sexta-feira, março 10, 2006

No resto vai degenerar...

"Ele já não é dos nossos, degenerou...." Os homens conversavam parados num passeio da cidade e o meu ouvido atento roubou-lhes esta frase porque há muito tempo não ouvia o verbo degenerar com esta utilização popular.
"Degenear" existe no dicionário e soa a palavra cara. Mas já a minha avó a utilizava amiúde, tanto se referindo a pessoas com a situações. Também a usava quando falava de uma qualquer flor que em vez da cor original tinha florido ligeiramente mais clara, ou em vez de dobrada tinha nascido singela.
Quando o verbo se aplicava a pessoas tinha a ver igualmente com a perda de qualidades, e era nesse sentido que os dois homens a quem roubei a expressão sem eles se terem apercebido, estavam a utilizá-lo.
Mas acho ainda mais piada ao verbo degenerar usado noutro sentido, para fazer referência a situações que evoluem negativamente. Alegro-me com a visão do rosto da minha avó, do sorriso permanente, ligeiramente acentuado na pausa que fazia para pensar na cantiga seguinte. E a cantiga seguinte era esta:

"Rapariga tu 'tás bem
Não te penses em casar
No princípio tudo é bom
No resto vai degenerar."

Para além da palavra degenerar, esta cantiga tem mais duas particularidades linguísticas que me deliciam. Uma delas é "não te penses", em vez de simplesmente "não penses". Ainda hoje ouço dizer "O que é que te pensas?" ou "Não te penses que ele vai vai fazer o que queres". É interessante este reflexividade que terá a intenção de acentuar o sentido e torna o verso da cantiga no necessário septissílabo.
A outra expressão a que me referia é "no resto". Actualmete diríamos "no final", ou "depois", talvez "mais tarde". "No resto" era como dizia a minha avó-madrinha e talvez seja isso que justifique, uma vez mais, o carinho enorme com que estou aqui a olhar para esse início de verso. De repente, rio-me sozinha porque me ocorre uma ironia: ouvi muitas vezes a aminha avolita cantar esta quadra, mas nunca conheci ninguém que mais acerrimamente defendesse o casamento. Coitada! Morreu com o desgosto de não ter assistido ao meu casamento, depois de ter passado a vida a repetir: "O maior ponto de uma mulher é se casar."

Comments:
O que aqui me fascina não é tanto o "degenerou" mas o degenerou por referência a "dos nossos". Seria interessante dilucidar o sentido de "nossos" porquanto naquele contexto "dos homens da terra" se dissocia seguramente de inúmeros sentidos que poderíamos dar à expressão senão imagine-se a mesam por referência a "macho latino" e é só um exemplo apesar de muito actual que tenho por aí umas amigas que bem se queixam desta tão recente e assumida degenerescência. E nem pontos e nem vírgulas e não, não estou a emitir qualquer juízo de valor, era só o que mais faltava a uma mulher moderna. E a propósito de mulher moderna ando louca para voltar ao "comerinho" e morta de medo também. Continua, és uma fonte de renovação para mim que nem sequer aprecio a Primavera por aí além.
 
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