quinta-feira, junho 16, 2005

Marmelada de ameixa

Sempre dissémos assim. Marmelada de ameixa e marmelda de pêra, que engraçado! A outra marmelada, a marmelada que respeita a gramática e é feita a partir do marmelo, era apenas marmelada. Claro que era boa, especialmente dentro do paposseco que a professora primária preparava para nos dar na hora do recreio. Era deliciosa a marmelada gramaticalmente correcta mas as outras, a marmelada de ameixa e a marmelda de pêra, tinham o sabor daquilo que tem algo de nós.
A minha mãe fazia marmelada de ameixa com dois tipos de ameixas: ameixa amarela, também chamada ameixa francesa, e ameixa encarnada, que dizíamos ameixa de sangue ou ameixa "braba".
Havia duas ameixeiras amarelas no terreiro dos meus avolitos, cujos frutos eu só achava bons enquanto estavam verdes. Lembro-me de a avolita ficar irritada quando essas ameixas decidiam amadurecer ao mesmo tempo, ficando muito amarelas e caindo ao chão, porque ninguém gostava de as comer assim tão maduras.
As ameixas "brabas" eram cor de sangue, vermelho muito vivo. Havia uma dessas ameixeiras num bardo um pouco à esquerda e abaixo da casa dos avolitos. E havia também uma à frente da casa da Prima Ali, acima do Cabôco.
A marmelada exclusivamente de ameixas amarelas ficava muito mole, por isso a minha mãe juntava sempre algumas das encarnadas para enxugar. De qualquer maneira, a nossa marmelada preferida, a que desaparecia num abrir e fechar de olhos, era a de ameixas "brabas", porque tinha um azedinho, não era simplesmente doce como a de ameixas amarelas, nem como a de pêra, que se fazia bem mais adiante, no Inverno.
Estou a ver-nos à volta de uma banheira, preparando as ameixas de sangue para a marmelada. Os frutos tinham de estar bem maduros, de forma que quando lhes retirávamos a casca e os caroços, as ameixas tranformavam-se numa pasta vermelha e mole dentro da banheira.
A mesma medida de ameixas, para a mesma medida de açúcar e toca a cozer durante uma hora. Aquele tempo parecia que nunca mais passava e o pior ainda era depois de ter passado, porque a marmelada não se pode comer quente, mesmo que apeteça, porque o mais certo é "intejar" a marmelada, talvez para o resto da vida.
Andávamos à roda da minha mãe, sempre a perguntar se a marmelada já estava cozida, em agonia, e ficávamos contentes quando a víamos pegar num pires e enchê-lo com água fria da torneira "da fonte". Aquele ritual era solene, merecia a máxima concentração. Com uma colher a minha mãe deitava um pouco da marmelada na água e esperava o resultado. Se a marmelada se desfizesse na água, ainda não estava bem cozida. Mas se acaso o pingo de marmelada ficasse enxuto no fundo do pires, no meio da água, então estava na hora de tirar do lume.
Às vezes a minha mãe realizava este teste mais do que uma vez. O que não podia era arriscar a deixar cozer demais, se isso acontecesse a marmelada ficava como "visgo". Era incrível o que comíamos de pão quando havia marmelada! E como ela acabava num instante.
A marmelada aguenta bastante. Mas a de ameixas "brabas" nunca aguentava como a de pêra, que a minha fazia com as pêras lobas da pereira de trás do pôco dos avolitos. São pêras grandes e pesadas, que às vezes o meu avô vendia aos estreiteiros, ainda nas árvores, quando estavam em flor.
Era mais agradável preparar as pêras para a marmelada do que as ameixas: era descascá-las, retirar as partes pisadas, porque a marmelada era feita com as muitas pêras que o vento atirava ao chão, e depois cortá-las aos bocados, retirando o caroço. Mas o resultado era desanimador: a marmelada de pêra era demasiado doce e com uma espécie de areia pelo meio. Ficávamos com saudades e à espera da maravilhosa marmelada de ameixa "braba", escura e com o seu azedinho. Até o doce, a nossa "marmelada", é muito melhor se não for apenas doce, se tiver o tal azedinho. Tal como a vida. A vida é uma enorme taça de marmelada de ameixa "braba".

Comments:
Este post fez-me recordar a minha 4ª classe. Foi o primeiro ano, na escola, em que tivemos direito a lanche. Lá vinha, de manha, a professora com uma cesta carregada de papo-secos "fresquinhos". O ritual era sempre o mesmo: a meio da manha havia um ditado, uma composição, uma conta, enfim, um trabalho qualquer para fazer. O primeiro a terminar tinha como "prémio" ir preparar o lanche para os colegas. E claro, havia sempre colegas a querer dose reforçada de marmelada no seu papo-seco
 
Postar um comentário

<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?

Web Pages referring to this page
Link to this page and get a link back!