quinta-feira, setembro 29, 2005

Andorinhas p'ra serra, andorinhas p'ró mar

Este dito tem a finalidade de impor a ordem no meio da confusão. Quando muitas pessoas falavam ao mesmo tempo, quase ninguém se entendendo, eis que alguém levantava a voz e dizia: "Andorinhas para a Serra, andorinhas para o Mar, sete socos para o prmeiro que falar. Eu sou rei. Posso rir, zombar e falar."
Imediatamente se calavam as vozes e reinava o silêncio. E começava a festa para quem se tinha lembrado de impor a ordem: Ria, falava, gozava. O primeiro que abrisse a boca, o que normalmente não demorava muito a acontecer, estava bem arranjado. Apanhava logo os prometidos sete socos ao meio das costas.
Na infância repeti muitas vezes esta pequena lengalenga e também obedeci a ela quando imposta por outra criança. Dei e apanhei os prometidos socos e quer num quer noutro caso, diverti-me bastante.
Só muito mais tarde soube a versão original: "Andorinhas para a serra, andorinhas para o mar, sete cabaças de merda para o primeiro que falar". Este deve ser um dos poucos casos em que a deturpação é melhor do que o original. Por mim, será sempre: "Andorinhas p´ra serra, andorinhas p'ró mar, sete socos p'ro primeiro que falar.

sexta-feira, setembro 23, 2005

Chuva e foguetes dia do casamento

Casamento com chuva, casamento afortunado. Esta crença era comum no tempo dos meus pais e eles tiverem direito a chuva na segunda-feira de Outubro em que casaram na Igreja do Caniço. Os casamentos realizavam-se por regra às segundas-feiras, de manhã, e para o almoço em casa dos noivos eram convidadas apenas as pessoas mais chegadas.
As mães, quer do noivo, quer da noiva, por norma não iam à cerimónia religiosa. Ficavam em casa a tratar das lides, dando os últimos retoques para eliminar os vestígios da confusão da "cama dos noivos".
Os noivos iam para a Igreja muito cansados devido à festa da véspera e é por isso que a maioria tem um ar estranho nas fotografias a preto e branco que ficaram para a posteridade. Surgem pálidos e com olheiras, afinal naquele tempo as noivas do campo não usavam maquilhagem nenhuma. Pode-se dizer que os noivos iam para a Igreja "quase azougando" das canseiras da véspera, pois eles também andavam num vai-vém até de madrugada a servir os convidados da "cama dos noivos".
Na hora de almoço, havia sempre foguetes lançados em casa dos noivos, era da tradição. A propósito dos foguetes, conta-se ainda a história engraçada de um casal do sítio que casou às escondidas, sem dizer nada nem convidar quem quer que fosse, para ninguém meter o bedelho. Mas as coisas acabaram por saber-se e dois amigos decidiram pregar aos noivos uma partida. Um deles era o meu pai. Compraram foguetes e na hora de almoço, toca a deitá-los na precisa direcção da casa dos noivos, de maneira a chamar a atenção de todo o sítio.
Esse não foi o único caso de noivos às escondidas. Contam-se mais alguns, entre eles o de uma pessoa da minha família. Enfim, cada um com a sua mania e toda a gente tem direito a ser "bicho do buraco" de vem em quando. Mas não tenho dúvidas de que, apesar da canseira da "cama dos noivos" e da curiosidade das pessoas que iam esperar os noivos à saída da igreja para lhes atirarem flores, esses casais perderam rituais importantes. Memórias que hoje podiam contar aos filhos e aos netos, num qualquer serão, aconchegados à volta de um mesa de cozinha.

