, ou foram roubados, ou azougaram. Quando passei os peixinhos, a sorte não mudou muito. O Neptuno e a Ondinha foram as primeiras excepções. Nadavam no pequeno aquário de bola há quatro anos exactos. Talvez por terem sido oferta da minha irmã, quando nos mudámos para o apartamento. Talvez por terem sido oferecidos com imenso carinho.
Azougar usa-se para os animais e, nesse caso, é triste. No entanto, também já a ouvi aplicada a seres humanos, de forma irónica, e nesse caso a palavra torna-se emgraçada. "Parece quem anda azougando!", exclama a minha mãe, sempre que vê uma pessoa muito magra e pálida, talvez em resultado de alguma dieta doida. Ou então, como reacção à teimosia de alguém, que insista em não ter comportamentos saudáveis. Perante as orelhas moucas a bons conselhos, eis que sai a expressão: " Era bem feito era te deixar azougar p'ra aí."
No meio disto tudo, há algo que eu sei que não vai azougar tão cedo, se depender de mim: este blog.
O Rabo do gato acaba de ficar com 250 textos exactos. Não celebro com chamapnhe. Apenas com mais um obrigado a todos aqueles que me têm lido e valorizam, tanto como eu, as particularidades da linguagem popular e das tradições da nossa ilha.

Falar à política

Uma das histórias que me contaram na infância, narra a aventura de três irmãos que, num belo dia, sairam de casa com o intuito de irem aprender a "falar à política".
Lá foram eles pelo caminho, e ao passar num certo local ouviram a expressão "nós todos três." Começaram a repeti-la, para a fixarem na memória, pois era concerteza bonita, sinónimo de um falar elevado.
Mais à frente, iam a passar noutro lugar, ouviram uns comerciantes estarem a negociar e da conversa fixaram a expressão "um alqueire de sal". Tal como anteriormente começaram a repeti-la, para não a esquecerem.
Continuando a sua aprendizagem, passaram por um sítio onde aprenderam a expressão "justa razão."
"Nós todos três". "Um alqueire de sal". "Justa razão."
Os três irmãos estavam contentes com a sua aprendizagem e desejosos de pôr em prática os novos conhecimentos.
Iam a passar por uma cidade, onde acabara de haver um roubo (ou tinham morto um homem? Nesta parte da história a minha memória confunde-se...) e acabaram presos pelas autoridades, para interrogatório.
A primeira pergunta foi se sabiam quem tinha feito o roubo. Os três irmãos responderam prontamente: "Nós todos três." À segunda pergunta quiseram saber exactamente o que havia sido roubado (ou seria o motivo do assassinato? Amemória atraiçoa-me...). Os três irmãos, respondem de imediato: "Um alqueire de sal". Perante a aparente confissão, a polícia transmite-lhe que vão ser acusados e condenados. Em côro novamente, os três irmãos afirmam: "Justa razão!"
Acaba mal a história dos três irmãos que foram aprender a falar à política. A história parecia-me muito injusta e ficava cheia de pena deles, talvez porque nessa altura, a expressão "falar à política" significasse falar bem, usar palavras caras, não dar erros de português, ter um sotaque da cidade, de quem andara na escola, por oposição ao do povo analfabeto.
Nunca mais ouvi a expressão "falar à política", talvez porque simplesmente perdeu o sentido. Basta ouvir os discursos dos políticos. Hoje os políticos falam mau português, fartam-se dar erros, contradizem-se, são imprecisos e enrolam o discurso de tal forma, que normalmente acabam por nada dizer.

domingo, setembro 10, 2006

O jogo do açúcar

Cada época se reflecte nos jogos dos mais pequenos e penso que o "Jogo do Açúcar" é prova disso. Era um dos jogos mais apreciados na infância da minha mãe. Uma das raparigas assumia o papel de mãe e, enquanto se preparava para ir à cidade (não era preciso dizer qual porque só havia uma), distribuía pelas filhas diversas tarefas domésticas.
As filhas prometiam realizá-las, mas assim que amãe abalava, assaltavam a caixa do açúcar e comiam-no todo.
Quando a mãe chegava, sentava-se, mostrando imensa fadiga. Dizia: "Ah mê Deus quema ê nã posso. Vocês que me façam uma chícara de café."
Aqui éque começava o problema, pois não havia açúcar para o café. Então, as filhas começavam a inventar desculpas. Inventavam as mais variadas desculpas, para não poderem trazer à mãe uma chávena de café, desde o facto de o açúcar ter formigas, ao de ter um rato morto na caixa do açúcar.
Desconfiada, finalmente a mãe levantava-se a ia confirmar o que tinha acontecido ao açúcar. Quando se apercebia de que as filhas o tinham comido todo, pegava num pau e dava uma malha em cada uma. Agarrava uma a uma e ia batendo com o pau no chão, enquanto elas fingiam gritar.
Ora, no tempo em que todas as crianças brincavam ao jogo do açúcar, este era um bem raro e precioso. Em tempos marcados pela segunda grande guerra, o açúcar era racionado e muito difícil de conseguir. A minha mãe conta que passava no sítio uma mulher a quem baptizaram "a mulher do açúcar" porque ela trazia um pouco de açúcar, que conseguia através de um familiar, para trocar por produtos da terra.

