quinta-feira, outubro 27, 2011

a discrição do padre

Talvez nos tenhamos cruzado na Rua dos Netos, no tempo em que a Rua dos Netos era a rua da rádio, a minha rua de todos os dias de trabalho. Talvez nos tenhamos cruzado mas a verdade é que não me lembro da figura de um padre que alguns recordam até hoje por causa da história que eu vou contar.
Contaram-me a história que eu vou contar a propósito de uma conversa que surgiu como as cerejas a partir de outra história que também aqui hei-de contar e que surgiu como as cerejas, a propósito de um simples um copo de vinho.
Pois bem.
Havia um padre que passava muito na Rua dos Netos. Entrava sozinho no bar do senhor José, e pedia dois cálices de aguardente. Vendo-o sozinho, perguntavam-lhe: para quem é o segundo? Ele respondia que era para um colega, que vinha atrás, mesmo atrás, já devia estar quase a entrar.
O padre bebia de um único gole o seu cálice de aguardente. Depois dirigia-se até à porta, como quem procurasse o suposto colega, olhava para um lado, olhava para o outro e voltava para junto do balcão. Com um encolher de ombros, bebia o segundo cálice, enquanto explicava, fingindo surpresa, que o colega, afinal, não apareceu.
Ora bem.
Segundo a interpretação do colega que me contou esta história, guardada carinhosamente por entre as memórias do tempo em que a Rua dos Netos era a nossa Rua por ser a rua da rádio, o Padre com quem talvez eu também me tenha cruzado mas não me lembro, era um padre discreto. Não queria dar nas vistas, não queria parecer demasiado ávido por bebida, não queria ser criticado. O padre que bebia dois cálices de aguardente no bar do senhor José queria tanto passar despercebido que acabou ficando na história.

segunda-feira, outubro 10, 2011

uma frigideira mascarrando uma panela

Situações do dia-a-dia conduzem-me muitas vezes à recordação desta expressão, que na minha juventude ouvia da boca das pessoas mais velhas.
Esta expressão era utilizada com propriedade nos momentos em que alguém criticava outra pessoa, sem se aperceber que cometia os mesmos erros, aqueles que apontava, talvez até mais alguns, e quem sabe bem mais graves.
Antigamente tanto as panelas como as frigideiras andavam sempre mascarradas porque eram colocadas directamente sobre as pedras do lar, apanhando com o fogo da lenha praticamente em toda a superfície. Ora, uma frigideira tem menos superfície para mascarrar do que uma panela.
A expressão faz sentido e tem piada. O que eu gostava era que não se tivesse banalizado tanto o contexto em que encaixa como uma luva.

sexta-feira, outubro 07, 2011

cravos e rosas

O meu amor é um cravo
Foi o qu'o craveiro deu
Toda a gente tem inveja
Daquele cravo ser meu

Eu sou cravo, tu és rosa
Qual de nós se estima mais
Os cravos andam pelas janelas
E as rosas pelos quintais

Rosa que 'tás na roseira
deixa-te 'tar fechadinha
qu'eu vou lá fora e venho
Rosa tu vais seres minha

Não quero amor alto
Que não me caiba na porta
Quero um amor rasteirinho
Com'um craveiro na horta

Menina por ser bonita
não julgue que mais merece
quanto mais bonita é a rosa
mais depressa desvanece

Minha avó chama-se rosa
minha mãe Rosa Maria
Eu também me chamo Rosa
Minha mãe c'a rosaria

Daqui até à minha terra
é tudo caminho chão
é tudo cravos e rosas
plantados por minha mão

Muitas quadras populares, como estas que recolhi no Sítio da Ribeira dos Pretetes (Caniço) em 1986, mencionam estas duas flores tão comuns: cravos e rosas.
Normalmente, o povo utiliza a imagem do cravo para se referir aos rapazes e a da rosa para se referir às raparigas. Cravos e rosas nos jardins. Rapazes e raparigas nas eiras, nos adros das igrejas, nos bailaricos, nos afazeres diários, à distância exigida pelas convenções da época, mas nunca separados.

quinta-feira, outubro 06, 2011

dívidas e pecados

"Dívidas e pecados cada um paga por si."
A minha mãe utilizou esta sábia expressão, numa conversa simples que tivemos hoje à tarde.
Vim embora e trouxe-a comigo, presa ao ouvido.
Penso: é bem verdade. As minhas dívidas e os meus pecados, mais ninguém paga senão eu.
Penso: que máxima interessante. Se cada um pagar pelas suas dívidas e pelos seus pecados, tudo está certo no mundo.
Mas depois penso no mundo. Depois penso no mundo em ponto pequeno onde vivo e trabalho. Depois percebo que já não e bem assim. Depois entristeço-me. Porque até as máximas mais universais começam a perder actualidade.

domingo, outubro 02, 2011

de arrancar castanheiros

Para além da massa cortada grada, a sopa tinha de tudo e mais alguma coisa: nabo, semilha, batata, feijão, pimpinela, abóbora amarela, cebola, cenoura, vajinha, maçarocas, couve fechada, folhas de couve, inhame, e ainda abundantes bocados de carne de vaca com um pouco de gordura e talvez mais alguma coisa de que não me lembro.
O meu pai deixou a enxada a meio do poio, no local exacto onde cavara as últimas semilhas e onde deveria recomeçar a tarefa, sacudiu a terra das botas d'água, lavou as mãos no poço de lavar, entrou na cozinha, sentou-se à frente do prato fumegante, esfregou as mãos de contente e exclamou: - "Esta é de arrancar castanheiros."
Duas colheradas depois, voltou a gabar a sopa e a usar o dito dos castanheiros. Contive-me. Deixei passar mais um bocadinho, mas algumas colheradas depois lá estavam as minhas inevitáveis perguntas sobre a expressão "de arrancar castanheiros", às quais respondeu com bom humor. Graças a um prato de sopa à moda da minha mãe, fiquei a saber que os castanheiros são as árvores mais difíceis de arrancar. Por isso se diz dos pratos mais substanciais, daqueles que dão muita energia, que são "de arrancar castanheiros".

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