quinta-feira, setembro 22, 2005

A cama dos noivos

Os casamentos eram todos à segunda-feira e a grande festa não era no dia da cerimónia mas sim na véspera. Era para a "cama dos noivos" que eram convidadas praticamente todas as pessoas do sítio. "No domingo antes, os noivos iam pelo sítio convidar toda a gente, aieito, como quem andava com o Espírito Santo."
Os convidados chegavam à tardinha a casa dos noivos, para começarem a fazer a cama, e só davam a tarefa por terminada já de madrugada. As brincadeiras da "cama dos noivos" pareciam não ter fim. Uma das regras principais era que toda a gente da festa tinha de "ir à cama".
Com o lençol dos noivos iam agarrando as pessoas que encontravam pela frente, atirando-as depois para cima do colchão.
Quando percebiam que um rapaz e uma rapariga andavam com a mania um no outro, eles não escapavam de "ir à cama" ao mesmo tempo. O colchão era enrolado sobre eles, que ficavam só com os pés e a cabeça de fora, e muitas vezes aos gritos.
Para além desta tradição de atirar as pessoas para a cama dos noivos, a cama era alvo de muitas outras brincadeiras. No colchão coziam as coisas mais incríveis: Dinheiro e arroz para dar sorte, vinho também, além das inevitáveis cenouras e dos tomates, disfarçados com remendos, e dos alfibenetes de cabeça enfiados na cama e torcidos.
Era tal a judiaria que muitas vezes a roupa e o próprio colchão ficavam estragados. Claro que depois de pronta a cama tinha uma aparência impecável, com a sua colcha branca como a neve e decorada com raminhos de avenca e flor de laranjeira. No dia seguinte, quando chegava a altura da cama ser usada, é que eram elas! Era preciso descoser tudo, um trabalho que nunca mais acabava, e por isso a maioria dos noivos optava por virar o colchão ao contrário e dormir sobre o lado de baixo na primeira noite.
Na noite da "cama dos noivos" havia ainda outros rituais. Um dos costumes era pregar rabos de papel nas pessoas, quando estas estavam distraídas. Também ninguém escapava de apanhar uma alfinetadelas. No meio da confusão, havia quem pegasse num alfinete e andasse com ele disfarçadamente na mão, a distribuir picadelas por todos os convivas.
Em troca de tantas tropelias, os convidados eram agraciados com broas, doces e vinho, terminando a noite sempre com uma canja de galinha bem quente e pão.
O costume da "cama dos noivos" acabou entretanto, mas eu ainda tive a sorte de ter participado numa dessas festas de casamento antecipadas, que foi a da minha irmã. As brincadeiras repetiram-se, seguindo rigorosamente a tradição mais antiga. A diferença é que a cama dos noivos foi feita numa quinta-feira à noite e o casamento no sábado seguinte. Nessa altura já tinha sido esquecido o ditado de que o "sábado não tem cabeça nem rabo" e a quase totalidade dos noivos passou a eleger o sábado para a cerimónia de casamento.

quarta-feira, setembro 21, 2005

Camas de lã

Na época das tosquias os noivos iam à serra, a pé, comprar lã de ovelha para a cama. A lã vinha suja, ainda com carrapatos e caganitas, e precisava de ser bem lavada. Dava um trabalhão mas tinha de ser: a lã de ovelha era passada por várias águas na ribeira, até ficar bem limpa. Depois era posta a secar em cima da telha da casa.
Nas vésperas do casamento, os noivos convidavam familiares e amigos para irem "abrir a lã". Cada pedaço de lã tinha de ser esticado, para depois formar um colchão fofinho.
A minha avó teve uma dessas camas de lã, onde os oito filhos curavam todos os males e doenças. Era a única cama de lã, logo a mais confortável da casa, e parece que tinha magia. A minha mãe e os meus tios contam como adoravam os serões em que todos se encostavama na "cama da mãe", à volta dela que descansava, enquanto o pai não chegava do trabalho.
Quando a minha mãe casou também teve uma cama de lã, que precisou de ser trazida da serra, directamento do local das tosquias, muito bem lavada e aberta com a ajuda dos vizinhos e dos amigos.
Todos os anos as camas de lã eram despejadas, para lavar a parte de fora, de tecido. Lembro-me da lã estar num monte, em cima de um lençol velho no terreiro e de nós estarmos todas à volta dela, a abrir cada bocadinho de lã da cama dos meus pais.
Por debaixo da cama de lã, acarão das tábuas, ficava a enxerga de palha. A cama da minha mãe, tal como a da minha avó, tinha uma enxerga de palha por baixo da cama de lã. A enxerga também era despejada no Verão, para lavar o tecido de fora e, se possível, a palha era renovada, juntando-se-lhe alguma nova. O meu avolito semeava trigo na chamusca atrás da casa e por isso havia palha disponível para renovar as camas. Também o meu avô das Fontes semeava trigo e lembro-me de a minha mãe lho pedir para renovar as enxergas de palha.
A cama de pessoa e meia onde dormi com a minha irmã do meio antes de ter o meu precioso catres de ferro com cama de penas, era de palha. Um dia a minha imãe saiu e deixou-nos em casa. Escondeu ou colocou em cima do vestuário todas as coisas em que poderíamos mexer e, consequentemente estragar ou magoar-nos. A minha imaginação começou logo a trabalhar e mandei a minha irmã despejar a palha da cama. Quando a minha mãe chegou a casa nem queria acreditar! Esta memória só confirma que quanto menos coisas temos à nossa disposição mais a nossa imaginação se desenvolve. Era bom o cheiro daquela cama, acabada de lavar e com palha nova.