Amassar pão

A minhã avó amassava pão todas as semanas. Senão como seria para alimentar aquela casa de gente? Dez pessoas no total, sem contar com os muitos pobrezinhos que passavam todas as semanas pedindo esmola e que a minha avó, mesmo tendo muito pouco, nunca deixava seguirem caminho com fome.
Amassar e cozer o pão era uma tarefa rotineira, que fazia parte das lides domésticas de qualquer casa dessa altura. Quem não tinha forno em casa, ia pedir emprestado o dos vizinhos. Não podia era faltar o pão, ao mens o pão, já que todas as outras coisas faltavam.
Vem isto a propósito de uma lengalenga que todos sabiam então. Uma cantilena que as crianças repetiam e repetiam, talvez enquanto esperavam com impaciência que o pão fosse amassado, levedasse e cozesse no formo, porque era certo um brindeiro para cada um.
Encontrei-a registada num velho caderno, com uma data de fins de Março de 1986, e a indicação de ter sido dita pela minha mãe.

Minha mãe amassa hoje
amanhã faz o fermento
quinta-feira aquenta o forno
Sexta deita-lhe o pão dentro
Ao sábado tira p'ra fora
Ao domingo ainda 'tá quente

Pelas minhas contas falta um dia. Será que a lengalenga está incompleta ou é mesmo assim, porque afinal o que mais interessa é rimar?

Aprender a linguagem dos melros

Lembrava-me vagamente de me contarem esta história quando era pequena. A história do rapaz que decidiu ir aprender a linguagem dos melros.
Hoje surpreendi-me ao ouvir a minha mãe contá-la aos netos, procurando diverti-los por uns minutos, e quase fazendo esquecer o insuportável calor da meia-tarde.

Era uma vez três irmãos. Um dia, eles caminharam de casa para irem aprender coisas. (Aqui a minha mãe hesitou um pouco. A história original devia conter mais pormenores nesta parte.) Dois deles quiseram ir aprender coisas importantes. Mas o terceiro teimou que aquilo que queria aprender era a linguagem dos melros.
Tanto teimou que foi para o meio de uma floresta e ficou lá imenso tempo, a aprender a linguagem dos melros. Quando voltou vinha todo cagado dos melros e além disso aquilo que aprendeu não tinha utilidade nenhuma. Os outros irmãos, pelo contrário, vinham todos bem vestidos e sabiam coisas que os podiam fazer ganhar dinheiro e ter uma vida melhor.
Tempos mais tarde, apareceram dois melros sempre a brigar junto do palácio do rei. O rei queria à força saber qual era o motivo de tanta briga. Mandaram chamar o rapaz que tinha aprendido a linguagem dos melros e ele descobriu que a razão: Parece que havia lá um ninho, que era de uma, mas a outra foi para lá e depois teimava que os filhos eram dela, quando na verdade eram da outra.
O rapaz conseguiu descobrir o mistério e, em pagamento, o rei deu-lhe um saco de dinheiro. Resultado: ele ficou com muito mais dinheiro do que os outros irmãos, que tinham ido aprender coisas supostamente muito importantes e tinham voltado a casa todos bem vestidos, em vez de chegarem cagados dos melros.

Os netos riram-se. Ouviram a história com toda a atenção, fazendo intervalo a uma disputa entre eles por causa de um jogo que uns queriam jogar e outro não.
Eu também sorri. Não me lembrava de nada dessa parte do rei e do dinheiro. Não resisti a uma pequena interpretação: "Isto quer dizer que tudo o que aprendemos um dia pode ser importante, mesmo que para as outras pessoas pareça não ter a mínima utilidade e seja considerado ridículo."

terça-feira, setembro 05, 2006

Rei e filhos

Ensinei à minha filha e aos meus sobrinhos um dos jogos preferidos da minha infância. Eles adoraram e divertiram-se mais com o jogo do Rei e Filhos do que se teriam divertido com os mais sofisticados e caros jogos da actualidade.
Ficaram os três a olhar, muito atentos, enquanto eu descrevia as regras do jogo . Depois decidiram logo quem seria, primeiro, o rei e inverteram os papéis diversas vezes, por entre risos e cumplicidades.
Um das crianças fica sentada num local que supostamente será o trono. O rei diz então às outras crianças: "Meus filhos, vão passear." Claro que é sempre possível dar um tom cerimonioso à frase. Claro que também é possível acrescentar mais algumas coisas, como pedir-lhes que tenham muito cuidado, que não se demorem, e assim por diante.
Os filhos vão passear e, já longe dos olhares do pai, combinam aquilo que lhe dirão no regresso. Têm de decidir o local do passeio e aquilo que lá foram fazer. Conseguido um consenso, de preferência referindo-se a alguma actividade bastante imaginativa, regressam.
O rei recebe-os com alegria: "Meus queridos filhos! Posso saber onde foram?" Uma das crianças responde com a indicação do local: à cidade, à serra, à praia ou sei lá que mais. E o rei, de imediato, pergunta: "E o que foram lá fazer?" Começa então a parte mais engraçada.
Segundo as regras do jogo, os filhos têm de contar ao pai o que foram fazer ao local referido, usando unicamente gestos. Repetem-nos até que o rei consiga acertar. Muitas vezes, é necessário fazer uma pausa para as gargalhadas, face às tentativas frustradas do rei.
Quando, finalmente, acerta, é hora de trocar papéis. Um dos filhos passa a ser o rei e fica, calmamente, à espera que os outros lhe preparem a adivinha em forma de gestos.
As crianças adoraram. Eu também adorei. Até fiz de rei a determinada altura e coube-me adivinhar algo que no meu tempo seria impossível. Os meus meninos foram ao Iraque e conseguiram capturar o Bin Laden.
Esta simples brincadeira veio provar que é possível manter as nossas antigas tradições, como os jogos que aqui tenho recordado. Basta utilizar um pouco do nosso tempo a explicar como se fazia. Custa bem menos do que um sofisticado jogo de computador, a todos os níveis.

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