segunda-feira, fevereiro 28, 2005
Balamento
"Balamento!" Estava meio adormecida ainda e pensei que talvez estivesse a sonhar. Mas não. Este balamento foi dado hoje, manhã bem cedo, pela minha menina. Do outro lado do telefone estava a minha mãe. Falta ainda um mês para o dia de Páscoa e elas já combinaram o balamento: quem perder compra à outra um ovo kinder dos grandes e uma garrafa de brisa maracujá!
Todos os anos, elas jogam as duas ao balamento, adaptando o jogo aos tempos modernos. "Vale por telefone, não vale?" "Vale, sim senhora." Afinal, são os dois jogadores que estabelecem as regras, ninguém tem nada a ver com isso.
O ano passado, assim que acordava, pegava no telefone para ligar à avó. A determinada altura, a minha mãe começou a atender o telefone, fosse a que horas fosse, sem importar quem estava do outro lado, com a palavra de código: "balamento". Passou algumas vergonhas, mas mais importante do que isso era o facto de estar a jogar ao balamento com a neta.
A miúda percebeu que tinha de arquitectar um plano. Um belo dia, manhã cedo, disse-me: "Mãe, eu vou ligar mas não digo nada. Se a avó der o balamento, eu passo para ti e tu finges que não sabes de nada, falas de outro assunto. Se ela não se lembrar e atender normalmente eu dou-lhe o balamento." Está bem. Ajudei uma ou duas vezes e já não me lembro quem ganhou.
Na verdade, acho que ganhámos todas. Eu ganhei a alegria de as ver assim, empenhadas no jogo e contentes. Ganhei também o regresso nostálgico a todos os balamentos da minha infância.
E voltei a ouvir histórias de balamentos antigos, como a de uma tia minha que jogou com uma vizinha, filha de Ti Carolina. Logo de manhã, conta-se, a minha tia empoleirou-se num pinheiro, em frente da casa dela. O pinheiro tinha vista para o quarto das raparigas, no primeiro andar da casa de pedra, e a minha tia assistiu à troca de roupa entre a sua adversária e outra irmã, para a despistar. Assistiu a tudo do seu posto, em cima do pinheiro. Quando a outra saiu à rua, para varrer o terreiro, disfarçada com a roupa da irmã, a minha tia deu-lhe o balamento e ganhou, porque esse era um dia decisivo, do desempate final.
As pessoas eram capazes das coisas mais incríveis para ganhar um balamento. Mudavam de caminho, metiam por pinheiros e matos, faziam esperas nos locais de passagem, empoleiravam-se em árvores e pediam roupas emprestadas. E tudo por um pacote de amêndoas, um saco de figos passados e talvez uns tostões de amendoins.
Temos pela frente um mês inteiro deste jogo antigo, espécie de gato e rato, de jogo de se esconder, em que basta, cada dia, conseguir ser o primeiro a dizer ao outro a palavra mágica.
Quem quer jogar comigo ao balamento?
Todos os anos, elas jogam as duas ao balamento, adaptando o jogo aos tempos modernos. "Vale por telefone, não vale?" "Vale, sim senhora." Afinal, são os dois jogadores que estabelecem as regras, ninguém tem nada a ver com isso.
O ano passado, assim que acordava, pegava no telefone para ligar à avó. A determinada altura, a minha mãe começou a atender o telefone, fosse a que horas fosse, sem importar quem estava do outro lado, com a palavra de código: "balamento". Passou algumas vergonhas, mas mais importante do que isso era o facto de estar a jogar ao balamento com a neta.
A miúda percebeu que tinha de arquitectar um plano. Um belo dia, manhã cedo, disse-me: "Mãe, eu vou ligar mas não digo nada. Se a avó der o balamento, eu passo para ti e tu finges que não sabes de nada, falas de outro assunto. Se ela não se lembrar e atender normalmente eu dou-lhe o balamento." Está bem. Ajudei uma ou duas vezes e já não me lembro quem ganhou.
Na verdade, acho que ganhámos todas. Eu ganhei a alegria de as ver assim, empenhadas no jogo e contentes. Ganhei também o regresso nostálgico a todos os balamentos da minha infância.
E voltei a ouvir histórias de balamentos antigos, como a de uma tia minha que jogou com uma vizinha, filha de Ti Carolina. Logo de manhã, conta-se, a minha tia empoleirou-se num pinheiro, em frente da casa dela. O pinheiro tinha vista para o quarto das raparigas, no primeiro andar da casa de pedra, e a minha tia assistiu à troca de roupa entre a sua adversária e outra irmã, para a despistar. Assistiu a tudo do seu posto, em cima do pinheiro. Quando a outra saiu à rua, para varrer o terreiro, disfarçada com a roupa da irmã, a minha tia deu-lhe o balamento e ganhou, porque esse era um dia decisivo, do desempate final.
