terça-feira, janeiro 03, 2012

história da bicha fera

Os pequenos eram espertos e em vez de meterem o dedo na fechadura da caixa, metiam um rabo de lagartixa e conseguiam enganar a bruxa. Esta era a nossa parte preferida de uma das histórias que mais vezes ouvimos durante a infância, a história da Bicha Fera.
A cena do rabinho de lagartixa representava uma espécie de pausa ao meio da história, era a parte em que podíamos descontrair, a parte em que sorríamos e respirávamos fundo, pois todo o resto era assustador.
Sempre que a minha mãe contava a história da Bicha Fera, eu tinha esperança que ela dissesse que os dois pequenos se tinham perdido acidentalmente na floresta. Mas a minha mãe contava sempre a história tal como ela era, era assim mesmo nesse tempo.
Os dois pequenos protagonistas desta história comportavam-se mal. Por isso, a madrasta pediu ao pai deles que os abandonasse na floresta. O pai levou-os para a floresta com o pretexto de irem à lenha e quando lá chegaram sugeriu que eles fossem para um lado e ele para o outro, reunindo-se depois no ponto e partida.
Já carregados com dois molhinhos de lenha, os dois pequenos voltaram ao local combinado mas não viram o pai de ponta nenhuma. Esperaram mas ele não chegou. Então, começaram a chamar: "Traz, traz, quanta lenha meu pai faz! Truz, truz, quanta lenha meu pai fez!" Nesta parte, a minha mãe chamava várias vezes, imitando o eco da floresta.
A certa altura, eles lembraram-se de que tinham comido tremoços pelo caminho e decidiram seguir as cascas. Mas a certa altura já não havia mais cascas para seguir e eles continuavam perdidos e estava já a anoitecer. Foram andando, andando, andando, até que avistaram uma luzinha no escuro.
Andaram até chegarem junto a uma pequena casa, onde uma velha estava a fazer malassadas. A velha colocava as malassadas no parapeito da janela e os pequenos, esfomeados, iam-nas tirando sem que ela se apercebesse. A velha tinha um gato cego de um olho e pensando que o roubo era obra sua, ia dizendo: " Sape gato de olho torto, cego-te um e tiro-te o outro. Sape gato de olho torto, cego-te um e tiro-te o outro."
Até que decidiu ir à rua e encontrou os dois pequenos, que tratou muito bem e convidou para entrarem. Meteu-os na caixa do pão, uma caixa igual à que havia na cozinha dos meus avós e em todas as outras cozinhas de antigamente.
A velha ia alimentando as duas crianças pelo buraco da fechadura da caixa e de vez em quando queria saber se eles já estavam gordinhos. Mas os pequenos eram espertos e quando ela lhes pedia para meterem o dedo pela buraco da fechadura, eles metiam um rabinho de lagartixa que tinham na algibeira.
Era aqui que nós ríamos. Parávamos. Respirávamos. Que engraçado! Que bom eles terem levado a lagartixa na algibeira! Bem feito para a velha.
A velha começou a desconfiar por eles estarem sempre magrinhos, apesar de toda a comida que lhes dava e um dia decidiu abrir a caixa. Qual não foi o espanto quando os viu tão gordinhos! Então, disse aos pequenos para irem à lenha e deu-lhes um pão, uma garrafa de vinho e peixe, dizendo: "Vocês comem o pão e trazem o pão, comem o peixe e trazem o peixe, bebem o vinho e trazem o vinho."
Pelo caminho, os dois irmãos começaram a chorar por não saberem o que fazer em relação às coisas que tinham de comer e trazer ao mesmo tempo. Apareceu-lhes então Santo Antoninho, que era o padrinho de um deles, e recomendou-lhes que comessem o miolo do pão e levassem de volta a côdea, que comessem o peixe e levassem de volta as espinhas e que bebessem o vinho e levassem de volta a garrafa cheia de água. Disse-lhes ainda para não obedecerem à velha quando ela lhes dissesse para irem para a frente do forno bailar, que antes lhe pedissem para os ensinar. Os pequenos ficaram mais sossegados e pararam de chorar.
A velha ficou satisfeita com a solução encontrada pelos pequenos para as coisas que lhes tinha dado para levar e trazer e começou a aquecer o forno. Quando já estava quente, disse-lhe que fossem para a frente da porta do forno bailarem para se aquecerem, coitados, tinham vindo da serra e estavam gelados. Mas eles disseram-lhe que fosse ela primeiro para os ensinar como fazer, e assim que a mulher começou a bailar ao pé da porta do forno, pegaram na pá e empurraram-na para dentro do forno.
A mulher começou a arder e a gritar e saiu-lhe um cachorro pela boca que fugiu pela porta fora porque, afinal, ela era uma bruxa. Acabava assim a história da bicha fera, uma das histórias que mais vezes ouvi durante a infância e que nunca me tinha lembrado de contar à minha filha. Contei-lha um dia destes, fazendo pausas aqui e ali para me tentar lembrar - algumas partes tive de confirmar depois com a minha mãe.
Divertimo-nos a comparar a história de Hansel e Gretel dos livros infantis com esta versão madeirense e fizemos uma pausa para sorrir na parte em que o rabo de lagartixa metido pelo buraco da fechadura da caixa serve para aldrabar a velha. Estive tentada a começar dizendo que os dois pequenos se tinham perdido acidentalmente na floresta, mas acabei por fazer como a minha mãe fazia e contar a história tal como ela é.

Comments:
As versoes sao diversas! Eu me lembro de uma vizinha que nos contava a estoria de "Joao e Maria" que terminava com a chegada de um negro bem forte que jogava a velha no forno quente. E no fim ela dizia que a estoria tinha vindo de longe... "da Alemanha"... E entao eu pensava: "Como o heroi negro foi capaz de aparecer no meio da Alemanha onde todos sao brancos como cera???" he he he..... Ricardo C. M. Grillo chicago2paris@gmail.com
 
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