segunda-feira, abril 09, 2007

História da agulha

Imagino-a magra, de pés descalços, vestido de chita franzido na cintura, uma cantiga sempre pronta, e uns olhos muito vivos, quase a saltarem do rosto, tal a curiosidade por tudo à sua volta.
Tinha uns quatro anos e um dos seus desejos era aprender a bordar, como via fazerem a mãe e as irmãs mais velhas.
Queria bordar com uma agulha de verdade, que deixasse os desenhos e as cores para sempre registados num tecido de verdade. Já não achava piada aos bordados em folhas de couve com agulhas a fingir, feitas de espinhos de limoeiro.
A minha mãe pequenina desejava uma agulha de verdade e o meu tio Fortunato deu-lhe dois tostões para a agulha. Meteu-se a caminho da venda do China, feliz, a saltar e a correr.
A agulha custava, afinal, três tostões. Mas o China teve pena, quis manter a alegria do sonho realizado e esqueceu o tostão que faltava. Passou-lhe para as mão pequeninas a agulha, embrulhada num papel.
O caminho de volta já não foi feito a correr e a saltar, com medo que acontecesse alguma coisa à agulha. De vez em quando, uma pausa. O coração aos pulos: e se a agulha já não estivesse lá? Abria o papel devagar e confirmava que não se tratava de um sonho. A agulha estava lá e o papel voltava a ser fechado com cuidado.
A preocupação com a agulha fez com que a minha mãe pequenina abrisse várias vezes o papel, na vereda sombreada de pinheiros, no percurso entre a venda do China e a casa dos meus avós. Já atrás do Palheiro do Ti Simeão, faltava já menos de metade do caminho de regresso, voltou a abrir o papel e...a agulha tinha desaparecido.
Com um grito, primeiro silencioso e ainda com esperança, procurou-a entre a faúlha que cobria a vereda e por entre as ervas que a ladeavam. Nada. Voltou atrás, até o sítio onde a tinha visto pela última vez. Procurou, procurou, já toda desfeita em lágrimas, mas a agulha nunca apareceu.
Chegou a casa apenas com o papelinho embrulhado dentro da mão pequenina e um enorme desgosto.
Sempre que volta a contar esta história, a voz da minha mãe carrega um bocadinho desse desgosto, embora se ria com a lembrança. E eu, sempre que a ouço, memorizo dentro de mim a lição de que a demasiada preocupação em manter algo de que gostamos, a angústia causada pelo medo de não a conseguirmos agarrar para sempre, é meio caminho para a perdermos.
Tivesse a minha mãe pequenina regressado a casa a saltar e a correr, feliz, sem a angústia causada pela possibilidade de perder a sonhada agulha, e de certeza teria chegado com ela na mão, dentro do papelinho ainda embrulhado pelo China da venda.

sexta-feira, abril 06, 2007

Eu sumi a minha agulha

"Eu sumi a minha agulha
No terreirinho da Sé
Já não tenho com que cosa
Camisinhas a José

Eu sumi a minha agulha
Na flor do alecrim
Já não tenho com que cosa
Camisinhas a Joaquim

Eu sumi a minha agulha
Na flor do alcepreste
Já não tenho com que cosa
Camisinhas a Sivestre

Eu sumi a minha agulha
Na flor do manjericão
Já não tenho com que cosa
Camisinhas a João."

Antes de voltar a pegar na agulha para continuar um bordado, lembrei-me destas quadras que se cantavam ao som do brinco.
Lembrei-me que, antigamente, em vez de se perder, sumia-se.
Lembrei-me de uma história verdadeira que a minha mãe nos contava quando já tinha contado e recontado todas as histórias que sabia mas nós queríamos ainda mais uma: a história de uma agulha que, certa vez, foi comprar à venda do China...




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