quinta-feira, abril 28, 2005

Direito por linhas tortas

É um dito mais velho do que o Norte, não há dúvida nenhuma. Deus escreve direito por linhas tortas. Recordo a voz da minha tia Salomé a repetir esta sentença, sempre que me via chorar e sofrer pelas coisas tristes que, de vez em quando, a vida me trazia, tal como traz a toda a gente. Ela dizia a frase com as melhores intenções do mundo, mas nos momentos de sofrimento tudo nos parece injusto, até esses ditados, cuja origem é impossível localizar no tempo. Ela dizia: "Deus escreve direito por linhas tortas. Não chores." E a minha resposta era chorar ainda mais, chorar mais e de mais fundo e ficar mais triste do que todas as tristezas juntas. No início não entendia. Nos meus primeiros sofrimentos, quando ela dizia aquela frase, eu ficava mais triste e juro que não entendia. Como é que podia ser isso? Que ginástica estranha era essa, que as linhas eram tortas e as letras saíam todas direitas? Era muito mais fácil se as linhas fossem todas direitas e as palavras também. Pensava que era escusado haver linhas tortas, caminhos sinuosos, que obrigassem Deus a exercer essa arte de escrever direito por linhas tortas, de acertar acontecimentos em vidas complicadas. Se Deus era capaz de fazer isso, porque é que não deixava tudo bem arranjado já do princípio, até teria a vida facilitada, então não era?
A minha tia dizia que às vezes não se entendia, mas era mesmo assim. Lá por detrás havia uma qualquer oculta razão e que nenhum sofrimento era em vão. Eu mal a ouvia e voltava a chorar e a pensar que todas as dores do mundo juntas era de certeza mais pequenas do que aquela dor precisa, a minha dor. Só muitas dores depois, comecei a entender. A minha tia Salomé tinha toda a razão. Deus escreve direito por linhas tortas. Fui entendendo aos poucos, à custa das múltiplas dores que a vida continuou a trazer-me, tendo sido uma delas a perda da minha tia Salomé. Dias antes de partir, ela fez um esforço para ir à minha casa no dia dos meus anos. Via-a subir a custo, muito custo, e fui alcançá-la a meio do caminho. Ela passou-me para as mãos uma caixinha com um único brinco de ouro. Disse: "Toma lá, o meu brinco de ouro, é só um porque sabes que perdi o outro há muitos anos. Mas quero que fiques com ele como lembrança minha." Eu aceitei o brinco e perguntei se ela estava parva para dizer uma coisa daquelas. Não estava. Dias depois veio o ataque cardíaco que a levou para longe de nós. Nessa altura eu já tinha começado a entender a velha sentença, mas acho que não cheguei a dizer-lhe e tenho pena. Deus escreve direito por linhas tortas. Continuo a minha aprendizagem. A cada dia que passa, entendo um bocadinho melhor e um dia talvez a entenda plenamente. Não julgo ter entendido ainda tudo.
Tia Salomé. Obrigada pelo teu brinco de ouro. Fizeste bem em salvá-lo. Quem me dera que me tivesses dado também os que eram da minha avó e madrinha. Tenho a certeza absoluta que era eu quem ela gostaria de ver agora usar aqueles brincos, e não a pessoa que acabou ficando com eles, apenas porque nem ela nem tu estavam cá para decidirem. Obrigada pela frase que repetiste de todas as vezes que me viste chorar e sofrer com as injustiças do mundo. Tinhas razão. Deus escreve direito por linhas tortas.

