sábado, setembro 29, 2007

Chapéus que atrasam a vida

Quando eu era criança, muitos homens ainda usavam chapéu, os mais velhos quase todos e alguns de meia idade. O meu tio Manuel, por exemplo, usava chapéu. Os meus avós também. O meu tio usava um chapéu castanho nos dias normais e um cinzento, acho que era cinzento, nos dias especiais, como o domingo. Lembro-me que colocava o chapéu um pouco de lado, era o jeito dele.
Os chapéus dos meus avós, os chapéus de que me lembro e que eram os melhores, os "da missa", eram pretos. O meu avô materno costumava pô-lo mais ao meio da cabeça, era o jeito dele. E foi precisamente o chapéu preto desse meu avô que eu um dia pedi emprestado no dia de Carnaval para uma pequena brincadeira, porque na verdade eu nunca gostei de disfarces, na verdade sempre detestei disfarces.
Eu achava lindo aquele chapéu, com um jeito na copa, ligeiramente amolgada para dentro, e a sua fita de seda. Fizeram-me muitas recomendações, afinal aquele era o chapéu melhor, e não lhe aconteceu nada, evidentemente, porque eu trato as memórias como autênticas preciosidades. Guardo esse episódio com um carinho especial, não poderia ser de outra maneira.
Ora bem, seguindo a lista de superstições que fui recolhendo ao longo do tempo, duas linhas abaixo da que fala dos girassóis (texto anterior), encontro esta: "Atrasa a vida" uma mulher pôr um chapéu de homem na cabeça. Basta que sim! Soubesse eu disto e teria, ao longo da minha vida, poupado todo o tempo que passei a tentar procurar explicações para o inexplicável.

quinta-feira, setembro 27, 2007

Girassóis

Eram flores estranhas. E sendo assim, estranhas, geravam em mim um sentimento contraditório. Fascinavam-me, sem dúvida. Mas, há sempre um mas, também me assustavam um pouco. Afinal, era impensável enfeitar com flores daquele tamanho as pequenas jarras da mesa do "quarto-de-fora".
As flores maiores do mundo, pelo menos do meu mundo, pareciam não encaixar bem em lado nenhum. Eu compreendia. Compreendia muito bem esses girassóis que não sei a que propósito, um belo dia surgiram como grande novidade, plantados no poio à frente do jardim, do verdadeiro e primeiro jardim, o jardim de sempre.
Foi um Verão diferente, aquele Verão de girassóis. Poucas novidades aconteciam no nosso pequeno universo, não acontecia quase nada de verdadeiramente diferente. Por isso aquela novidade dos girassóis foi vivida e sentida de uma forma única.
Tivemos girassóis durante mais alguns verões, não sei precisar quantos, mas na minha memória houve mais verões com esses sóis amarelos polvilhando o poio à frente do jardim que ficava à frente do terreiro que ficava à frente da casa.
Misteriosamente, tal como apareceram, um dia os girassóis desapareceram do poio e das nossas vidas e nunca mais voltaram. De vez em quando lembro-me. Tenho saudades de ver girassóis e apetece-me não ver nenhum, para que aqueles sejam sempre os únicos girassóis do mundo (nosso).
Um dia destes, num daqueles momentos em que me ponho silenciosamente a esgravatar memórias, folheando cadernos amarelados com anotações avulsas, encontrei algo sobre girassóis. Numa lista de superstições que, com o tempo, com certeza abordarei neste blog, encontrei esta: "Não se deve ter girassóis, porque atraem as feiticeiras". Está assim explicada a raridade dos girassóis nos jardins e a consequente estranheza com que acolhemos aquelas flores, por nunca as termos antes visto. Quanto às feiticeiras, não me apercebi de que tivessem aparecido, atraídas pelos girassóis. Mas quem sou eu para pôr em causa a antiga sabedoria popular.

domingo, setembro 23, 2007

A laranjinha da China

De entre as cantigas populares que aprendi com a minha avó e com a minha mãe, surpreendo-me muitas vezes a cantarolar baixinho "A laranjinha da China".
Não sei porque razão me lembro mais desta do que das outras cantigas que antigamente se cantavam aos domingos e dias-santos, nos terreiros, ou nas eiras durante a debulha do trigo.
Sempre gostei desta em especial, talvez por me parecer com mais necessidade de ser lembrada. É que nunca a ouvi recriada por nenhum dos grupos que se dedicam às recolhas da tradição musical da nossa terra.

