segunda-feira, novembro 29, 2004

Os moços

"Eu sou moço
e tenho moço
e o mê moço
moço tem
e o mocinho
do mê moço
já quer um moço também."

As famílias mais abastadas, com mais fazenda, tinham um moço: um rapazinho, normalmente "daí de dentro"(Santana, Porto Moniz, Boaventura...), a quem davam cama, comida e algum dinheiro, para fazer os mandados da casa. O moço ia apanhar erva para as vacas, ia tirar o leite, ia à venda, fazia o que houvesse para fazer.
No meu sítio havia quatro moços: o moço da Filomena, o moço do Ti José Menino, o moço do Ti José de Góias e o moço do Ti João Batata. Nos tempos livres, eles juntavam-se, tocavam machete e "armavam-se para as raparigas"(namoriscavam).
Eu apenas conheci o moço da Filomena, quando de moço mantinha apenas o nome. Ele casou com uma afilhada da dona da casa e também teve um moço. Era o moço do moço, que acabou casando com uma sobrinha da patroa do primeiro moço.
Penso que esse não teve moço, para cumpir mais uma parte da legalenga: "Eu sou moço/e tenho moço/e o mê moço/moço tem....."
Mandar os filhos para casa alheia, por moços, era uma forma de as famílias mais pobres ultrapassarem as suas dificuldades económicas. Contaram-me que um dos filhos da Ti Carolina, que o marido deixou com oito filhos para criar, foi por moço para o Caminho do Meio. Era bom rapaz, tinha bons modos, e acabou por casar com a filha da casa.






quarta-feira, novembro 24, 2004

O "Espanhol"

Quando se ouvia, ao longe, o apito do "Espanhol", instalava-se em casa um grande alvoroço. A mãe começava a abrir gavetas e gavetinhas, e a desdobrar bordados, donde caíam negalhos de linhas e dedais, à procura de todas as tesouras, as grandes e as pequenas, de bicos, para amolar.
Depois da busca às tesouras, era preciso ir ver onde estavam os chapéus-de-sol com baleias estragadas e que tinham ficado guardados algures, à espera da próxima passagem do "Espanhol".
Ele chegava, acompanhado do som mágico da sua gaita, e instalava-se no canto do terreiro, junto ao quarto-de-fora. A minha avó e a minha tia, atraídas pela música, apareciam no cimo das escadas com mais coisas para consertar. Lembro-me de ficar ali, hipnotizada pelo girar da roda do "Espanhol", atenta ao espectáculo das faíscas que de lá saíam, enquanto ele amolava as tesouras todas e soldava todas as baleias partidas.
Não sei se "Espanhol" era o nome que antigamente se dava à profissão ou se aquele homem é que era conhecido pela alcunha de "Espanhol". A verdade é que também chamávamos espanhóis a outros amoladores que, embora raramente, passavam no sítio, mas é possível que fosse por associação. Também é verdade que o filho desse "Espanhol" herdou o nome e ainda hoje lhe chamam "O Espanhol", apesar de nunca ter andado por aí de roda às costas, a amolar tesouras e a soldar baleias de chapéus-de-sol, tornando mais especiais alguns dos longos dias da infância.


terça-feira, novembro 23, 2004

À rebendita

O que não falta neste mundo são pessoas que actuam "à rebendita". Ou seja, com maldade. Quer dizer, por vingança. "Ela fez aquilo à rebendita". O tom é de reprovação e na minha memória a voz é da minha avó. Há poucos dias voltei a ouvir a palavra e agora a voz era a da minha mãe.
"À rebendita". Vou tentar dizê-la também, e se possível ensinarei à minha filha esta palavra antiga. Tentarei mantê-la viva neste ciclo familiar de histórias, palavras e saberes, que vão atravessando os tempos quase intactos.