As pessoas eram capazes das coisas mais incríveis para ganhar um balamento. Mudavam de caminho, metiam por pinheiros e matos, faziam esperas nos locais de passagem, empoleiravam-se em árvores e pediam roupas emprestadas. E tudo por um pacote de amêndoas, um saco de figos passados e talvez uns tostões de amendoins.
Temos pela frente um mês inteiro deste jogo antigo, espécie de gato e rato, de jogo de se esconder, em que basta, cada dia, conseguir ser o primeiro a dizer ao outro a palavra mágica.
Quem quer jogar comigo ao balamento?
Vender o ouro ao bandido
"Mas eu não vendi o ouro ao bandido". Nunca tinha ouvido esta expressão ou talvez tivesse ouvido sem ouvir realmente, por ter sido em alguma altura em que não estava tão interessada nestas anotações.
A minha amiga estava a contar o episódio em que um rapaz, no qual ela estava algo interessada, lhe disse, ele próprio, algo a propósito da namorada. A minha amiga não fazia ideia que ele tinha namorada e, naturalmente, ficou decepcionada.
"Mas eu não vendi o ouro ao bandido. Perguntei se era a loura ou a morena, e quando ele disse que era a loura, eu disse que ele tinha bom gosto." Então é isso!
"Não vender o ouro ao bandido" é não dar parte de fraca, não se mostrar interessada; naquela situação concreta não dar a entender a decepção causada por aquela informação, ainda mais dita pelo próprio.
Gostei de aprender esta nova, afinal velha, expressão. Embora eu não tenha muito jeito para a pôr em prática. Ainda bem que não tenho ouro quase nenhum. Assim não corro o risco de o "vender ao bandido".
A minha amiga estava a contar o episódio em que um rapaz, no qual ela estava algo interessada, lhe disse, ele próprio, algo a propósito da namorada. A minha amiga não fazia ideia que ele tinha namorada e, naturalmente, ficou decepcionada.
"Mas eu não vendi o ouro ao bandido. Perguntei se era a loura ou a morena, e quando ele disse que era a loura, eu disse que ele tinha bom gosto." Então é isso!
"Não vender o ouro ao bandido" é não dar parte de fraca, não se mostrar interessada; naquela situação concreta não dar a entender a decepção causada por aquela informação, ainda mais dita pelo próprio.
Gostei de aprender esta nova, afinal velha, expressão. Embora eu não tenha muito jeito para a pôr em prática. Ainda bem que não tenho ouro quase nenhum. Assim não corro o risco de o "vender ao bandido".
domingo, fevereiro 27, 2005
Comer muito milhinho
"Ainda vais ter de comer muito milhinho!" Traduzindo: faz-te falta experiência, ainda tens muito que aprender.
Esta expressão estava esquecida, algures na minha memória, e hoje ressuscitou. Acordou de repente e quando dei por mim, estava a sair-me da boca.
Não sei quantas vezes a terei ouvido, sendo-me directamente dirigida, durante toda a infância e juventude e até na idade adulta, porque os mais velhos têm muitas vezes razão naquilo que dizem, embora no momento raramente nos pareça que a tenham.
Hoje parece um pouco descabida a expressão, porque o milho já não é o prato mais consumido no dia-a-dia. Mas há uns cinquenta anos, nas famílias mais pobres, o milho era a base da alimentação.
A minha mãe conta que comiam milho praticamente todos os dias. Quando tinha peixe ou bacalhau para acompanhar era uma festa. Se não tinha, comiam o milho apenas com cebola, com ameixas ou até com nêsperas, se fosse o tempo delas.
Eu sempre gostei de milho. Mas há anos que não como aquela que era a minha parte preferida: o casco que se criava no fundo da panela.
A minha avó acabava de retirar o milho da panela grande, muito preta devido à ferrugem do lar, e, com a mesa cheia de pratos ainda a fumegar, gritava por mim de cima do terraço, para ir "rapar a panela". Eu retirava o casco do fundo com a ajuda de uma colher e depois também comia o milho que ficava colado nas paredes da panela e ficava deliciada com aquele almoço. Tenho saudades. As panelas de hoje se calhar já nem sequer criam casco, com todas as suas características anti-aderência.
Voltando à expressão que me fez reviver estas memórias: Eu também ainda "tenho de comer muito milhinho." É claro que sim e ainda bem que temos sempre coisas para aprender.
Esta expressão estava esquecida, algures na minha memória, e hoje ressuscitou. Acordou de repente e quando dei por mim, estava a sair-me da boca.
Não sei quantas vezes a terei ouvido, sendo-me directamente dirigida, durante toda a infância e juventude e até na idade adulta, porque os mais velhos têm muitas vezes razão naquilo que dizem, embora no momento raramente nos pareça que a tenham.
