sexta-feira, abril 30, 2010

o mocinho da cesta

Contemplávamos, embevecidos, uma ninhada de patos. Por entre a euforia das crianças, por entre as conversas e os risos, a minha mãe apontou para um dos patinhos amarelos, de penugem leve, e disse: "Olha, o mocinho da cesta!"
Segui-lhe o gesto e percebi logo. Um dos patinhos da ninhada era visivelmente mais pequeno e frágil do que todos os outros.
Segundo a explicação da minha mãe, entre os muitos filhos das famílias de antigamente havia sempre um mais pequeno e desajeitado do que os outros, a quem chamavam o moço da cesta. Talvez por ser aquele que, não tendo tanta força para o trabalho, acabava ficando com a incumbência de fazer os recados e de levar o comer ao pai e aos irmãos, por exemplo.
Ora, nada mais simples do que aplicar a um pequeno pato um dito originalmente usado para pessoas. Tal como ao contrário também não seria de espantar. Uma das muitas características interessantes do falar popular é precisamente esta elasticidade.

quinta-feira, abril 29, 2010

o estrapagado

No meu sítio as pessoas chamam estrapagado ao patagarro, uma ave marinha que antigamente passava junto às casas durante a noite, sobretudo em algumas épocas do ano.
A minha mãe conta que os estrapagados se ouviam em especial na altura em que as faveiras estavam em flor, e causavam logo o pânico no sítio.
O estrapagado tinha o dom de anunciar a morte.
Quando o ruído característico do estrapagado se ouvia numa qualquer noite sossegada, todos temiam o que estava para vir: "- Quem será que vai morrer?"
A minha mãe lembra-se muito bem de um estrapagado que certa noite pendeu a bater contra as janelas da enfermaria onde estava internada, na clínica ortopédica do Lazareto. No dia seguinte, sem nada o prever, sem mais nem menos, morreu uma senhora dessa enfermaria, por sinal aquela que mais se sentiu incomodada com a presença do bicho durante a noite.
Que terá acontecido aos estrapagados? Eu nunca ouvi nenhum, não sei sequer reconhecer o seu canto na noite. Mas de vez em quando, quando chega a sua vez, as pessoas morrem na mesma.

quarta-feira, abril 28, 2010

da mesma brónica

- "Elas são mais ou menos da mesma brónica." Explicaram-me assim as semelhanças entre duas mulheres. Semelhanças físicas mas muito gerais, como a idade, a altura, o peso, nada de muito particular.
Percebi a ideia mas não lhe consegui encontrar um sinónimo, uma única palavra que dissesse tudo isso. Este é um dos motivos pelo qual sobrevivem certas particularidades linguísticas, porque têm utilidade. Devido à sua precisão, poupam palavras e mais explicações. São palavras económicas.
Disseram-me: "Elas são da mesma brónica" e eu fiquei esclarecida, não precisei de perguntar mais nada, e a conversa seguiu o seu caminho.
Nem sempre temos esta a capacidade de usar as palavras: usamo-las em demasia e querendo dizer muito dizemos muito pouco ou não dizemos nada.

terça-feira, abril 27, 2010

...não azeda

Desculpando-me com o imenso trabalho que me esperava em casa, preparava-me para me despedir de uns vizinhos da casa da infância que encontrara por acaso, e com quem ficara um pouco a conversar.
O senhor exclamou, em tom paternal: "Ah, Não azeda!" A senhora, complementando a expressão do marido, disse: "Põe no frigorífico!"
Foi tão engraçado que não resisto a colocar aqui as duas expressões, cada uma remetendo para uma época diferente.
Lembro-me perfeitamente de não termos frigorífico em casa, e da atentação da minha mãe com a comida pois esta azedava facilmente, sobretudo nas épocas de mais calor. No Verão não valia a pena guardar nada de uma hora para a outra porque azedava.
Ora, o trabalho de casa não azeda. Há tanta coisa que pode ser deixada para mais tarde, simplesmente porque há coisas mais importantes. No caso em questão, que poderia ser mais importante do que aquela agradável troca de palavras com quem não falava há muito?
O senhor lembrou-se do dito antigo e a senhora acrescentou-lhe um toque de actualidade: "Põe no frigorífico!"
Que Deus nos dê a todos a sabedoria de perceber o que não azeda e o que pode ser colocado no frigorífico.

segunda-feira, abril 26, 2010

dar doces

Ouço sem querer uma conversa que acontece ao meu lado. Depois de enumerar uma série de exigências feitas pela pessoa de quem falavam, uma das mulheres exclama, rematando a descrição: - "Mas eu não lhe dei doces!"
O incómodo que sentia por estar a ouvir uma conversa alheia sem querer, dissipou-se com este achado inesperado. Ao tempo que eu não ouvia a expressão "dar doces"! E que bom foi ouvi-la assim, usada no contexto de uma conversa do dia-a-dia, viva.
Recordava-me mais da expressão na afirmativa, tornando-se a ironia perceptível através da entoação dada à frase. "Eu vou te dar doces" significa na verdade "eu não vou te aturar, não vou fazer as tuas vontades" e julgo ser equivalente à expressão "eu vou te dar troco!" já referenciada neste blogue.

quarta-feira, abril 21, 2010

amar e padecer

A conversa nada tinha a ver com amores. O assunto era política internacional e falava-se de alguém que enfrentava duras críticas, pouco tempo depois de ter assumido um importante cargo.
"Quem se põe a amar, põe-se a padecer." A sentença assentou que nem uma luva e aligeirou a conversa. Muito bem visto.
Quem ocupa um cargo de poder está sujeito a inúmeras e inevitáveis criticas, tal como quem ama está sujeito ao sofrimento.
São consequências previsíveis e que ninguém desconhece. Cartas na mesa. Nada na manga. Claro como água. No entanto, quase todos aspiram ao poder e todos sonham com o amor.

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