segunda-feira, março 27, 2006

Inorar

A propósito de criticar, porque afinal as conversas são como cerejas, uma puxa outra, lembrei-me da utilização de "inorar", uma palavra que ainda hoje ouço dizerem na minha terra.
No tempo em que tomei conhecimento desta nova palavra ela significava criticar. Há poucos dias voltei a ouvi-la com o mesmo sentido. "Ela está sempre pronta a inorar, mas depois ainda faz pior."
Este "inorar" é dizer mal, é apontar defeitos, é criticar por criticar, por maldade. Dentro do espírito da tradicional "bilhardice".
Quando mais tarde aprendi o verbo ignorar no sentido de desconhecer ou de não ligar, fiquei espantada. Lembro-me de ter ficado a pensar, a tentar encontrar uma relação entre os dois termos, diferenciadas por um único "g".
É fácil! A critica é normalmente sinal de ignorância: ignorância- falta de formação, ignorancia-desconhecimento de um assunto, ignorância-em todos os seus mais eruditos sentidos.
Que pena hoje em dia as pessoas serem tão cultas e, no entanto, continuarem a "inorar" tão amiúde e tão sem razão que não a das dores de cotovelo. Quantas vezes melhor ter o cotovelo roto do que tê-lo a doer!

quinta-feira, março 23, 2006

O roto e o esfarrapado

"Isso é o roto a falar do esfarrapado". Gosto desta expressão que hoje ouvi e, se fôssemos rigorosos, poderíamos utilizar praticamente todos os dias. O que não falta por aí são rotos a falar de esfarrapados.
Conheço outras expressões com o mesmo sentido e de uso muito mais restrito. Talvez se limitem ao meu sítio, quem sabe até ao círculo familiar. E são essas expressões mais raras que quero agora quero registar. Uma delas é: "uma frigideira mascarrando outra." E a outra: "Uma semilha comendo outra".
Com o mesmo significado, lembro-me de uma história que ouço a minha mãe contar desde pequena.
Um homem com um buraco no cotovelo da camisola passa por outro passa por outro homem com o sapato aberto à frente. Começa a rir, gozando da situação do sapato roto, e pergunta, com maldade: "De que ri o teu sapato?" O outro responde de imediato: "Do teu cotovelo."
Como é fácil falar do mal alheio! Como é fácil falar dos defeitos ou dos erros dos outros! Como é fácil criticar!
Também o Padre Agostinho, que durante a minha infância e adolescência esteve à frente das paróquias do Caniço e das Eiras, usava uma imagem interessante sempre que queria chamar a atenção dos paroquianos para este mau hábito de ver o alheio e não o que temos em casa.
Parece que estou a vê-lo, já muito idoso e cada vez mais rabugento, no altar que era partido ao meio por uma parede da igreja, olhando para o lado dos homens com um olho e para o lado das mulheres com outro, e fazendo com a mão direita um gesto que materializava a explicação. "Quando se aponta para alguém com um dedo, todos os outros apontam para nós mesmos". E lá estava a mão, a confirmar a imagem.
O olhar, no entanto, tem tendência a acompanhar o dedo que aponta, olhando sempre para os outros, pronto a descobrir a mínima falha passível de ser criticada. Os outros dedos, os que para nós apontam, são esquecidos.
"Isso é o roto a falar do esfarrapado". A pessoa que hoje ouvi utilizar esta expressão referia-se a uma única pessoa, mas no fundo lá no fundo falava de todos nós. Todos somos por vezes esfarrapados, frigideiras mascarradas ou semilhas. Todos apontamos erros que também cometemos, todos rimos de sapatos abertos tendo buracos no cotovelo da camisa.

