segunda-feira, fevereiro 19, 2007

Pôr-se a bem com o diabo

Em certa igreja, havia uma imagem de Cristo de um lado da porta e uma do diabo do lado oposto. Um dia, todos foram surpreendidos por uma mulher que estava a rezar junto à imagem do diabo.
- " Ah senhora, já viu a quem é que está a rezar?"
-" Olhe, parece que se enganou no lugar."
Mas a mulher, do alto da sua sabedoria, toda de experiência feita, retorquiu que não havia engano absolutamente nenhum:
-"Com este é que uma pessoa tem de se pôr a bem!"

Acho que foi o anterior padre do Caniço, que muito gostava de contar anedotas nos sermões, a contar esta história que nunca mais saiu da ideia do povo da freguesia.
Há bem poucos dias ouvi alguém utilizá-la, em forma de conselho a uma criança, imagine-se! A criança queixava-se de uma colega de escola que é egoista e traiçoeira, com manias de mandona e tudo o mais. E a mulher, no alto da sua sabedoria feita de experiência, respondeu-lhe: "Com esses é que de se pôr a bem. Sabes a história da mulher que rezava à imagem do diabo na porta de uma igreja?"

sábado, fevereiro 17, 2007

Ave-Marias

Lembro-me do tempo em que o momento das "Ave-Marias" era sagrado. As pessoas davam atenção ao toque no sino da Igreja e benziam-se. Se estivessem fora de casa, apressavam-se. Era uma espécie de toque de recolher, sobretudo para as mulheres.
O povo dizia: "Ave-Marias, mulheres em casa". O ditado não falava nos homens e é verdade que eles, ao contrário, podiam ficar na venda, cantando um xaramba ou apenas bebendo com os amigos.
Mas em casa do meu avolito, que era um pai muito rigoroso, ninguém tinha ordem para estar fora de casa depois do toque que anunciava o anoitecer. Com dezoito, dezanove ou vinte anos, por vezes já "andando para casar", os meus tios eram obrigados a cumprir a regra imposta ou não escapariam de uma malha.
A minha avolita preocupava-se à medida que se ia aproximando a hora das Ave-Marias! Preocupava-se e por vezes inventava uma pequena mentira para salvar algum dos filhos do previsível castigo. Chegou até a meter-se ao caminho para os chamar ou a alegar que os tinha mandado fazer algo muito importante.
Sobre as "Ave-Marias" também se dizia que anunciavam coisas certas. Se alguém estivesse a falar de um determinado assunto e desse do toque das "Ave-Marias", aquilo que estava a ser dito eram "coisas certas".
Penso que os sinos de todas as igrejas devem ainda assinalar as "Ave-Marias". Como é então possível que eu nunca mais as tenha ouvido? Talvez ande demasiado ocupada com outros afazeres e pensamentos, que até os sons à minha volta parecem ter desaparecido. Terão desaparecido à minha volta ou apenas dentro de mim? Hoje vou estar bem atenta, tenho saudades do tempo em que havia esse facto certo e absoluto: a hora das Ave-Marias.

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Rimas com nomes

Até os nomes das pessoas eram motivo para rimas. Com qualquer nome se inventava uma rima, que depois eram muito usadas pelos mais novos, para se aborrecerem uns aos outros ou aos mais velhos, sobretudo.

"Trila, Trila, Trila -Lé
Maria José lavanta o pé."

"José, torra milho e faz café"

"Francisco, varre a casa e deixa cisco"

"Orações"

"Avé Maria, cheia de graça
Comi o milho e joguei a taça."

"Pai nosso, isto aqui
é tudo nosso."

"Padre Nosso, Avé Maria
Isto por aqui abaixo
É tudo de minha tia."

"Salve Rainha
isto aqui é tudo
de minha madrinha."

Eu penso que, no Céu, ninguém levava a mal estes ditos da criançada, que iam passando de geração em geração.
Vivia-se muito mais da linguagem, antigamente: Cantilenas, lengalengas, trocadilhos, jogos de palavras, adaptações, anedotas e histórias que não tinham fim.
As palavras desdobravam-se, duplicavam os sentidos, em vez de irem encurtando, encurtando, até chegarem ao que são agora, por exemplo, nas conversas virtuais e nos sms.

Outros tempos(?)

"Se eu fosse homem nunca queria
Mulher que soubesse ler
Faz cartinhas, manda a outro
Sem o marido saber."

Acabo de descobrir esta quadra num caderno amarelado. Recolhi-a no meu sítio há 20 anos, em 1986.
Uma quadra tão simples e com aspectos tão curiosos. Um deles é sem dúvida o machismo. Outro é o facto de ser dita por uma mulher.
Há vinte anos ainda era assim. Lembro-me muito bem de ter argumentado com um senhora do meu sítio para deixar a filha ir estudar para o Funchal. Ela respondeu-me que nunca na vida, porque ela correria o risco de ficar falada e, ainda por cima, de vir a não casar.
Tinha ela as suas razões. A pequena não estudou, mas casou.
Os tempos mudaram, felizmente. Mas eu garanto que ainda há situações destas. Há muitos homens que preferem ainda mulheres "sem estudos" ou não muito inteligentes e o pior é algumas mulheres apoiarem e outras tantas aceitarem.