quarta-feira, abril 20, 2005

Os Milagres da Pisca

Deve ter sido uma mulher muito engraçada e eu tenho pena de não a ter conhecido. A Pisca ficou na história por causa dos milagres que garantia a pés juntos terem-lhe acontecido. Devem ter sido muitos mas eu lembro-me apenas de um, de todos os que ouvi contar durante a infância e adolescência. Continuamos a usar regularmente a expressão "milagre da Pisca", mas já sem repetir as histórias dos supostos milagres que a fizeram ficar na história.
Pois bem, lembro-me do seguinte milagre: a Pisca precisava de levantar-se muito cedo para ir a pé até Santo António da Serra, em cumprimento de uma promessa por causa da filha doente, coitadinha. E como havia de fazer para levantar-se ainda de madrugada, se o único relógio da casa estava avariado há anos e por isso guardado no fundo de uma caixa? Com este problema se deitou a Pisca, mas à hora exacta a que deveria acordar, contava ela, o relógio desatou a tocar dentro da caixa. Dlang, dlang, dlang.
De todas as vezes que ouvi contar este "milagre da Pisca", a história foi rematada com este "dlang" imitando o som do relógio, que ninguém acreditou ter emitido algum som. A Pisca relatava com precisão os milagres que lhe iam acontecendo na vida e o povo entretinha-se a gozar das inúmeras graças divinas concedidas à pobre mulher. Ninguém acreditava nas incríveis coincidências que lhe aconteciam, ou milagres como preferia ela chamar-lhes. Não sei se foi dessa vez, no Santo Antoninho da Serra, ou se terá sido numa romagem a outro santo qualquer que, estando ao pé do dito Santo, este levantou o braço e estendeu-o sobre a filha da Pisca, a tal que era doentinha.
Há pouco tempo, usei a expressão quase sem me aperceber: "Aconteceu um verdadeiro Milagre da Pisca". E a minha filha, curiosa: "Qual foi, mãe?" Simplesmente acabara de encontrar um pequeno leitor de CDs que muito procuráramos e já déramos por perdido, tendo eu até a acusado de o ter perdido na escola. Procuráramos em todos os sítios e nada. Tempos depois, quando já não tínhamos a mínima esperança e já tínhamos desistido de o procurar, encontrei-o. Foi ou não foi um autêntico milagre? Um "milagre da Pisca", mas ainda assim um milagre.
É neste sentido que usamos a expressão "Milagre da Pisca": para nos referirmos a algo inesperado, sem dúvida positivo, muito pouco provável mas na verdade acontecido.
Todos os dias me acontecem também pequenos milagres e se não os conto por aí aos sete ventos é porque gosto de tradições e de palavras que encerram memórias e histórias e quero preservar, custe o que custar, a recordação e os direitos adquiridos da Pisca. Escolhi falar dos milagres da Pisca no dia em que escrevo neste blog o texto número cem. Este pequeno blog, que hoje de certa forma se torna centenário, é um dos pequenos milagres da minha vida. Um autêntico "Milagre da Pisca".

segunda-feira, abril 18, 2005

Nã faimunga

"Nã faimunga". Sempre que vem à Madeira, nas suas viagens de saudade, um dos meus tios, emigrante no Brasil, repete vezes sem conta esta expressão. Dá-lhe gosto, estando nos lugares da meninice e da juventude, usar expressões que eram correntes nesse tempo. "Nã faimunga." Nos mais variados contextos, lá está ele com a expressão. Às vezes em amena conversa à volta da mesa da cozinha, outras vezes no meio de uma bisca renhida com o meu pai. "Nã faimunga", afirma, rindo-se de contentamento. Quer dizer que não é preciso, não é necessário mais nada, que ele apenas estando aqui, está feliz da vida. "Nã faimunga" significa "Não faz míngua." Tem lógica. Não é preciso. Não faz mal. Está tudo bem assim. Não se preocupem.
Hoje apetece-se repetir, a torto e a direito, a expressão de que o meu tio José Manuel tanto gosta. Estou algo triste, talvez decepcionada, melhor dizendo. Tem tanta razão o povo quando diz que o mais reles de conhecer é gente. Mas é também do mais interessante e grandioso que existe. Por isso, eu encolho os ombros, olho para as desilusões e digo, calmamente e um um ar divertido parecido com o do meu tio: "Nã faimunga". Entre uma situação e outra, tenho tanta sorte, que me sinto a ganhar.

