domingo, abril 03, 2005

Jupsofila com cravos

O Espírito Santo passou em casa da minha mãe. Eu não cheguei a tempo de ouvir os foguetes anunciando a aproximação, de beijar a bandeira ou o pendão, de cumprimentar o festeiro e os acompanhantes e de apreciar o traje a rigor das saloias.
Sabia que tinha perdido tudo isso, mas quando entrei em casa levava a secreta esperança de ver jupsofila branca misturada com cravos vermelhos enfeitando as jarras. Tal como antigamente. No tempo em que havia o "quarto-de-fora", que era o local apropriado para receber o Espírito Santo, e em que havia um poio com sete ou oito qualidades de cravos à frente do jardim, e outro poio onde todos os anos se semeava jupsofila.
Em todas as casas terreiras, o "quarto-de-fora" era o quarto do canto do terreiro, o mais afastado da cozinha, só frequentado em ocasiões muito especiais, como o Natal, o Espírito Santo e alguma visita importante por trazer notícias de um dos muitos emigrantes da família. Nas casas de sobrado, o quarto-de-fora era o do andar de cima, que dava directamente para o balcãozinho.
Com a respiração suspensa, entrei na sala actual, no lado oposto ao antigo "quarto-de-fora", transformado pela necessidade em quarto de dormir. Havia sobre a mesa, numa bandeja de vidro, abafada com um pano bordado, bocados do bolo preto feito de propósito para a ocasião, e numa outra bandeja antiga, um jarro com vinho, abafado com outro bordado e rodeado de copos. Também ainda lá estava a bandejinha onde a minha mãe colocou a oferta em dinheiro, coberta com pétalas de rosa e flores de azálea.
A um canto, num antigo jarro de lava-mãos, a minha mãe tinha um bonito arranjo, numa mistura perfeita de todas as flores que encontrou, desde jarros, a um vistoso ramo de giesteira. Estava lindo! Mas nem sinal da jupsofila misturada com cravos da minha infância.
Sinto falta do cheiro da jupsofila e dos cravos, na casa da minha infância e nas casas dos meus tios e dos meus avolitos. As três casas continuam ligadas por terreiros e passadas mas apenas a dos meus pais continua habitada. Sinto falta das portas dos "quartos-de-fora" dos meus tios e dos meus avolitos também abertas à espera do Espírito Santo.
Hoje há menos quatro pessoas à espera do Espírito Santo e menos duas portas de "quarto-de-fora" abertas, cheirando muito a jupsofila com cravos, à mistura com a cera dada no soalho, do óleo de cedro dado nos móveis, de cortinas, colchas e toalhas lavadas e muito bem engomadas.
Continuamos a receber dois Espírito-Santos, ao menos isso. Primeiro o da Camacha, que foi o que perdi hoje, e mais para a frente "o nosso", o do Caniço. Por ficarem praticamente na fronteira entre as duas freguesias, embora pertencendo ao Sítio da Ribeira dos Pretetes, parte de cima, e logo apenas com a obrigação de receber o Espírito Santo da Paróquia das Eiras, Caniço, as portas abriram-se sempre para os Espírito-Santos dos dois lados.
O tempo passa mas a tradição mantém-se, indiferente às fronteiras marcadas nos mapas, preferindo seguir os caminhos traçados na memória. Mesmo que a cada ano menos portas se abram e a receita talvez seja bem pouca para tão grande desvio.

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