quarta-feira, março 15, 2006

Abobareiras

Eu sei. A palavra correcta é "aboboreira" mas não soa bem aos meus ouvidos, habituados desde bem pequena a ouvirem a palavra com um "a" no lugar do segundo "o".
"Abobareira" é a palavra que me soa bem, a palvra que me parece normal, porque foi a que eu aprendi a usar sempre que me queria referir à planta que dá abóboras, ou então a uma pequena flor de que sempre gostei, mas que cedo me apercebi ser popularmente odiada devido ao mau cheiro. Acho lindas as capuchinhas que nesta altura tingem os campos de variadas manchas de cor, mas esta palavra é relativamente recente no meu vocabulário. Na infância, aprendi a referir-me a essas flores como "abobareiras do diabo", que sempre é melhor do que a forma como é conhecida noutras freguesias:"bufas de velha".
Sobre as verdadeiras "abobareiras", acho piada à palavra "caseira" que é o nome atribuído ao local onde são plantadas as pevides, que eu durante muito tempo pensei serem "povides", porque era assim que me parecia ouvir as pessoas adultas se referirem a elas.
Recordo também o uso de folhas de "abobareira", bem como pimpineleira, para raspar as partes negras da pele do peixe espada. As folhas, quer de uma quer de outra são àspera e por isso instrumentos ideais nessa tarefa antigamente obrigatória, porque quando se comprava peixe, ele nunca vinha limpo, como agora.
Lembro-me das flores amarelas em forma de canudo, dentro ddas quais as raparigas da geração da minha mãe guardavam zangos (zangãos) na noite de São João, para ps soltarem na manhã seguinte e ficarem a saber, pela rota do voo, o local onde teriam casa quando seguissem o destino de qualquer e se casassem.
Nessa mágica noite de São João, também se enrolava um pouco do nosso cabelo na ponta de uma "abobareira", para que ele fosse crescendo ao ritmo da "abobareira", afinal quanto mais comprido e mais forte o cabelo de uma rapariga, melhor.
Lembro-me de quando as abóboras amarelas eram colocadas, em fila, sobre a beira do telhado da casa, na parte que dava para o terraço da cozinha. Lembro-me das muitas sopas que ao longo do ano seriam feitas com essas abóboras e da planta já seca, retirada finalmente, para dar lugar a outra caseira, com novas pevides.
E lembro-me, claro que me lembro, de aviso que ouvi talvez centenas de vezes: "Não se aponta para a ponta das abóboras (ainda com a flor no bico), porque elas pecam." Acho que sempre segui o aviso à risca, mas mesmo assim, algumas vezes assisti à frustração do meu pai quando abóboras pecavam: ficavam murchas, não cresciam, e era uma tristeza ver perder-se assim um precioso fruto da terra.

sexta-feira, março 10, 2006

No resto vai degenerar...

"Ele já não é dos nossos, degenerou...." Os homens conversavam parados num passeio da cidade e o meu ouvido atento roubou-lhes esta frase porque há muito tempo não ouvia o verbo degenerar com esta utilização popular.
"Degenear" existe no dicionário e soa a palavra cara. Mas já a minha avó a utilizava amiúde, tanto se referindo a pessoas com a situações. Também a usava quando falava de uma qualquer flor que em vez da cor original tinha florido ligeiramente mais clara, ou em vez de dobrada tinha nascido singela.
Quando o verbo se aplicava a pessoas tinha a ver igualmente com a perda de qualidades, e era nesse sentido que os dois homens a quem roubei a expressão sem eles se terem apercebido, estavam a utilizá-lo.
Mas acho ainda mais piada ao verbo degenerar usado noutro sentido, para fazer referência a situações que evoluem negativamente. Alegro-me com a visão do rosto da minha avó, do sorriso permanente, ligeiramente acentuado na pausa que fazia para pensar na cantiga seguinte. E a cantiga seguinte era esta:

"Rapariga tu 'tás bem
Não te penses em casar
No princípio tudo é bom
No resto vai degenerar."