terça-feira, setembro 20, 2005

O catres de ferro e a cama de penas

Tenho saudades do meu velho catres (agora sei que a palavra é catre, mas foi sempre assim, com este s no fim que eu ouvi pronunciarem no meu sítio) de ferro com cama de penas, onde dormi grande parte da minha infância e da adolescência.
Eu passei para esse pequeno catres de ferro, de pessoa só, quando a minha irmã mais nova deixou de caber no berço de madeira, que tinha servido para todas. Ela já era comprida demais para o berço, tinha de dormir encolhida e foi por isso que um belo dia alguém teve a ideia de serrar a parte de madeira do lado dos pés, para que as pernas dela pudessem esticar-se à vontade. Tenho pena de não ter uma fotografia da minha irmã dormindo nele, com os pés a sairem do buraco, porque a armação de madeira tinha ficado intacta.
Nessa altura, eu e a minha irmã do meio dormíamos na mesma cama, uma cama de madeira, de pessoa e meia, comprada de propósito para nós. Mas não nos entendíamos bem e passávamos o tempo a brigar, cada uma empurrando a outra para o outro lado e resmungando.
Eis que chega o catres de ferro, tão antigo que a minha mãe tinha dormido nele praticamente toda a vida antes de casar, juntamente com a minha tia Romana. O catres foi lixado e pintado de branco e para ele aproveitou-se um colchão que me deixou fascinada: era muito colorido, com fundo azul forte e desenhos de galos por todo ele. Dentro estava cheio de penas, que tinham sido da cama dos noivos da minha tia Salomé.
Fiquei com uma cama só para mim, que foi colocada junto à parede do quarto. Por detrás do catres ficava a escada de madeira que ia dar ao sotão. As minhas irmãs passaram a dormir as duas na cama de madeira e davam-se às mil maravilhas, nunca brigavam. E eu fiquei feliz com o meu catres de ferro e colchão de penas com desenhos de galos coloridos. O catres era alto, como são por norma todos os catres de ferro e a cama de penas era fofa e quente.
Todas as noites, depois de eu me meter na cama, a minha mãe abeirava-se do catres de ferro onde dorniu tantos anos - não sei como é que ela lá cabia com a minha tia, ambas já adultas - e metia a roupa para debaixo do colchão. Eu ficava protegida, como se estivesse dentro de um ovo. Sentia-me protegida de todos os perigos, medos e males do mundo e não adormecia até que a minha mãe repetisse esse gesto de me acomodar lençol, cobertores e colcha entre o colchão e os farrapos de madeira que constituíam o estrado da cama.
Quando o meu pai regressou da Austrália, uma vez foi ele a ir ajeitar-me a roupa da cama. Eu chorei metade da noite, até adormecer porque achei que tinha ficado diferente, o que eu precisava era do jeito que a minha mãe sabia dar à roupa, para que eu ficasse protegida de tudo, embalada pelo meu catres de ferro e pela minha cama de penas, encolhida, com os joelhos quase a tocarem o queixo. Nunca mais voltei a sentir-me tão protegida, tão certa de que nada de mal me sucederia. Tenho saudades do meu catres de ferro e da minha cama de penas.

sexta-feira, setembro 16, 2005

Com meia ou sem meia?