segunda-feira, novembro 22, 2004

O chicharro e a cavala

"O chicharro faz a caldeira, mas a cavala é mais gostosa." Esta é uma das expressões usadas na minha família para mostrar indecisão e deve ter mais ou menos a idade de 40 anos. Deve-se esta expressão ao Ti Noé, que Deus lhe dê o céu. Imagino-o a ouvir o pregão do pesquito e a correr para o cabeço, chegando cansado de subir a ladeira. E depois, o olhar indeciso para a selha do peixe: chicharros ou cavalas? Enquanto os outros fregueses já sabiam ao que vinham e não se demoravam em indecisões, lá estava o Ti Noé, pesando os prós e os contras, sem saber se levava chicharros ou cavalas.
"O chicharro faz a caldeira, mas a cavala é mais gostosa". Alguém ouviu a conversa dele e achou piada. Depois deve ter contado quando chegou a casa, para fazer caçoada. Imagino a história a ser recontada ao serão, enquanto os rapazes afinavam os instrumentos e as raparigas aviavam, à luz do candeeiro de petróleo, algum bordado com pressa.
Há pouco tempo voltei a ouvir a expressão do Ti Noé no meio de uma conversa qualquer, que não me lembro sobre que assunto era, apenas que apresentava vantagens e desvantagens, conduzindo à indecisão. "O chicharro faz a caldeira mas a cavala é mais gostosa." E agora? Chicharros ou cavalas?

sexta-feira, novembro 19, 2004

O sóito

Na casa da minha infância havia um sóito. O sóito era o lugar dos mistérios, o único lugar da casa onde ainda existiam coisas desconhecidas.
Incialmente, havia no nosso quarto de dormir uma escada de madeira que dava para o sóito. Mas depois a escada foi retirada e a única alternativa para chegar ao sóito era retirar algumas telhas da casa, por cima do sobrado da cozinha.
As crianças acabavam por ser as únicas que cabiam nesse buraco entre a armação de madeira do telhado. Foi assim que entrei algumas vezes no sóito. Umas a mando da minha mãe, para ir buscar algum objecto necessário, outras, bem mais interessantes, escondida dela, para explorar as caixas, os sacos, as velharias que lá estavam guardadas.
Lembro-me de um dia em que fui picada por uma vespa. Saí do sóito aos gritos e a minha mãe colocou alho e uma moeda em cima da mordidela, para passar. Lembro-me de guardarmos peros e semilhas no sóito. Lembro-me de guardarmos lá as pinhas que usávamos para enfeitar a casa no Natal.
O sóito era o lugar mágico da minha infância. Um belo dia, as minha primas chegaram de Moçambique. Ouviram-nos dizer a palavra sóito e começaram a gozar de nós. Em vez de sóito, elas diziam sótão, uma palavra que eu nunca tinha ouvido na vida. Pediam-nos para repetir a palavra sóito só para se divertirem. Quando nós a dizíamos, começavam a rir à gargalhada.
Esse lugar dos mistérios ainda existe e ainda gosto de lá ir. E quando lá vou, digo sóito, como antigamente. O sóito tem um cheiro antigo, tem roupas penduradas num arame, caixotes com livros, bocados de brinquedos. Definitivamente, é o nosso sóito e não o sótão das minhas primas.



sexta-feira, novembro 12, 2004

Rei, capitão, soldado, ladrão...

"Rei, capitão, soldado, ladrão, menina, bonita, de bom, coração". A cada palavra correspondia uma marca, ou um botão. Molas e colchetes não contavam. Lembro-me de repetir vezes sem conta a lengalenga, enquanto contava as marcas do vestido ou da blusa. Ficava contente se fossem suficientes para chegar à parte da menina. Daí para a frente, a alegria aumentava a cada palavra.
Vesti uma camisola enfeitada com marcas de madrepérola e não resisti: "rei, capitão, soldado, ladrão, menina, bonita, de bom, coração...." São tantas as marcas. Sou uma menina bonita de bom coração e isso tem de ser suficiente para eu pôr um sorriso grande e andar acompanhada dele todo o dia.
Apeteceu-me também usar a palavra marca em vez de botão. Hoje chama-se botões a tudo. Quando eu era criança, as marcas eram achatadas e tinham ao meio dois ou quatro buracos, por onde se seguravam à roupa. Nos botões, os buraquinhos por onde eram cozidos à roupa ficavam por baixo, escondidos. A parte do botão que ficava à mostra podia ser lisa ou arredondada, de metal ou de pérola e não tinha buracos, por isso não se viam as linhas.
Os botões eram mais finos e mais raros do que as marcas. E as marcas de dois buracos eram mais finas do que as de quatro buracos. A seguir, nesta hierarquia, ficavam as molas e os colchetes, bastante usados e sem direito a entrarem na contagem do "rei, capitão, soldado, ladrão, menina, bonita, de bom, coração."
Tenho uma camisola cheia de marcas de madrepérola. Plim. Num toque de magia transformei-me numa menina bonita de bom coração.