Para além da palavra degenerar, esta cantiga tem mais duas particularidades linguísticas que me deliciam. Uma delas é "não te penses", em vez de simplesmente "não penses". Ainda hoje ouço dizer "O que é que te pensas?" ou "Não te penses que ele vai vai fazer o que queres". É interessante este reflexividade que terá a intenção de acentuar o sentido e torna o verso da cantiga no necessário septissílabo.
A outra expressão a que me referia é "no resto". Actualmete diríamos "no final", ou "depois", talvez "mais tarde". "No resto" era como dizia a minha avó-madrinha e talvez seja isso que justifique, uma vez mais, o carinho enorme com que estou aqui a olhar para esse início de verso. De repente, rio-me sozinha porque me ocorre uma ironia: ouvi muitas vezes a aminha avolita cantar esta quadra, mas nunca conheci ninguém que mais acerrimamente defendesse o casamento. Coitada! Morreu com o desgosto de não ter assistido ao meu casamento, depois de ter passado a vida a repetir: "O maior ponto de uma mulher é se casar."

quarta-feira, março 08, 2006

O comerinho

Há pouco, numa rua do Funchal, ouvi uma mulher estar dizendo a outra mulher, a propósito de uma terceira mulher, talvez familiar da primeira : "Ela faz o comerzinho...." Não ouvi o resto da frase porque vinha com pressa, e elas ficaram lá atrás, paradas no passeio, a falar dessa mulher que imagino idosa e doente, mas que que ainda consegue cozinhar.
Lembrei-me da palavra "comerinho". Antigamente dizia-se "o comerinho", como diminutivo de comer, não o verbo mas sim substantivo, embora o comer dessa altura fosse sempre pouco em quase todas as casas.
Dizia-se: "Vou fazer um comerinho para o jantar".
As mulheres diziam, sobre os maridos: "Ele dá o comerinho para casa, não é dos piores."
O homem trabalhava para o comerinho e era isso o que dava para casa. A mulher fazia o comerinho, ouvia o homem reclamar do comerinho, dava o comerinho aos filhos, por vezes não ficava comerinho para ela, mas não fazia mal, lavava as panelas onde tinha feito o comerinho, lavava os pratos onde tinha sido comido o comerinho, e depois ia apanhar couves para outro comerinho, e fazia muitas outras coisas, entre elas engomar com um ferro de brasas e lavar num poço onde era preciso ficar de joelhos, e espalhar roupa e esfregar o chão e muitas vezes apanhar nas ventas.
Às vezes não apanhavam porrada fisicamente, mas outra mais violenta, a porrada psicológica, ou outra ainda pior, apanhavam com indiferença. Mas ficavam ali, até a que a morte as levasse, cuidando do marido e lavando-lhe a roupa e fazendo-lhe o comer. As mulheres não se separavam porque não tinham forma de ganharem, sozinhas, para o comerinho.
Esta é uma das coisas de antigamente de que já não nos devíamos lembrar.
Felizes de todas nós, mulheres que não precisamos de ser escravas em troca do "comerinho" para a boca dos filhos.

quarta-feira, março 01, 2006

Estar de cera!

Ouvi há pouco tempo esta expressão esquecida. Não verdade não a ouvi fisicamente. Ouvi-a sob a forma de uma memória, enquanto falava comigo mesma.
"Oh mulher, mas tu estás mesmo de cera!" Não era ninguém a não ser eu mesma. "Estar de cera" adequa-se tão bem à sensibilidade extrema que uma pessoa por vezes sente em relação a tudo.
Qualquer coisinha e derretemo-nos. Estar de cera é mesmo aborrecido, porque é uma situação à partida difícil de controlar. Tudo o que sucede à nossa volta ajuda. À mínima coisa, mesmo muito pequenina, pronto: derretemo-nos em lágrimas. É assim que estou, de cera! Em parte, ainda bem. Se não estivesse de cera, nunca me lembraria de aqui registar esta expressão.

This page is powered by Blogger. Isn't yours?

Web Pages referring to this page
Link to this page and get a link back!