Esta expressão deve-se à mesma Maria que instituiu o hábito de perguntar a quem se faz esquisito se quer um quarto de cento de laranjas.
Pois bem, conta-se que a Maria antes de ir para a missa ao domingo, ficava por vezes indecisa sobre a roupa que ia usar e respectivos acessórios.
Certo domingo, no meio da terrível indecisão sobre se levava sapatos com meias ou sapatos sem meias, resolveu o caso da seguinte forma: Num pé, calçou a meia e o sapato e no outro pé apenas o sapato. E assim se dirigiu até ao local onde se encontrava a mãe e perguntou-lhe: "Assim, com meia ou sem meia?"
Devo referir que nesta parte da história, sempre que a ouvi contar, a pronúncia e o tom de voz da Maria são inevitavelmente imitados. O tom é de baboseira, já se sabe. E talvez seja por isso mesmo que este simples acto da Maria ficou na história. Quem se podia permitir essas baboseiras naqueles tempos? Em casa dos meus avós, uma casa de oito filhos, seria impensável aa minha mãe ou alguma das minhas tias ir importunar as lides diárias da mãe, com um pé sem meia e outro com meia.
O caso da Maria era uma excepção e por isso é que chegou ao conhecimento da minha geração. Por isso também se transformou numa expressão que se utiliza ainda nas mais diversas situações quando há a possibilidade de optar entre duas situações diferentes: "Com meia ou sem meia?" Uma expressão com sentido figurado que eu própria já utilizei muitas vezes.
Mas ontem à noite lembrei-me dela no seu sentido mais empírico e original. De repente, estava eu ali, qual mãe da Maria do quarto de cento de laranjas, com a tarefa de dar um parecer enquanto a minha menina vestia e despia roupa, calçava e descalçava sapatos. Ela de nada gostava, a tudo punho defeitos, de tudo se queixava e nenhuma das minhas sugestões parecia satisfazê-la. Cheguei a vê-la desfeita em lágrimas, tal a dificuldade em escolher a roupa que hoje deveria levar ao aniversário de uma amiga.
A determinada altura, por entre lágrimas e teimas, e agora na fase dos sapatos, eu sugeri-lhe que calçasse num pé uma das sapatilhas brancas com uma meia pequenina e no outro pé uma das sandálias que ela insistia em preferir. Ela assim fez e decidiu que ficava bem melhor como eu tinha dito, neste caso com sapatilha e com meia.
Enfim, não venham males maiores ao mundo. Afinal, sou mãe de uma pré-adolescente e hoje os tempos são outros. "Com meia ou sem meia?" É bom poder escolher.

quinta-feira, setembro 15, 2005

Arrastar a asinha

Não me lembro de ter usado a palavra "asilhar", tão comum na juventude dos meus pais e dos meus tios. A expressão que me recordo de utilizar era "arrastar a asinha", empregue nas situações em que sabíamos que um rapaz andava de olho numa rapariga.
"Arrastar a asinha" era fazer a corte. Era trazer uma determinada rapariga no sentido e tentar demonnstrar-lhe a preferência, tal como algumas aves se exibem para as futuras parceiras nas alturas do acasalamento.
Era especialmente nos arraiais que se conseguia fazer o levantamento completo e actualizado dos rapazes que andavam "arrastando a asinha" e das raparigas alvo da exibição. Enquanto durava o arraial, rapazes e raparigas passeavam nas zonas à volta da igreja, normalmente aos grupinhos. Cruzavam-se vezes sem fim todos os rapazes e todas as raparigas do sítio ou até da freguesia inteira, nos arraiais maiores. Inúmeras asas se iam arrastando, em deliciosas trocas de olhares e rubores.
Os mais afoitos procuravam posições estratégicas, para melhor seguirem os passos da rapariga eleita ou para mais vezes com ela se cruzarem. E os mais descarados arrastavam a asinha a mais do que uma, claro está.
Nos dias que se seguiam, acontecia a inevitável troca de relatórios. Vizinhas comentavam suspeitas e acrescentavam outras à sua lista. Raparigas desmentiam ou confirmavam o interesse de um certo rapaz, em segredo, às irmãs ou às amigas chegadas.
Como diria o meu tio sobre o "asilhar" do tempo dele, era gostoso perceber que alguém nos arrastava a asinha.