A laranjinha da China
É doce e sabe bem (bis)
Gostava de dar um beijo
No par que dança bem

No par que dança bem
Agora, agora, agora (bis)
Voltinhas, meninas voltinhas
Amores vamos embora (bis)

Amores vamos embora
para a serra da estrela (bis)
Apanhar a rosa branca
escolhida pela açucena (bis)

Então porque não, porque não
Então porque não hei-de ir (bis)
As muralhas do castelo
são bem altas de subir

São altas de subir
São baixas de abaixar (bis)
Já lá vai o meu amor
Para a vida militar (bis)

segunda-feira, setembro 17, 2007

Cura de olhado ou inveja (2)

"Em nome do pai, do filho e do espírito santo, Maria (o nome da pessoa que está a ser curada) eu te curo de olhado (ou inveja) ou mal invejante que no teu corpo 'tá metido e na tua formusura e na tua carnura e na tua boniteza e no teu rir e no teu falar e no teu comer e no teu beber que no meio daquele mar Deus o queira deitar e que em coisa viva não torne mais."

No dia 30 de Novembro de 2005 coloquei neste blog uma cura de olhado ou inveja. Esta é outra versão e muitas ainda devem existir, conforme as freguesias e até os/as curandeiros/as.
A oração deve ser repetida nove vezes, como todas as "coisas de Nossa Senhora", usando uma cruz de alecrim.
No final, deve-se experimentar (a forma de experimentar também está registada neste blog, com a data de 2 de Dezembro de 2005) a ver se a pessoa ficou boa ou se continua com olhado. Se ainda o tiver, deve ser curada novamente mas não de imediato. Se a primeira cura for feita de manhã, uma segunda só deve ser feita à noite ou no dia seguinte.
Também é importante dizer que para serem eficazes a pessoa que cura deve receber pagamento em dinheiro pelo trabalho. Não põe preço mas deve ser paga, é o que dizem os antigos.

domingo, setembro 16, 2007

À espera do sarampo

Quando o sarampo atingiu a casa dos meus avolitos, pegou logo nuns poucos de miúdos, claro está, afinal eram oito filhos em casa.
O meu Tio José Manuel não foi atingido pela doença, mas não desanimou. Durante oito dias, esperou calmamente os sinais do sarampo, sem acreditar que não chegaria a vez dele.
A cada dia que passava, sentia uma nova desilusão. Os outros tinham sarampo, mas ele nem sinais. O meu tio José Manuel achava que tinha igual direito a ter sarampo "para beber leite como os outros."
Nesses oito longos dias de espera, um dia ele amanheceu com tremores de frio e pensou que tinha chegado a hora, finalmente. Sentindo o tilintar das folhas do leiteiro quando ele passou no terreiro, gritou-lhe da cama: "Deixe mais um litro de leite."
Mas o meu tio José Manuel, vai-se lá saber porquê, nunca chegou a ter sarampo.
Do que não se livrou foi do registo deste episódio na memória colectiva da família. E da sua utilização em situações engraçadas: "- Vais ficar oito dias à espera do sarampo?" Ou então: " - Porque não pedes ao leiteiro para deixar mais um litro de leite?"