Um cachorrinho a ganir

"Vou mandar buscar lá fora
um cachorrinho a ganir
C'uma fitinha no rabo
P'ra fazer agente rir."

Vi esta quadra, que hoje faz parte da minha colecção de recolhas, tornar-se real. Foi quando o meu pai regressou do seu primeiro período de emigração, na Austrália.
Foi nessa altura que tivemos os nossos primeiros brinquedos de pilhas. Brinquedos que durante toda a infância nunca sonháramos sequer que existiam.
À minha irmã mais nova, o meu pai trouxe uma boneca com cabelos de verdade, louros e aos caracóis, e com um bebé nos braços.
Dava-se corda à boneca e ela começava a tocar uma música de embalar, ao mesmo tempo que movimentava o tronco lentamente, embalando o bebé, fechava os olhos de longas pestanas e abri-a-os para ver se ele já estava a dormir.
Eu e a minha irmã do meio é que tivemos os "cachorrinhos a ganir". O da minha irmã era um cãozinho lindo, em tom de beije, com a cauda e as orelhas castanhas. Carregava-se no botão da caixa que guardava as pilhas e que estava ligada ao cão por um fio, e ele começava a andar. Depois fazia uma pausa, abanava a cauda e começava a ladrar. Não tinha a tal fitinha no rabo, como na cantiga, mas o resto era tudo igual.
O meu era diferente. Era um cão bebé, todo branco, dentro de um cestinho azul, com asa e tudo. Quando se dava corda, algures na parte de trás do cesto, o cachorrinho movia-se e espreitava para fora, com a cabecinha branca e o olhar meigo. Enquando espreitava, dava ganidos miudinhos.
Os três brinquedos estavam muito adequados à personalidade de casa uma, agora vejo isso mais do que em qualquer altura. O cachorrinho da minha irmã era esperto e decidido. Ladrava ao mundo, e continuava a avançar. O meu era frágil e tímido. Tentava sair do cesto, mas depois voltava a refugiar-se, assustado com o mundo lá fora.
Durante anos e anos, aqueles brinquedos serviram de atracção, talvez pudesse dizer do sítio inteiro e arredores. Foi-lhes dada corda de todas as vezes que alguém nos visitou.
Então, as crianças e os adultos, ficavam calados, como se estivessem perante um momento sagrado. Depois soltavam "ahs" de admiração e durante algum tempo as conversas giravam à volta daqueles brinquedos únicos.

João Brandão

Lá vai o João Brandão
A tocar o violão
Casaca da moda na mão
Atão Atão Atão (bater palmas três vezes)
Tré tré olaré tré tré
Era a moda do meu pai
Oh pastor, lavrador, enganador
rinhinhó, rinhinhó, ó-ó-ó, ó-ó-ó

De todas as cantigas que a minha mãe nos ensinava quando éramos crianças, esta é a que me ficou mais nítida na memória.
Era a que que tinha uma sonoridade mais estranha, comparada com as outras cantigas populares que íamos cantando para ocupar o tempo.
Também as palavras nos soavam estranhas e nós pedíamos à minha mãe que nos explicasse uma a uma. Ainda assim, ficávamos com a sensação de que ficava sempre algo por entender.
Penso que terá sido uma "moda" importada de alguma região do continente, tal como acontece no caso de outras cantigas que se vulgarizaram na ilha em meados do século passado.

terça-feira, fevereiro 13, 2007

Destrocar!

Incosncientemente, dei por mim a perguntar se alguém me podia "destrocar" uma nota, porque precisava de troco.
Depois, é claro, fiquei a pensar na palavra "destrocar". Utilizei-a porque sempre ouvi assim, mas reflectindo um pouco não tem lógica nenhuma. O correcto será trocar, uma vez que "destrocar" significa desfazer uma troca.
No entanto, soube-me usar o termo popular. Aquilo que se vai ouvindo e interiorizando ao longo da vida não se apaga por magia, só porque se conmhecem gramáticas e dicionários.
Quem me dera eu ter muitas notas grandes para "destrocar".

O que é pró almoço?

- O que é pró almoço?
- Casca de tremoço.

- O que é para o jantar?
- Roda de alguidar.

- O que é p'ra ceia?
Bolo de aveia/
Morrão de candeia.

Esta era a forma de dizer "espera a verás", quando as crianças começavam à volta das mães a perguntar o que era a comida nesse dia. Os adultos também ouviam a mesma resposta.
A minha mãe preferia dizer: "É o que Deus deparar." Não tínhamos remédio senão conter a curiosidade, enquanto ela nos mandava apanhar um raminho de salsa, ou arrancar um nabo da horta.

sábado, fevereiro 10, 2007

Já estou me devendo um dinheirão!