terça-feira, setembro 13, 2005

Asilhar

Não sei se é assim que se escrever porque o verbo "asilhar" não aparece nos dicionários. "Asilhar" era olhar, explica o meu tio, enumerando em seguida as raparigas com quem "asilhava" quando era jovem.
"Asilhar era flertar, entende?" - continua ele com o seu sotaque de quem emigrou há mais de quarenta anos para o Brasil. "Asilhar era bem gostoso! A gente não falava. Ficavamos assim só olhando um para o outro, era mesmo gostoso."
Os rapazes e as raparigas "asilhavam" nos arraiais, nas visitas da Festa, na debulha da palha, nas visitas do Espírito Santo, no adro da Igreja, à saída das missas de domingo.
Claro que todas as pessoas andavam sempre muito atentas para saber quem "asilhava" com quem, afinal quase não havia divertimentos e era necessário encontrar ocupações que fugissem à rotina do trabalho.
"Vocês já sabem quem é que anda asilhando?" Imagino várias cabeças a levantarem os olhos do bordado, a linha e a agulha de repente suspensas no ar, à espera da novidade, e imagino também os comentário que preencheriam o resto dessa tarde. O João anda "asilhando" com a Madalena! Alguns olhares, alheios ainda por cima, bastavam para entreter durante uma tarde inteira as raparigas que se juntavam para bordar. Pensavam nisso e falavam e com isso se divertiam e esqueciam as tristezas e eram contentes. E assim sendo até me apetece ter saudades desses tempos e dessas tardes que não foram os meus.

segunda-feira, setembro 12, 2005

Um quarto de cento de laranjas

"Queres um quarto de cento de laranjas?" É assim que, no círculo restrito familiar, se reage quando se oferece algo ou se faz um favor a alguém e a pessoa ainda por cima se faz esquisita e exigente.
A história deste dito deve ter à volta de cinquenta anos, quando a minha mãe e as minhas tias, todas jovens, passavam o dia ocupadas no bordado. Era normal as raparigas da vizinhança irem "fazer visitas com o bordado."
Levavam o bordado e, todas juntas, à sombra das ameixeiras do terreiro, dos pinheiros do Cabôco ou do Palheirinho que ficava junto à casa, passavam um dia bem mais agradável, porque falavam e riam, nem davam pelo passar do tempo e o bordado até rendia mais.
A Maria ia muitas vezes bordar a casa dos meus avolitos. E quando chegava à hora do jantar, nesse tempo por volta das três da tarde, recebia o inevitável convite para se juntar à família. Em tempos difíceis como aqueles não era um convite para recusar e ela sabia bem disso. No entanto, fazia-se sempre difícil.
"Está bem, eu janto aqui se vocês me derem cinco laranjas." Em casa da Maria não havia laranjeiras e ela aproveita-se da situação para conseguir algumas, indo ao ponto de exigir o número exacto para que coubesse uma a cada membro da sua família.
Imagino a caçoada que a minha mãe e as minhas tias terão feito com aquilo, o que devem ter gozado com aquela situação. De tal forma que o dito ficou e transformou-se. Para enfatizar o ridículo da situação, começaram a dizer que ela queria "um quarto de cento de laranjas".
A partir daí, sempre que alguma situação roçava a esquisitice de alguém perante uma oferta ou um convite, lá vinha a pergunta: "Queres um quarto de cento de laranjas?" Por vezes, para abreviar e porque o sentido da expressão era já bem conhecido de todos, diziam apenas: "Queres um quarto de cento?"
O dito ficou e passou para as gerações seguintes. Eu mesma ainda ontem perguntei à minha filha: "Queres um quarto de cento de laranjas?" Claro que o uso deste tipo de expressões implica a explicação correspondente, mas eu não me importo e até gosto. Imagino que um dia ela poderá registar, como eu, as histórias e as memórias aprendidas com a mãe.
Eu perguntei-lhe se ela queria um quarto de cento de laranjas porque a minha mãe telefonou a convidar-nos para almoçar e eu ouvi-a, ao telefone, perguntar o que era para o almoço e depois ainda por cima como era o arroz. "Então recebes um convite e ainda te fazes esquisita! Queres um quarto de cento de laranjas?"