Erva-doce e outras ervas

Fiz chá erva-doce e ficou tão bom, bebi duas chávenas. Fiz porque gosto do sabor e, sobretudo, do cheiro. Então lembrei-me que antigamente cheirava a erva-doce em todas as casas com bebés recém-nascidos. Todas as mães tomavam chá de erva-doce, muito, para terem abundância de leite e poderem amamentar as suas crianças.
Em todas as casas com bebés pequenos cheirava a erva-doce mas também se sentia, mal se chegava à porta, um cheiro de aguardente. A aguardente era servida às visitas, mas também era usada na confecção de uma infusão a que se juntavam ervas, obrigatória para todas as parturientes.
Para além da aguardente, essa infusão especial era composta por madre de louro, canela, botões de arruda, erva-doce e botões de cravo da índia.

Algumas destas ervas - a arruda e a madre de louro - eram das mais utilizadas nas doenças relacionadas com o útero. Mas para esses padecimentos também se usavam chás de lombrigueira, losna, alfinetes de senhora, artemija, cuidados, marroios, poejos, salva e ainda acelgas, alfavaca e amor-de-burro.
O alecrim de Nossa Senhora e a alfazema serviam para banhos. Sobre o útero colocavam uma cataplasma de arruda, alfazema ou rosmaninho pisados, um ovo batido e um pouco de farinha. Para acalmar as dores menstruais também era costume as jovens tomarem meio cálice de aguardente.

Chás para o coração

Há três chás que a sabedoria popular recomenda para o coração: chá de laranjeira, chá de boliana e chá de pessegueiro inglês.
É com grande pena que me apercebo que hoje em dia já não reconheceria a boliana. A minha avó falava tanto neste chá, provavelmente tem outras aplicações e eu terei anotado apenas esta, a de fazer bem ao coração.
Tantos chás para o coração físico e nenhum chá para o outro coração, o coração que às vezes tem desgostos de amor.

Remédios para as dores de cabeça

Encontrei nas minhas antigas anotações, dois remédios para curar dores de cabeça.
O primeiro: colocar folhas de limoeiro na testa e amarrar um pano por cima.
O segundo: colocar na testa um pano molhado em leite de cabra "quente do mojo".

Durante muitos anos, tivemos uma cabra num pequeno curral e lembro-me de o meu pai entrar na cozinha de manhã com um jarro cheio de leite a fumegar, acabado de tirar. Mas há anos que a cabra foi vendida, não sei por quê nem me lembro a quem.
Sobra a solução das folhas de limoeiro. Temos ainda o limoeiro de sempre, embora esteja muito velho e já nem sequer dê limões. Quem sabe? Às vezes basta acreditar em milagres para que eles aconteçam.

sábado, setembro 15, 2007

Cura de frio

Antigamente, as pessoas podiam ser curadas de frio. Tinham uma dor e podia ser "uma dor de frio", causada por um frio qualquer que tivessem apanhado e nesse caso era preciso curar. Eu nunca assisti a nenhuma cura dessas mas recolhi a reza da cura de frio há muitos anos e sei que a pessoa que curava dizia a oração enquanto segurava uma tesoura aberta sobre o lugar da dor.
Transcrevo a cura tal como ma deram, por especial favor, escrita numa folha de linhas arrancada a um caderno.

"Com o santíssimo nome de Jesus Cristo em quem eu creio e adoro verdadeiramente, que há-de julgar os bons e a glória e castigar os maus penas eternas, Maria (ou outro nome) todos estes ares maus constipados que neste corpo tens, nesta cabeça, nestes miolos, nesta testa, nestas fontes, nestes olhos, nesta cara, nestes ouvidos, neste pescoço, neste peito, neste coração, neste bofe, neste fígado, neste ventre, neste uter, nesta carne, nestas veias, nestas pernas, nestes pés, se é ar de porta, se é ar de janela, se é ar de ribeiro, se é ar de ribeira, se é ar de algum mal invejado naquele mar seja deitado que é um mar tão poderoso que pode com o bem e com o mal. Agora eu te curo de ar frio, de ar de quente, se é ar deste corpo. Quem te cura não sou eu que é o Santíssimo Sacramento com todos os santos que na corte do céu estão lá a ti querem curar com a sua santíssima Mãe que tem esse poder, eu não. Ámen, assim seja."