Hoje parece um pouco descabida a expressão, porque o milho já não é o prato mais consumido no dia-a-dia. Mas há uns cinquenta anos, nas famílias mais pobres, o milho era a base da alimentação.
A minha mãe conta que comiam milho praticamente todos os dias. Quando tinha peixe ou bacalhau para acompanhar era uma festa. Se não tinha, comiam o milho apenas com cebola, com ameixas ou até com nêsperas, se fosse o tempo delas.
Eu sempre gostei de milho. Mas há anos que não como aquela que era a minha parte preferida: o casco que se criava no fundo da panela.
A minha avó acabava de retirar o milho da panela grande, muito preta devido à ferrugem do lar, e, com a mesa cheia de pratos ainda a fumegar, gritava por mim de cima do terraço, para ir "rapar a panela". Eu retirava o casco do fundo com a ajuda de uma colher e depois também comia o milho que ficava colado nas paredes da panela e ficava deliciada com aquele almoço. Tenho saudades. As panelas de hoje se calhar já nem sequer criam casco, com todas as suas características anti-aderência.
Voltando à expressão que me fez reviver estas memórias: Eu também ainda "tenho de comer muito milhinho." É claro que sim e ainda bem que temos sempre coisas para aprender.
sábado, fevereiro 26, 2005
Nevoeiro, nevoeiro, vai p'ra trás do teu palheiro
"Nevoeiro, Nevoeiro, vai p'ra trás do teu palheiro, que hoje faço-te um bolo e amanhã faço um brindeiro." A fórmula mágica para afastar o nevoeiro não se dizia de qualquer maneira. Não chegava a ser cantada mas também não era apenas dita. "Nevoeiro, Nevoeiro, vai p'ra trás do teu palheiro, que hoje faço-te um bolo e amanhã faço um brindeiro."
Era mais um pedido do que uma ordem, isso de certeza. Mas não bastava dizer. Era preciso que a nossa voz tivesse um tom de quem chama, um pouco alto mas não em demasia. E esse chamamento devia prolongar-se no ar, demorando-se no ditongo "ei". A nossa voz devia emitir uma espécie de eco, para conseguir chegar ao nevoeiro e para que este lhe obedecesse.
A voz devia, sobretudo, adquirir um tom encantatório, combinando com o aspecto de todas as coisas, quando cobertas de nevoeiro. "Nevoeiro, Nevoeiro, vai p'ra trás do teu palheiro, que hoje faço-te um bolo e amanhã faço um brindeiro."
De todos os elementos da natureza, o nevoeiro foi o mais intrigante da minha infância, talvez só comparado ao sereno, esse ser misterioso que cobria de uma camada fina as vidraças de todas as janelas, onde escrevíamos pela manhã.
O nevoeiro estava ali e não estava; viamo-lo, mas não conseguíamos tocar-lhe. Tentávamos apanhá-lo, guardando um bocadinho dele dentro das mãos fechadas. Quando as abríamos estavam vazias mas o nevoeiro continuava a envolver-nos, como antes. "Nevoeiro, Nevoeiro, vai p'ra trás do teu palheiro, que hoje faço-te um bolo e amanhã faço um brindeiro."
Corríamos por entre o nevoeiro, repetindo a fórmula mágica, no tom exacto em que a tínhamos aprendido, mas não me lembro se alguma vez acreditei realmente que o nevoeiro fosse embora graças a ela. Recordo as palavras alongadas, o eco que ficava suspenso no ar, a promessa de um bolo e de um brindeiro. Essa recordação está a ser a alegria deste dia, que amanheceu e continua envolto em nevoeiro.
"Nevoeiro, Nevoeiro, vai p'ra trás do teu palheiro, que hoje faço-te um bolo e amanhã faço um brindeiro."
Era mais um pedido do que uma ordem, isso de certeza. Mas não bastava dizer. Era preciso que a nossa voz tivesse um tom de quem chama, um pouco alto mas não em demasia. E esse chamamento devia prolongar-se no ar, demorando-se no ditongo "ei". A nossa voz devia emitir uma espécie de eco, para conseguir chegar ao nevoeiro e para que este lhe obedecesse.
A voz devia, sobretudo, adquirir um tom encantatório, combinando com o aspecto de todas as coisas, quando cobertas de nevoeiro. "Nevoeiro, Nevoeiro, vai p'ra trás do teu palheiro, que hoje faço-te um bolo e amanhã faço um brindeiro."
De todos os elementos da natureza, o nevoeiro foi o mais intrigante da minha infância, talvez só comparado ao sereno, esse ser misterioso que cobria de uma camada fina as vidraças de todas as janelas, onde escrevíamos pela manhã.