sexta-feira, setembro 09, 2005

Nem alto de mais nem com os pés d'arrasto

Esta é a minha versão preferida daquele dito muito comum "nem oito, nem oitenta". A minha mãe diz sempre: "Nem alto de mais, nem com os pés d'arrasto". Diz isto quando quer referir-se à necessidade de um meio termo. Quando é preciso ponderar e optar pelo razoável. Quando é preciso corrigir exageros, seja em que situação for. Podemos dizer que é também uma versão da famosa expressão: "No meio é que está a virtude."
Tantas maneiras de dizer a mesma coisa. O povo, mesmo analfabeto ou quase, sabe que a verdadeira sabedoria está no equilíbrio. "Nem alto de mais, nem com os pés d'arrasto". Uma simples frase que reúne o princípio fundamental da vida. "nem alto de mais, nem com os pés de arrasto."
Se conseguir chegar aos 76 anos, que é uma bela idade, quer dizer que estou nesto momento precisamente a meio do caminho da minha vida. Nunca como agora dei tanto valor ao equilíbrio. O que mais desejo é equilíbrio em tudo. Quero viver seguindo a velha filosofia popular: "Nem alto de mais, nem com os pés d'arrasto."
Mas também há outro ditado que diz: "Não há regra sem excepção." E nesse caso, eu permito-me abrir uma excepção. A área em que excluo medidas e meios termos é no Amor. Se um dia vier a encontrá-lo, quero vivê-lo com excesso.

A Sereia de Machico

Nunca tinha ouvido esta história. Nasci e cresci na serra e a maioria das história que me contaram pouco tinham a ver com o mar.
A lenda da Sereia de Machico foi-me contada ontem por uma Andorinha, chamada Patrícia, a quem agradeço todas as visitas ao meu blog e os comentários que tem deixado nos meus textos.

"Conheces a lenda da sereia de Machico? Então vou contar-te.
Quando era pequena (4,5 anos), ia muitas vezes com a minha mãe a Machico
e ela contou-me isso vezes sem fim.
Diz-se que um dia um pescador viu uma sereia junto ao farol.
Apaixonaram-se e todos os dias ela vinha ter com ele à hora combinada, até que um dia o pescador atrasou-se, e alguém tirou o cabelo à sereia para que ela lhe trouxesse riqueza do fundo do mar. A sereia trouxe todo o ouro que encontrou, mas não lhe foi devolvido o cabelo.
A sereia, com vergonha de aparecer ao pescador assim sem cabelo, nunca mais apareceu.
Dizem que o pescador morreu de tristeza.
Lembro-me como se fosse ontem, de estar sempre a dizer: "Mãe, mãe conta lá outra vez"...."Outra vez????" "Oh vá láaaaaaaaaaaaaaaa".

quinta-feira, setembro 08, 2005

Sábados sem sol

A propósito do dote das raparigas, lembrei-de deste provérbio: "Não há sábado sem sol, nem há noiva sem lençol."
Tal como todas as noivas tinham um dote, onde obrigatoriamente constavam alguns pares de lençóis, alguns bordados, outros com uma barra de crochet, dizia-se que todos os sábados tinham ao menos alguns momentos de sol.
E porquê? Porque o sábado era o dia das arrumações. Todo o dia de sábado era dedicado a fazer voltas e em nossa casa cumpria-se essa tradição à risca.
Ao sábado punha-se tudo na rua, mudava-se a roupa da cama, varria-se e lavava-se, e por vezes ariava-se o terreiro e as passadas. Lembro-me, por exemplo, de colocarmos em cima do murinho do terreiro todos os sapatos e depois de os limparmos e darmos pomada.
Era um dia em que não se parava. Os cobertores eram postos a assoalhar e as colchões também. Era uma azáfama constante e terminávamos o dia sempre cansadas mas contentes, com o chão a cheirar a cera, as camas a roupa lavada, e flores frescas nas jarras.
Claro que tudo se complicava quando chovia, sobretudo se a chuva começasse a cair quando já estavam abertas todas as portas e janelas da casa e pelo terreiro espalhados inúmeros objectos. Lembro-me de ouvir dizer: "O sol ainda vai abrir o olho. Não há sábado sem sol nem há noiva sem lençol." Não fiz nenhum estudo aprofundado que agora me permita garantir que era verdade.
Tenho saudades desses sábados, em que tudo era certo, até o sol.
Há dezoito anos, desde que trabalho, que os meus sábados são incertos. Em grande parte deles tenho trabalhado, tal como os domingos. Trabalho de trabalho. O trabalho de todos os dias e não aquele trabalho de antigamente, as arrumações que ao fim do dia nos deixavam aquela sensação de cansaço feliz.
Hoje não tenho dias definidos para arrumações e tenho a certeza de que nada na vida é certo, nem sequer os lençóis das noivas e os sábados com sol. Com essas certezas, ainda que fossem as únicas, viver parecia mais fácil.

