terça-feira, junho 14, 2005

Coisas do diabo

"Mãe, o diabo existe?" Fui surpreendida pela pergunta assim que entrei na sala de aula. A minha menina perguntou e ficou à espera da resposta certa, verdadeira, inabalável. E quando eu disse que não, que o diabo não existe, ela virou-se para a colega do lado, satisfeita: "Já viste? Se a minha mãe diz que o diabo não existe, é porque não existe." Mais tarde, fiquei a saber que aquele assunto, a existência ou não do diabo, e uma série de crendices à volta dessa figura, tinham deixado apavorados os miudos da escola durante todo o dia.
Uma das coisas que os miudos colocaram a circular na escola foi: "Se andarmos para trás, ensinamos o caminho ao diabo." Tal e qual dizíamos quando eu era criança. Lembro-me de ouvir dizer que se rezássemos o pai-nosso ao contrário em frente de um espelho, o diabo aparecia no espelho. Nunca tentei confirmar nem uma nem outra versão, com medo do resultado. A versão que contaram na escola da minha menina é diferente: "Mãe, a Diana disse que se dissermos três palavrões à frente do espelho, o diabo nos responde."
Foram várias as aventuras ao longo desse dia de escola, e em todas as crianças ficaram apavoradas com uma possível intervenção do diabo. Desde o barulho do vento entrando pela frecha de uma porta à água acastanhada da ferrugem, que saiu de uma torneira pouco utilizada. Ela voltou a perguntar: "Mas não existe mesmo? Tu tens a certeza?" Dei por mim a repetir que não, que o diabo não existe. Mas acrescentei que existem pessoas tão más que parecem o diabo. Ou o "demôine", para usar um sinónimo madeirense.
Lembrei-me de uma outra superstição sobre o diabo e de um episódio da minha infância de que nunca me esqueci. Não lhe contei para não a amedrontar, pois tenho bem presente o medo terrível que senti nesse dia, em que eu e as minhas irmãs chamámos palavrões à Margarida porque ela não nos quis levar com ela. Estávamos em cima do terraço da cozinha, e ela em baixo, no nosso terreiro, quando a chamámos "macaca estuporada" como retaliação. Ela disse que o diabo aparecia a quem dizia palavrões.
Nós não ligámos àquilo e fomos sossegadas para baixo, para dentro de casa. Estávamos no quarto dos meus pais a brincar, enquanto a minha mãe fazia a cama, quando ouvimos um barulho no terreiro. Espreitámos através da janela e vimos uma coisa preta a mexer-se. Ficámos paralizadas de medo, embora tenhamos reconhecido o xaile negro e muito velho da minha avó, que cobria a Margarida, enquanto ela levantava os braços e fazia "Uhhhh", com os dentes brancos luzindo por um buraco do xaile. Eu sabia que só podia ser a Margarida mas fiquei sempre com uma pequena dúvida lá dentro: e se não fosse?
Lembrei-me desta história depois de sossegar mais uma vez a minha menina em relação à existência do diabo. Sorri para mim mesma, olhando a cena com um certo carinho. A Margariada travestiu-se de diabo com o xaile da minha avó: Quantas vezes melhor um diabo assim a fingir do que os muitos diabos que por aí andam à solta travestidos de gente.

Comments:
Olá querida amiga, permita-me que a trate assim. Quase voei pelo seu blog, que forma tão simples de expor assuntos do quotidiano.Fluente na palavra e lesta nas ideias, faz-me inveja. Parabéns pelo sitio. Estou certo que tendo tudo para ser feliz não precisará de procurar, surgirá naturalmente. Quando puder, voltarei, se a porta estiver aberta.Obrigado e até sempre.
 
"Conheces alguma terra onde se celebre uma missa por alma do diabo?", perguntou-me o meu pai neste domingo, enquanto almoçavamos. Surpreendeu-me a "brincadeira", mas logo percebi a pergunta. É que na minha terra havia até há poucos dias um homem a quem chamavam diabo... Agora reza-se pela sua alma.Agora ficaram os filhos e os netos do diabo... "os diabitos", como lhes chamam.
 
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