quarta-feira, novembro 10, 2004

A furna do Nancamilhe

A furna do Nancamilhe era a única do Sítio e talvez por isso se revestisse de tanto mistério. Ficava relativamente perto da nossa casa, mas acho que só nos aventurámos a ir espreitar quando já não vivia lá ninguém, na altura em que estiveram cá os meus primos da Venezuela, todos adolescentes.
A furna do Nancamilhe era um ponto geográfico de referência e também motivo de comparação, quando se tratava de diferenciar a verdadeira pobreza do remedeio, já que riqueza era coisa que não se conhecia naquele tempo.
A minha mãe explicava que eles viviam todos numa furna, que não tinham uma casa como as outras pessoas e lembro-me de ficar cheia de pena dessa gente: o Nancamilhe, a Nancamilha e os Nancamilhinhos todos. Uma alcunha passava facilmemte para todos os membros da família, formando diminutivos no caso dos filhos, tornando-se em feminino quando adaptada à mulher ou masculino quando era ao contrário e passava da mulher para o homem. Não me lembro se havia o Nancamilhe Velho e a Nancamilha Velha. Mas as alcunhas muitas vezes também adquiriam este velho ou velha, para diferenciar as novas gerações das antigas.
Nancamilhe porquê? Alguns apelidos são difíceis de explicar mas este está claro como água. A minha mãe explicou, no tom misterioso que dava a tudo o que contava. Porque ele não gostava nada de milho. E o milho, já se sabe, era o comer daquele tempo, era o que havia e já era bom. No meu espanto, decompus a palavra, a enigmática palavra Nancamilhe. Nancamilhe: Não quero milho! Talvez sejam assim, simples, todos os segredos do universo. Talvez baste a maçada de os decompor.



terça-feira, novembro 02, 2004

Um magusto


A minhã mãe juntou um molhinho de mato de propósito para fazermos um magusto dia de Pão-por-Deus. Aproveitou uma tarde enxuta e foi procurar o mato aos pinheiros que agora são tão poucos. Depois, espalhou um bocado à frente do galinheiro, colocou as castanhas em cima e voltou a cobri-las com mais um pouco de mato. Pegou lume ao magusto e ficámos e vê-lo arder. A seguir, com um graveto de pinheiro bateu nas castanhas. Ajudei a virá-las, antes de receberem nova camada de mato em cima e novo lume. Ficaram bem assadas. Juntámo-las para um cesto e descascámo-las já dentro da cozinha. Sabe-me mais ir comendo as castanhas à medida que as vou descascando. Gosto das que ficam queimadas e das que são mais finas.
Gostei desta pequena viagem ao passado, repleta dos sabores e dos cheiros do Outono.
Lembrei-me dos tempos em que ia juntar faúlha de pinheiro para o magusto do Pão-por-Deus. Lembrei-me das castanhas que caíam dos castanheiro da Ti Carolina e das inúmeras vezes que, durante um dia, descia a vereda para passar debaixo dele, na esperança de encontrar mais alguma castanha. As castanhas para o magusto iam sendo coleccionadas aos poucos, uma a uma. Às vezes, à última da hora, a Prima Ali ou o Ti Nóbrega ofereciam outras. Mas as do castanheiro da Ti Carolina, conseguidas aos poucos, eram, para mim e para as minhas irmãs, as castanhas que contavam. Pelo Outono dentro, repetíamos os magustos enquanto houvesse castanhas: chegávamos a fazê-los com meia dúzia de frutos, apenas, mas nem por isso o ritual perdia importância.
A minha filha nunca foi "ajuntar faúlha", nem procurar castanhas debaixo do castanheiro da Ti Carolina, mas já sabe como se faz um magusto. Neste Pão-por-Deus, ficámos as três, apenas nós, acocoradas junto ao magusto e quase sem falarmos. Três gerações de mulheres deliciadas com a magia de um magusto!

This page is powered by Blogger. Isn't yours?

Web Pages referring to this page
Link to this page and get a link back!