quarta-feira, setembro 07, 2005

A mala do dote

Era pela mala do dote que se avaliava o verdadeiro valor de uma rapariga solteira. A mala era uma arca bastante grande, que as raparigas começavam a encher mal ganhavam o primeiro dinheiro no bordado.
"É esperta, trabalha muito. Ganha para se vestir e ainda para o dote!" Com esta simples frase estava gabada uma rapariga e talvez desenhada a sua futura sorte. O dote era comprado aos adelos de Gaula que passavam amiude com todo o género de artigos necessários para a casa.
Quase sempre, a primeira peça do dote era um cobertor. Também foi por aí que a minha mãe cmeçou a compor a mala do dote. Comprou um cobertor da marca vizela, que era a mais afamada na altura, pela quantia de 150 escudos. Uma colcha boa custa à volta de 250 escudos, custava muito a ganhar. A colcha dos noivos da minha mãe, por exemplo, custou 350 escudos.
Era essencial comprar uma peça inteira de pano cru, encomendada ao adelo. Era a partir dessa peça que se faziam os jogos de lençóis. Primeiro a peça era cortada em pedaços, na medida certa, depois lavada e posta a corar no mês de Abril, de forma a ir apanhando sol e chuva, e ir sofrendo o processo de branqueamento.
Comprar o dote era obrigatório, mesmo que se ficasse a dever dinheiro ao adelo, como muitas vezes acontecia. Era em vésperas do Natal que ele passava, sem mercadoria nenhuma, apenas com o metro de madeira na mão, a recolher o dinheiro que lhe era devido.
Quando uma rapariga fazia anos, as outras juntavam-se e compravam-lhe uma peça qualquer para juntar ao dote, gesto que seria devidamente retribuido nos aniversários seguintes.
A par das peças maiores, compradas ao adelo, as raparigas mais bem pensadas lançavam mãos à agulha e bordavam lençóis e fronhas, toalhas de mesa e de lava-mãos, e uma infinidade de toalhinhas para a cozinha, centros para as mesas do quarto-de-fora e tapetinhos para as mesas-de-cabeceira do quarto-da-cama. Entertanto, as camisas da noite eram encomendadas à mais habilidosa costureira do sítio.
O dote de cada rapariga não era segredo, porque elas mostravam umas às outras aquilo que iam guardando para rechearem a casa quando se casassem. Por isso é que toda a gente sabia com precisão quais as raparigas que tinham melhor dote, as que o tinham pior, e naturalmente as que não tinham nenhum. Daí a piada que acharam quando a Gaulesa (uma que vivia na nossa freguesia, e nada tem a ver com as gaulesas das outras histórias) afirmou: "A minha Maria tem uma mala cheia de dote." A rapariga ouviu a conversa e, ingenuamente, perguntou: "Onde, mãe?" E a Gaulesa respondeu: "Então não sabes? No fundo da caixa!"
Ora não havia de ser! A conversa nunca mais foi esquecida. A expressão entrou no vocabulário como uma forma de gracejar quando alguém quer fazer parecer que possui o que na verdade não tem. Ou até em contextos bem mais simples, quando se procura ou pergunta por algo que não existe ou não se sabe onde pára. "Onde?" "No fundo da caixa!"

Gramofones e vitrolas

Antes da telefonia da "Leiteira" e de qualquer outra telefonia do sítio, exitiram os gramofones. O primeiro foi o de casa de "Antôine do Fava", que tinha estado emigrado na América. A esse gramofone chamavam "ricacó", um nome conservado pela fantástica memória da minha mãe, que diz ter sido essa a marca do aparelho (ou algo parecido, pois o nome ficou registado apenas oralmente).
Depois foi o senhor José Duarte, o Caquilha, a ter um gramofone, comprado na cidade em segunda mão.
O "Ti Lexandre" do Pinheirinho foi também o afortunado proprietário de uma vitrola, que trouxe do Curaçau, mas isso já depois do gramofone do senhor José Duarte. O Caquilha, já se sabe, vivia ao lado da casa dos meus avolitos e as duas famílias conviviam diariamente. Desde pequena que ouço a mãe minha recordar, sempre com admiração, esse gramofone, onde se podiam ouvir discos de 78 rotações. "O gramofone era de dar corda para funcionar e era preciso por a agulha em cima do disco com muito cuidado."