Foi o meu tio José Isidro Nóbrega, que Deus lhe dê o Céu, quem me prometeu arranjar esta reza e um dia chegou a casa dos meus pais com o tal papelinho para me dar, lembro-me que fiquei contente, e lhe agradeci com um sorriso grande. E a cura resultava? Ele respondeu que sim, mas isso não posso saber. Mesmo que ainda existisse alguma curandeira especialista nesta cura de frio, duvido que me conseguisse tirar o frio que sinto na alma, tenho a certeza que não.

O Chorar

"Dizem qu' o chorar dá alívio
Às penas do coração
Chorar eu tenho chorado
E as penas de mim não vão."

Recolhido na Ribeira dos Pretetes - Caniço

terça-feira, setembro 11, 2007

Emantada

" - O que é que tens, pequena? Andas emantada." Já ouvi esta pergunta muitas vezes e acho-lhe sempre piada. De onde virá o adjectivo emantado/a?
Uma pessoa anda emantada quando está, por exemplo, a chocar uma gripe. Resumindo: uma sensação de apatia, de um certo cansaço dolorido, de um não saber o que se passa mas não ser nada agradável, uma espécie de frio, misturado com algum desânimo e fraqueza.
Normalmente, sentimos necessidade de vestir mais roupa, de nos agasalharmos, e talvez seja por isso que uma das minhas tias dá a emantado/a também esse significado.
Emantado/a é um adjectivo que se refere normalmente a um estado físico que parece anunciar uma doença. Mas pode ser também aplicado a estados de espírito, e talvez tenha passado a sê-lo porque muitas vezes as duas situações se misturem.
A minha recorda, a propósito, uma velha cantiga, que eu não conhecia.

"À porta de meu pai passa
Um frangaínho emantado
Vai-te embora, frangaínho
Que tu andas enganado."

Na cantiga, frangaínho é uma forma de designar um rapaz novo (Não é a primeira vez que ouço chamarem "frangaínho" a um jovem rapaz) e claro que "emantado" neste contexto significa triste, pela esperança ou pela dor de algum amor não correspondido.
Não sei qual é o meu caso. Não sei se é físico, se é espiritual, se é uma mistura dos dois. Sei apenas que estou emantada.

segunda-feira, setembro 10, 2007

Senhora do Livramento

O arraial de Nossa Senhora do Livramento, na minha freguesia (Caniço), já foi um dos maiores da Ilha, a par do Monte, Bom Jesus, Loreto e Senhor dos Milagres.
Não sei como foi este ano, porque estive a trabalhar e não consegui ir nem à Festa religiosa nem ao Arraial. Recordo o acontecimento com uma quadra popular que integra as minhas recolhas.

"Senhora do Livramento
Tem uma pereira à porta
Senhora dê-me uma pêra
Quero ser sua devota."

domingo, setembro 09, 2007

Intejar

Hoje mesmo usei esta palavra. Disse à minha filha que se acaso continuasse a comer tanto queijo ainda ia acabar por intejá-lo.
"Intejar" significa aborrecer-se para sempre, enfastiar-se. Intejar é deixar de gostar de algo, e usa-se normalmente para falar de comida. Tenho a ideia de já ter ouvido o verbo utilizado noutros contextos, mas não posso jurar.
É um pouco aquilo que acontece com as cascas dos ovos, que mencionei no texto anterior.
"Intejar" é o resultado de as pessoas por vezes não conseguirem dosear as coisas, de perderam a noção do equilíbrio.
Não me lembro de já ter intejado alguma coisa. Talvez tenha intejado queijo quando era criança, não sei se é verdade ou se me lembrei disso devido ao meu receio de que tal possa suceder com a minha menina.

