terça-feira, setembro 20, 2005

O catres de ferro e a cama de penas

Tenho saudades do meu velho catres (agora sei que a palavra é catre, mas foi sempre assim, com este s no fim que eu ouvi pronunciarem no meu sítio) de ferro com cama de penas, onde dormi grande parte da minha infância e da adolescência.
Eu passei para esse pequeno catres de ferro, de pessoa só, quando a minha irmã mais nova deixou de caber no berço de madeira, que tinha servido para todas. Ela já era comprida demais para o berço, tinha de dormir encolhida e foi por isso que um belo dia alguém teve a ideia de serrar a parte de madeira do lado dos pés, para que as pernas dela pudessem esticar-se à vontade. Tenho pena de não ter uma fotografia da minha irmã dormindo nele, com os pés a sairem do buraco, porque a armação de madeira tinha ficado intacta.
Nessa altura, eu e a minha irmã do meio dormíamos na mesma cama, uma cama de madeira, de pessoa e meia, comprada de propósito para nós. Mas não nos entendíamos bem e passávamos o tempo a brigar, cada uma empurrando a outra para o outro lado e resmungando.
Eis que chega o catres de ferro, tão antigo que a minha mãe tinha dormido nele praticamente toda a vida antes de casar, juntamente com a minha tia Romana. O catres foi lixado e pintado de branco e para ele aproveitou-se um colchão que me deixou fascinada: era muito colorido, com fundo azul forte e desenhos de galos por todo ele. Dentro estava cheio de penas, que tinham sido da cama dos noivos da minha tia Salomé.
Fiquei com uma cama só para mim, que foi colocada junto à parede do quarto. Por detrás do catres ficava a escada de madeira que ia dar ao sotão. As minhas irmãs passaram a dormir as duas na cama de madeira e davam-se às mil maravilhas, nunca brigavam. E eu fiquei feliz com o meu catres de ferro e colchão de penas com desenhos de galos coloridos. O catres era alto, como são por norma todos os catres de ferro e a cama de penas era fofa e quente.
Todas as noites, depois de eu me meter na cama, a minha mãe abeirava-se do catres de ferro onde dorniu tantos anos - não sei como é que ela lá cabia com a minha tia, ambas já adultas - e metia a roupa para debaixo do colchão. Eu ficava protegida, como se estivesse dentro de um ovo. Sentia-me protegida de todos os perigos, medos e males do mundo e não adormecia até que a minha mãe repetisse esse gesto de me acomodar lençol, cobertores e colcha entre o colchão e os farrapos de madeira que constituíam o estrado da cama.
Quando o meu pai regressou da Austrália, uma vez foi ele a ir ajeitar-me a roupa da cama. Eu chorei metade da noite, até adormecer porque achei que tinha ficado diferente, o que eu precisava era do jeito que a minha mãe sabia dar à roupa, para que eu ficasse protegida de tudo, embalada pelo meu catres de ferro e pela minha cama de penas, encolhida, com os joelhos quase a tocarem o queixo. Nunca mais voltei a sentir-me tão protegida, tão certa de que nada de mal me sucederia. Tenho saudades do meu catres de ferro e da minha cama de penas.

Comments:
O teu blog está cada vez mais interessante. Era curioso fazer uma análise sociolinguística. Talvez um desafio para mais tarde. Beijos. Virgílio Nóbrega
 
Olá, boas tardes! Infelizmente não tive uma cama de penas, imagino como deveria ser confortável, na minha casa só tínhamos as "fronhas", almofadas de penas que eu adorava! Tínhamos uma cama de lã de ovelha, que a minha mãe ponha a assoalhar no verão em dias de muito sol, abria a lã toda de novo enquanto lavava o forro da cama e este secava, também era bom. Por baixo deste, havia uma enxerga, feita de palha para proteger a cama! Os catres eram de ferro e de madeira alguns, e dormíamos 2 a 2 também! Obrigado por nos fazeres recordar estes tempos!
Camacheiro
 
A minha infância foi mto diferente,nunca tive nenhuma cama assim com mta pena minha...gostava de ter conhecido a sensação...
 
Ola...adoro este blogue,e esta memoria tua fez me relembrar que a minha mae tambem me aconchegava a roupa e eu sentia a mesma coisa..estava protegida e bem quentinha...obrigada por partilhares as tuas memorias...
 
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