domingo, março 29, 2009

O velho e a velha

- "Viste o meu Velho?"
A minha avó levantava os olhos do bordado ou do lar que tentava acender com gravetos e faúlhas e enquanto eu encolhia os ombros, dizia: "Não sei onde anda o meu Velho."
Às vezes era o meu avô que me pedia: "- Diz à minha Velha que eu vou caminhar."
Os meus outros avós , que viviam mais longe, também se tratavam assim. Diziam Velho e Velha, em vez de dizerem marido e mulher. E esse nome soava bonito...era lindo ouvi-los tratarem-se assim.
Eu ficava fascinada. E ainda mais fascinada fiquei quando soube que eles também se tratavam assim quando eram jovens. Os meus avós eram do tempo em que as pessoas passavam de noivos a velhos quando casavam. No tempo dos meus avós havia apenas três estágios num relacionamento: quando se olhavam, quando se tornavam noivos e quando passavam a velhos.
Era talvez aquela forma de se tratarem - Velho e Velha - que eternizava as relações, mais do que os papeis e as cerimónias religiosas.
Foi assim, graças à doçura da forma como se tratavam os meus avós, que eu cresci querendo ser Velha.

quinta-feira, março 19, 2009

Dia de semear as pevides

É um ritual que se repete anualmente com o rigor determinado pelas crenças de quem trabalha a terra. O melhor dia para semear na caseira as pevides de aboboreira é no Dia de São José, 19 de Março.
A caseira até pode ficar pronta antes, mas a pevides ficam à espera de serem metidas na terra, no dia em que ficará garantida uma melhor colheita.
O dito fala nas pevides, mas entretanto as pessoas foram aproveitando a "boleia" e há quem deixe para plantar neste dia, por exemplo, os bolbos das açucenas. Era o que a minha mãe queria fazer com um bolbo de açucena amarela que lhe dei. Mas o dia passou e entre os muitos afazeres, não sobrou tempo. Espero que o São José perdoe a falta de tempo e o cansaço da minha mãe e abençoe a açucena amarela, mesmo que plantada noutro dia.

terça-feira, março 10, 2009

um ano de nêsperas

Vi uma nespereira totalmente carregada de frutos. Era uma árvore enorme à que mal se viam as folhas, de tal forma se tinha coberto de nêsperas amarelas e muito luzidias.
Vi uma nespereira gigante carregada de frutos e lembrei-me. Lembrei-me de um dito antigo, do tempo em que as pessoas observavam e conheciam bem os segredos da Natureza, que dizia: "Um ano de nêsperas é um ano de vinho."
Este vai ser "um ano de vinho". Ainda bem. Brindemos à abundância de tudo. Não apenas de nêsperas e vinho, mas de tudo o que seja bom.

sexta-feira, março 06, 2009

para a lua não intender com os bebés

Antes de os bebés serem baptizados, ninguém se atrevia a deixar as roupinhas a secar durante a noite. Mesmo que estivesse bom tempo e a roupinha do bebé ainda não estivesse enxuta, antes de anoitecer era cuidadosamente retirada do estendal e guardada dentro de casa. No dia seguinte, de manhã, voltavam a estendê-la ao sol.
Todo este cuidado era necessário para evitar que a lua intendesse com os bebés. Se não se tivesse em atenção este procedimento antigo, a lua passaria a dominar, a exercer influência sobre a criança, o que não era nada bom.
Disseram-me isto quando lavei as primeiras roupinhas da minha bebé, muito antes de ela ter nascido. Pelo sim, pelo não, cumpri a superstição à risca.

segunda-feira, março 02, 2009

lenços são apartamentos

No tempo em que se ofereciam lenços da mão, ninguém o fazia sem antes dar um nó numa das pontas do lenço. Os lenços eram bordados numa das pontas, havia desenhos lindos e muito complexos, desenhos que demoravam dias a bordar. O nó era dado numa das outras ponta, de forma que ficava escondido quando se apresentava o lenço dobrado, notando-se apenas uma pequena saliência na superfície do tecido de cambraia.
O nó no lenço era uma forma de evitar o que está determinado na seguinte superstição: "lenços são apartamentos". O lenço estava associado às partidas, em que muitas pessoas acenavam com lenços brancos em sinal de despedida. Estava também associado às lágrimas derramadas depois, nos momentos de saudade. Por isso esta associação lógica entre "lenços" e "apartamentos".
Mas nesse tempo em que se ofereciam lenços da mão bordados na ponta, havia sempre uma pequena solução para tudo. E neste caso, a solução era um nó dado numa ponta do elnço pelo pessoa que o oferecia. Soluções simples. Para grandes males. Para pequenos males. Soluções simples. Que se por vezes não resultavam era apenas porque "não há regra sem excepção" ou, mais simples ainda, porque era a vontade de Deus. Fazia-nos bem voltar a essa simplicidade ancestral em que havia uma solução para tudo. Fazia-nos bem acreditar que um simples nó na ponta de um lenço podia evitar um "apartamento".

domingo, março 01, 2009

encontrar uma aguelheta

"Quem encontra uma aguelheta no caminho, tem a vida atravessada".
Há anos que não vejo uma aguelheta. Será que alguém ainda utiliza aguelhetas para prender o cabelo?
Lembro-me tão bem de a minha mãe prender o cabelo com aguelhetas, todos os dias de manhã. Colocava-as no parapeito da janela, enquanto fazia uma longa trança, e depois transformava a trança num carrapito, que ia tomando forma graças às aguelhetas, que ela, cuidadosamente, ia retirando do parapeito com a mão direita, enquanto segurava com a esquerda o carrapito meio feito, meio por fazer. Enfiava-as com cuidado, uma parte na trança enrolada, outra junto à cabeça, e apertava bem, para que o penteado não se desfizesse.
Às vezes, as aguelhetes sumiam-se, que atentação! Apareciam mais tarde, atrás das cadeiras, debaixo do vestuário, vinham à frente da vassoura quando se varria a casa e era preciso resgatá-las do meio do pó e dos restos de lãs da tela.
Nesse tempo, não era difícil que alguém encontrasse uma aguelheta perdia no caminho e ficasse "com a vida atravessada". Agora é praticamente impossível encontrar aguelhetas. Mas há outras formas de a vida se nos atravessar, e de constantemente nos surpreender.

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