sábado, setembro 08, 2007

As cascas dos ovos

Era remédio santo. Toda a gente seguia a velha e sábia recomendação e deitava cascas de ovos às galinhas. Lembro-me de as ver num canto qualquer do galinheiro, ao lado de mão-cheias de milho em grão, couves e restos de comida. As galinhas depenicavam as cascas dos ovos até se fartarem delas. Esse era o princípio.
A ideia desse procedimento antigo era levar as galinhas a se aborrecerem de comer cascas de ovos. Ora, se elas comessem tanto até se aborrecerem de vez, as pessoas podiam estar descansadas: nunca mais na vida lhes passaria sequer pela cabeça tentarem comer os ovos que punham.
Hoje em dia já quase ninguém tem galinheiros como antigamente e por isso esta técnica simples de prevenir que as galinhas comessem os ovos, caiu provavelmente no esquecimento.
Nós também não temos já o velho galinheiro com rede de maia e com poleiros lá dentro, com muitas galinhas e alguns galos. Mas de vez em quando se fala na história das cascas dos ovos. Isso acontece sempre que alguém , por gostar muito de um particular manjar, o come em demasia. Logo surge a voz da experiência a alertar para que tenha cuidado, porque lhe pode acontecer como às galinhas com as cascas dos ovos. Pode enfastiar-se e nunca mais na vida conseguir comer esse alimento.
"- Olha as cascas dos ovos..." e não é preciso dizer mais nada.
Embora com nostalgia desses gestos antigos, com pena do seu desaparecimento, alegra-me que tenham, ao menos, ficado perpetuados sob a forma de dizeres.

sexta-feira, setembro 07, 2007

A crena e a catrapilha

Lembro-me tantas vezes destas duas palavras, que na infância nos causavam um autêntico fascínio.
Crena era o nome que dávamos a uma grua e catrapilha a uma escavadora. As duas palavras ainda são bastante usadas no nosso madeirense. Catrapilha é uma espécie de tradução da marca das primeiras máquinas do género: Caterpillar. É um fenómeno linguístico interessante, em que o nome de uma marca passa a designar um objecto. Acontece o mesmo com gilete, por exemplo. Aqui acresce ainda o aportuguesamento da palavra original. Em relação a crena não faço ideia da origem.
O que sei é que já fui uma criança fascinada com essas novidades, tão estranhas, tão raras, quase mágicas. Hoje há crenas e catrapilhas em todos os bocadinhos de terreno, onde eu queria ainda ver o verde dos pinheiros e sentir o rumor da brisa nos ramos das árvores e subir e descer pequenas veredas e subir bardos e descobrir ninhos e ouvir pássaros entre as folhas mais altas. Envergonho-me daquele sentimento infantil de admiração pelo novo. Mas o tempo não volta atrás e as crenas e as catrapilhas multiplicam-se todos os dias e daqui a dias não restarão poios, não restarão bardos, não restarão jardins, não restarão caminhos ladeados de erva rija, nem ribanceiras cheias de silvados com amoras.

quarta-feira, setembro 05, 2007

Sol e chuva

Às vezes faz sol
E chove na mesma hora
Às vezes também eu rio
Quando o meu coração chora

Recolhido em 1986, Sítio da Ribeira dos Pretetes - Caniço

A propósito de atremar

A propósito do verbo "atremar", que possivelmente tem origem em "termo", não sei mas é bem capaz, veio-me à memória uma quadra que ouvi da minha avolita.

O que é mais triste é a mulher
Qu'a um homem tudo lhe é dado
Eu cá gosto de falar
Com quem atrema um recado

Os dois primeiros versos desta quadra do brinco são a herança de um tempo que, infelizmente, ainda não está muito distante. Aliás, de um tempo que ainda é presente para muitas mulheres.
Encontrei os mesmos dois versos iniciais em outras quadras usadas nos brincos e nos despiques. Há inúmeros "versos-chave" deste género, espécie de verdades universais, que servem para facilitar a tarefa dos cantadores e cantadeiras. A qualquer momento podem servir para rimar com uma ideia qualquer. São versos herdados de antigas gerações, que continuam a completar muitas das cantigas inventadas na hora, tão características do nosso folclore.
Registei, por exemplo, a seguinte quadra:

O que é mais triste é a mulher
Qu'a um homem tudo lhe é dado
Eu cá gosto de cantar
Com quem é do meu agrado

Também eu. Tanto gosto de falar com quem "atrema um recado", como, se soubesse cantar, aposto que teria mais gosto em fazê-lo "com quem é do meu agrado."