terça-feira, setembro 06, 2005

Telefonias


A primeira telefonia do Sítio surgiu na "Leiteira", como era conhecida a mercearia do José da venda, um pouco acima das casa das Cuecas e da Justina da Cosca , no início da ladeira íngreme que vai dar ao Pinheirinho. Deve ter sido no ano de 1950 porque a minha mãe lembra-se de andar na escola da Quintalinha e ir até lá para ouvir na telefonia as cerimónias do 13 de Maio.
Quem teve o segundo desses aparelhos mágicos foi "Antôine do Ti Menino", que morava numa casa de sobrado bem mais para cima sempre subindo a ladeira, no Cabeço das Eiras, ou Cabeço do Ti Manel Correia. Tal como na "leiteira", também ele colocou no exterior da casa um altifalante, de maneira que a música era um tesouro compartilhado com os moradores das redondezas.
A seguir foi a vez da "Canairinha", uma das vendas do Chão das Eiras, onde entrei vezes sem conta durante a infância e a adolescência. Em baixo tinha a mercearia, em cima o bar. Aos domingos a venda estava fechada, mas lembro-me de o senhor José Luís nos deixar passar para comprar alguma coisa, passando pelo balcão do bar e descendo as escadas até ao lugar onde nos vinha servir, dividindo-se no atendimento aos clientes dos dois espaços.
Chegou a vez do senhor José Duarte, mais conhecido como o Caquilha e vizinho dos meus avolitos, tornar-se dono de uma telefonia, por volta de 1954, 55. A minha mãe recorda-a como um aparelho enorme, que tal como os outros funcionava a bateria. João, um dos filhos do senhor José Duarte lembra-se de ver os irmãos de bateria às costas percorrendo a vereda até às Eiras, para depois ser levada ao Funchal a carregar. A minha mãe recorda-se muito bem de um dia em que o senhor José Duarte não conseguia encontrar a onda para sintonizar a telefonia e a manou, juntamente com Teresinha a casa de "Antôine do Ti Zé Menino", perguntar qual era o número.
Ainda antes de chegar a telefonia a casa dos meus avolitos, o Flôr teve a sua e por isso a minha mãe e as minhas tias sentavam-se a bordar na roda de um poio de pinheiros que havia no Cabôco, lugar ideal para ouvir a música em frente, do outro lado do ribeiro.
Nesse tempo só dava música da uma às três da tarde, reabrindo às sete da tarde nos dias de trabalho. Aos domingos a emissão começava à uma da tarde e não era interrompida. As raparigas adoravam os romances, adoravam a música pedida.
O sonho da telefonia só se tornou real em casa dos meus avolitos por volta do ano de 1960, quando dos oito filhos, já apenas estavam em casa a minha mãe e a minha Tia Salomé. A telefonia que conheci toda a vida custou três contos. O meu avolito pagou metade e a minha mãe e a minha tia puseram o resto do dinheiro, ganho no bordado e na tela.
"Lília, põe-me a telefonia no terço". Muitas vezes me cheguei ao pé da telefonia para garantir que estava sintonizada "no terço", que os meus avolitos seguiam religiosamente todos os fins-de-tarde. A velha telefonia alegrou a juventude da minha mãe e da minha tia e fez companhia aos meus avolitos durante nos calmos e longos anos da velhice. Quando a minha avó faleceu, aos noventa e seis anos, a telefonia passou a fazer companhia à minha mãe, que sempre teve o cuidado de a ter na Antena Um para poder ouvir-me à hora dos noticiários.
Mal sabia ela, quando juntou dinheiro do bordado para ajudar a comprar a telefonia, ainda incrédula da magia que fazia chegar vozes e música com o simples ligar de um botão, que um dia ainda ia ouvir sair desse aparelho, clara e segura, a voz da filha mais velha.

This page is powered by Blogger. Isn't yours?

Web Pages referring to this page
Link to this page and get a link back!