" - Já estou me devendo 50 euros!"
Fiquei curiosa. - "Então como é isso? Empresta dinheiro a si mesma?"
" - Sim senhora, faço como a Ti Carolina".
A ti Carolina ainda foi do meu tempo, mas morreu há muitos anos já. Todos se recordam das contas que fazia consigo mesma: "Eu já 'tou devendo um dinheirão a mim."
Ora, ela ia fazendo as duas poupanças mas chegava a uma altura em que precisava do dinheiro. Ia buscá-lo, talvez a debaixo do colchão ou a algum canto de gaveta. Mas aquilo não lhe esquecia, nem pensar.
Passava a estar devendo dinheiro a si própria e contava o facto, muito séria, como se de algo normalíssimo se tratasse. Quando voltava a "alquidar" o dinheiro pagava-se a si mesma o empréstimo e estava tudo resolvido.
Bons tempos, esses. O dinheiro podia ficar guardado em casa, dentro de uma gaveta, e uma pessoa, mesmo pobre, ainda conseguia poupar alguma coisa.

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

A boceta do meu avolito

O meu avolito não se separava da boceta por nada deste mundo. Quando esta ficava vazia, pedia-nos que fôssemos à mercearia comprar-lhe uns escudos de tabaco. "Cheirar tabaco" era o vício dele e de muitas outras pessoas da mesma geração.
A boceta era uma caixinha espectacular. Não tenho a certeza mas acho que era em marfim, com pequenos entalhes de metal, e abria à frente, na parte onde era mais ponteaguda, como por magia.
Então, o meu avô metia lá dentro os dedos polegar e indicador da mão direita e levava-os às narinas, inspirando aquele pó castanho, com um cheiro muito próprio, e que, depois, deixava acastanhados todos os lenços de mão que ele usava.
Por vezes, quando lhe restava pouco tabaco, pedia aos vizinhos e vizinhas e estes ofereciam a boceta, para que ele retirasse um pouco, e ele fazia o mesmo, oferecendo a sua às visitas e aos conhecidos. Tal como hoje as pessoas pedem ou oferecem um cigarro.
Ora, uma vez estavam cá os meus tios e primos do Brazil. A minha tia e a minha prima andavam a fazer as suas lides, quando ouvem o meu avô perguntar: "Onde é que está a minha boceta?"
FIcaram de boca aberta, incomodadas, e depois desataram a rir à gargalhada. Ninguém percebia porquê, até que eles explicaram: no Brasil, a palavra boceta não designa a caixinha do tabaco, mas sim o orgão sexual feminino.
Acho que daí em diante, o meu avô exagerava um pouco, só para se divertir, ao vê-las indignadas com aquela situação, originada por culturas diferentes. Por exemplo, ia uma qualquer velhinha das redondezas fazer uma visita e ele, vendo que ela por ali andavam, dizia qualquer coisa do género: "Ah comadre, trouxe a sua boceta? E posso meter o dedo e tirar uma pitada para mim?" Ela respondia, seriamente e sem maldade: "Então não pode compadre, ora'm'essa", enquanto retirava a boceta do bolsa e a estendia para que ele se servisse.

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Janeiro fora, o dia cresce uma hora

A sentença popular cumpre-se, novamente, à risca. Estávamos ainda no fim de Janeiro, e a minha filha perguntou: "Mãe, porque é que agora, quando me vens buscar à escola, já está menos escuro? Parece que o dia esticou."
Eu expliquei-lhe qualquer coisa, mas o mais importante que lhe disse doi este ditado mais velho do que o Norte e sem engano possível: "Janeiro fora, o dia cresce uma hora." Nunca lhe há-de esquecer, tal como eu nunca me esqueci.

sexta-feira, fevereiro 02, 2007

Quando a Candelária chora...

Hoje, 2 de Fevereiro, é dia de Santa Candelária. Apesar de o meu pai ter ouvido já em meados de Janeiro melros-pretos a cantar, eu estava com esperança que hoje talvez se anunciasse uma reviravolta no anunciado "ano sequeiro".
Desde que me entendo, que ouço a sentença: "Quando a Candelária Chora, o Inverno está fora; Quando a Candelária ri, o Inverno está para vir."
O dia amanheceu risonho e com sol. Para dar um empurrãozinho a um Inverno mais prolongado, porque é o que a nossa terra precisa, até deixei o guarda-chuva no carro.
Foi sol de pouca dura. Ao meio dia já chovia nas ruas do Funchal e a meio da tarde voltou a chover.
A Candelária anuncia que o Inverno, tão pequenino, está praticamente acabado. Que pena! Eu prefiro a chuva e o frio ao calor extremo. Adoro andar nas ruas de guarda-chuva, adoro estar em casa e ouvir o som da chuva, adoro ver a paisagem toda lavada, com os verdes e as cores de brilho renovado.
Muitas pessoas, porém, devem estar contentes: praticamente todos preferem tempo de Verão porque é o que lhes serve melhor, porque actualmente o egoísmo vale mais do que o interesse geral, seja em que matéria for.
Continuo remando contra a maré. Prefiro a chuva e o frio. Não me importo de andar de casaco nem de dar encontrões a outros guarda-chuvas em ruas movimentadas.

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