Atremar

" - Não atremei!"
O remédio é voltar a dizer ou a explicar.
" - Atremaste?" Agora sim, pronto, ainda bem.
Coisas mal atremadas, mesmo coisas pequenas e parecendo sem importância, podem originar grandes confusões.
Gosto deste estranho verbo madeirense que é sinónimo de perceber e continua a ser ainda muito usado, fico contente sempre que o ouço. Atremar. Gosto da palavra em si e gosto, sobretudo, de atremar.
Poucas coisas existem mais fascinantes do que as palavras. Dizem tudo. E nada dizem, também. Dizem significados escondidos, dizem o que não está lá, muitas vezes. Dizem o que queremos ouvir, e não o que dizem realmente, tantas vezes, quantas!
Às vezes as palavras que ouvimos dizem o que sentimos e não o que sente quem as diz.
Tanto mistério, e tanta possibilidade de interpretação. Tantos sentidos, tantos sentires, tantos dizeres e ouvires. E as palavras bailando, bailando, bailando.
De forma que.
De forma que atremar.
É essencial.
Eu gosto. Gostava.

segunda-feira, setembro 03, 2007

Em tempo de vindimas...

Não te encostes à parreira
C'a parreira larga pó
Encosta-te à minha cama
Sou solteiro e durmo só

Ah venha vinho, venha vinho
Venha mais meio galão
Quem quiser beber vinho
Ponha a boca no garrafão

Ah venha vinho, venha vinho
Venha mais meia canada
Quem quiser beber vinho
Ponha a boca na levada

Ah Maria, Ah Maria
Não é coisa que se faça
Tu queres é beber o vinho
Daqui da minha cabaça

Minha mãe não quer que eu beba
Nem vinho nem aguardente
Nada no mundo m'alegra
Só contigo estou contente

Se tu quiseres qu'eu cante
Dá-me um copo de vinho
Que o vinho é coisa santa
Faz o cantar miudinho

S'os senhores querem qu'eu cante
Dêem-me vinho ou dinheiro
Qu'esta minha gargantinha
Não é fole de ferreiro

Quadras recolhidas no Sítio da Ribeira dos Pretetes, Caniço.

domingo, setembro 02, 2007

Ponta Delgada

Porque este é o fim-de-semana do arraial do Senhor Bom Jesus, na Ponta Delgada, recordo esta quadra, uma das mais conhecidas dos tradicionais brincos madeirenses.

Este ano fui ao Monte
P'ró ano à Ponta Delgada
Só pelo gosto qu'eu tenho
de passar na Encumeada

É verdade. A quadra ficou desactualizada nos últimos tempos. Já é possível ir à Ponta Delgada pelo caminho mais curto e sem passar na Encumeada. Basta usar o túnel entre a Serra de Água e São Vicente.
Mas na segunda-feira, dia do Arraial do Romeiro no Chão dos Louros, muitos passarão na Encumeada, alguns apenas no regresso da Festa, outros também na ida porque há quem tenha o hábito de ir apenas ao Chão dos Louros, ao "enterro do osso" da Festa da Ponta Delgada.
Aposto que esta quadra voltará a surgir num qualquer momento de menos inspiração, na voz do elemento de um qualquer brinco vindo de longe. Algures, no meio do verde dos loureiros e do colorido das gentes e das barracas, com o ar inundado pelo cheiro das espetadas e do bolo do caco acabado de cozer, alguém se lembrará do gosto de passar na Encumeada. Alguém cantará esta quadra, ao som do brinco. Espero.

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