quarta-feira, abril 13, 2005

O que há mais reles de conhecer

"O que há mais reles de conhecer é gente." Estávamos sentados à volta da mesa da cozinha que continua a ser o lugar mais agradável para se estar, a falar já não me lembro bem do quê, mas devíamos estar a falar de pessoas. A minha mãe afirmou, com a sabedoria habitual: "O que há mais reles de conhecer é gente." E depois acrescentou: "É um dito velho na terra."
Fiquei a olhar para ela, calada. Um dito tão velho e tão certo e eu espantei-me, como se desconhecesse totalmente esse facto evidente. "O que há mais reles de conhecer é gente." Fiquei triste porque há verdades que nos deixam assim. Quem me dera que fosse mais fácil conhecer as pessoas. Quem me dera que fosse suficiente ouvir-lhes a voz e as palavras, olhá-las nos olhos, sentir as emoções que nos transmitem e depois, serenos e contentes, ouvir a mensagem do nosso coração. E pronto. Bastavam todos esses sinais e ficávamos a conhecer uma pessoa tal como ela é na verdade e não apenas como parece ser. Quem me dera que fosse assim.
Mãe, tu tens razão em me fazeres recordar esse "dito velho na terra." Eu sei que é verdade. Mas vou permitir-me sonhar um bocadinho e vou acreditar que "não há regra sem excepção." Talvez ainda existam pessoas, basta que existam algumas, que se possam conhecer assim, da forma mais simples e universal, com a intuição e com o coração.

sábado, abril 09, 2005

Uma Peta Xiribeta

Esta memória surge aqui com atraso, com é próprio de algumas memórias. Mas esta está atrasada apenas porque no dia 1 de Abril, Dia das Petas, eu estava num local sem acesso à internet e a este cantinho que vou construindo com palavras e recordações.
Penso que esta será a única tradição de que não gosto, porque a mentira não faz parte da minha forma de ser. Acho até que quanto mais pequenas são as mentiras e os enganos, mais conseguem mexer-me com os nervos.
Na infância dizíamos: "É uma Peta Xiribeta, lá do fundo da gaveta". Repetíamos o refrão, vitoriosas, quando algum adulto fingia acreditar nas nossas petas inocentes, pensadas e repensadas, porque aquele dia também tinha de ser assinalado, tal como as outras datas do calendário. Lembro-me do quanto era difícil arranjar uma boa peta.
Quando muito, podíamos ir a casa dos meus avolitos ou dos meus tios e dizer-lhes que a minha mãe precisava de falar-lhes ou vice-versa. Uma peta tão sem imaginação! A criatividade é essencial à vida, mas orgulho-me desta nossa falta de imaginação quando uma data nos obrigava a arranjar petas.
Este ano, nem sequer me lembrava que era dia das petas e um amigo mandou-me uma mensagem a perguntar se já me tinham dado alguma. Reagi de uma forma exagerada, dizendo o quanto não gostava desta tradição. Devo tê-lo até assustado, afinal era uma simples pergunta sobre um dia que continua a ser comemorado.
Durante o resto do dia pensei no quanto seria bom se as petas só se dissessem num único dia do ano. Se no Dia das Petas as pessoas passassem o dia a mentir e não mentissem em mais nenhum dia do ano, o mundo ficaria a ganhar muito em matéria de verdade. Mas nesse dia, tinha de ser obrigatório repetir logo a seguir à peta, sem deixar passar mais do que um minuto, a fórmula apropriada: "É uma Peta Xiribeta lá do fundo da gaveta."
Foi assim pensando que me lembrei de dizer à minha menina que naquele dia, naquele único dia, que ficasse bem claro, ela podia dar uma peta, e depois não dava petas em mais nenhum dia do ano. Estávamos em Lisboa, junto aos Jerónimos. Passei-lhe o telemóvel e ela ligou à avó, dizendo: "Estou perdida. Não sei onde está a minha mãe." Ria com a cara toda e com os olhos, mas fez como lhe recomendei: não deixou passar nem dez segundos. Gritou logo a fórmula: "É uma Peta Xiribeta lá do fundo da gaveta."
Peço desculpa à pessoa que me lembrou ser o Dia das Petas. Faz sentido, sim senhor. Vamos todos guardar as petas para esse dia. Mas não se esqueçam da fórmula, para que as petas fiquem bem identificadas. "É uma Peta Xiribeta lá do fundo da gaveta."

Nunca me viste? Burro me saíste!

"Nunca me viste? Burro me saíste!" Era isto que nós dizíamos quando alguém se punha a olhar para nós de forma demorada, ou com ar espantado.
Era fácil resolver o assunto: "Nunca me viste? Burro me saíste!" E pronto. Estava resolvido. Como era bom haver uma fórmula mágica para cada situação possível do dia-a-dia.
Agora não há fórmulas simples e concretas para nada. "Nunca me viste? Burro me saíste." Nunca poderia responder isto a alguém que me olhasse fixamente, sem razão aparente.
Era uma rima gira, sem dúvida. Mas a frase equivalente da geração anterior, do tempo da minha mãe, era muito mais engraçada. "Nunca me viste? Não sou milho cozido com bacalhau assado!" Milho cozido com bacalhau assado era, em tempos difíceis, um rico manjar. A fórmula não rima, é verdade. Mas é mais engraçada e tem um contexto social implícito.
Da próxima vez que a minha menina me perguntar porque é que há poemas que não rimam, vou dar-lhe este exemplo. Talvez ela perceba a diferença.

domingo, abril 03, 2005

Jupsofila com cravos

O Espírito Santo passou em casa da minha mãe. Eu não cheguei a tempo de ouvir os foguetes anunciando a aproximação, de beijar a bandeira ou o pendão, de cumprimentar o festeiro e os acompanhantes e de apreciar o traje a rigor das saloias.
Sabia que tinha perdido tudo isso, mas quando entrei em casa levava a secreta esperança de ver jupsofila branca misturada com cravos vermelhos enfeitando as jarras. Tal como antigamente. No tempo em que havia o "quarto-de-fora", que era o local apropriado para receber o Espírito Santo, e em que havia um poio com sete ou oito qualidades de cravos à frente do jardim, e outro poio onde todos os anos se semeava jupsofila.
Em todas as casas terreiras, o "quarto-de-fora" era o quarto do canto do terreiro, o mais afastado da cozinha, só frequentado em ocasiões muito especiais, como o Natal, o Espírito Santo e alguma visita importante por trazer notícias de um dos muitos emigrantes da família. Nas casas de sobrado, o quarto-de-fora era o do andar de cima, que dava directamente para o balcãozinho.
Com a respiração suspensa, entrei na sala actual, no lado oposto ao antigo "quarto-de-fora", transformado pela necessidade em quarto de dormir. Havia sobre a mesa, numa bandeja de vidro, abafada com um pano bordado, bocados do bolo preto feito de propósito para a ocasião, e numa outra bandeja antiga, um jarro com vinho, abafado com outro bordado e rodeado de copos. Também ainda lá estava a bandejinha onde a minha mãe colocou a oferta em dinheiro, coberta com pétalas de rosa e flores de azálea.
A um canto, num antigo jarro de lava-mãos, a minha mãe tinha um bonito arranjo, numa mistura perfeita de todas as flores que encontrou, desde jarros, a um vistoso ramo de giesteira. Estava lindo! Mas nem sinal da jupsofila misturada com cravos da minha infância.
Sinto falta do cheiro da jupsofila e dos cravos, na casa da minha infância e nas casas dos meus tios e dos meus avolitos. As três casas continuam ligadas por terreiros e passadas mas apenas a dos meus pais continua habitada. Sinto falta das portas dos "quartos-de-fora" dos meus tios e dos meus avolitos também abertas à espera do Espírito Santo.
Hoje há menos quatro pessoas à espera do Espírito Santo e menos duas portas de "quarto-de-fora" abertas, cheirando muito a jupsofila com cravos, à mistura com a cera dada no soalho, do óleo de cedro dado nos móveis, de cortinas, colchas e toalhas lavadas e muito bem engomadas.
Continuamos a receber dois Espírito-Santos, ao menos isso. Primeiro o da Camacha, que foi o que perdi hoje, e mais para a frente "o nosso", o do Caniço. Por ficarem praticamente na fronteira entre as duas freguesias, embora pertencendo ao Sítio da Ribeira dos Pretetes, parte de cima, e logo apenas com a obrigação de receber o Espírito Santo da Paróquia das Eiras, Caniço, as portas abriram-se sempre para os Espírito-Santos dos dois lados.
O tempo passa mas a tradição mantém-se, indiferente às fronteiras marcadas nos mapas, preferindo seguir os caminhos traçados na memória. Mesmo que a cada ano menos portas se abram e a receita talvez seja bem pouca para tão grande desvio.

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