O nevoeiro estava ali e não estava; viamo-lo, mas não conseguíamos tocar-lhe. Tentávamos apanhá-lo, guardando um bocadinho dele dentro das mãos fechadas. Quando as abríamos estavam vazias mas o nevoeiro continuava a envolver-nos, como antes. "Nevoeiro, Nevoeiro, vai p'ra trás do teu palheiro, que hoje faço-te um bolo e amanhã faço um brindeiro."
Corríamos por entre o nevoeiro, repetindo a fórmula mágica, no tom exacto em que a tínhamos aprendido, mas não me lembro se alguma vez acreditei realmente que o nevoeiro fosse embora graças a ela. Recordo as palavras alongadas, o eco que ficava suspenso no ar, a promessa de um bolo e de um brindeiro. Essa recordação está a ser a alegria deste dia, que amanheceu e continua envolto em nevoeiro.
"Nevoeiro, Nevoeiro, vai p'ra trás do teu palheiro, que hoje faço-te um bolo e amanhã faço um brindeiro."
quarta-feira, fevereiro 23, 2005
A mesa da água
A mesa da água já não existe e sente-se a falta dela logo que se chega ao terreiro da casa dos meus avolitos. Ficava na direcção exacta da janela do quarto das raparigas e tinha sido construída de propósito para descansar os aguadores e os baldes da água à chegada da fonte.
A mesa da água parecia-me altíssima. Na verdade, ficava à altura da cabeça de um adulto porque os baldes e os aguadores eram transportados à cabeça, desde o poço da fonte, através da vereda, sempre de cabeça acima.
Depois da longa subida, era bom ter aquela mesa da água ali à mão: bastava passar o balde ou o aguador desde a cabeça para cima da mesa, em vez do esforço muito maior de tentar colocar de imediato o recipiente no chão. Foi o que me contaram.
Quando nasci já não se ia à fonte buscar água. A água caía de uma torneira, transportada em pequenos tubos pretos desde uma nascente, algures na Camacha. O meu avô tinha comprado um quarto de pena de água, e o meu pai e o meu tio também. Mas a mesa da água continuava lá, como recordação de um tempo não muito distante e do sofrimento de todos os meus tios, que se revezavam nas idas à fonte.
Na minha infância a mesa da água passou a ser a mesa do leite porque era lá que o leiteiro descansava as folhas e media o leite. Quando ele se despedia, colocando novamente o cajado às costas, ficavam em cima dessa mesa alta as encomendas de leite para a nossa casa, para os meus avós, para os meus tios e ainda para um ou outro vizinho, em recipientes de folha, com uma asa e uma pequena tampa, próprios para o leite.
Um dia, o leiteiro também deixou de passar e com o tempo a antiga mesa da água, depois mesa do leite, desmoronou-se, transformando-se num amontoado de madeiras velhas e sem qualquer préstimo. No lugar dela, não existe nada. Ninguém vai à fonte e o leite é comprado em sacos no supermercado. Hoje a mesa da água, depois mesa do leite, não teria utilidade nenhuma. Mas sinto-lhe a falta. Sempre. Sinto-lhe a falta assim que chego ao canto do terreiro da casa dos meus avolitos, onde não vive ninguém quase há dez anos.
A mesa da água parecia-me altíssima. Na verdade, ficava à altura da cabeça de um adulto porque os baldes e os aguadores eram transportados à cabeça, desde o poço da fonte, através da vereda, sempre de cabeça acima.
Depois da longa subida, era bom ter aquela mesa da água ali à mão: bastava passar o balde ou o aguador desde a cabeça para cima da mesa, em vez do esforço muito maior de tentar colocar de imediato o recipiente no chão. Foi o que me contaram.
Quando nasci já não se ia à fonte buscar água. A água caía de uma torneira, transportada em pequenos tubos pretos desde uma nascente, algures na Camacha. O meu avô tinha comprado um quarto de pena de água, e o meu pai e o meu tio também. Mas a mesa da água continuava lá, como recordação de um tempo não muito distante e do sofrimento de todos os meus tios, que se revezavam nas idas à fonte.
Na minha infância a mesa da água passou a ser a mesa do leite porque era lá que o leiteiro descansava as folhas e media o leite. Quando ele se despedia, colocando novamente o cajado às costas, ficavam em cima dessa mesa alta as encomendas de leite para a nossa casa, para os meus avós, para os meus tios e ainda para um ou outro vizinho, em recipientes de folha, com uma asa e uma pequena tampa, próprios para o leite.
Um dia, o leiteiro também deixou de passar e com o tempo a antiga mesa da água, depois mesa do leite, desmoronou-se, transformando-se num amontoado de madeiras velhas e sem qualquer préstimo. No lugar dela, não existe nada. Ninguém vai à fonte e o leite é comprado em sacos no supermercado. Hoje a mesa da água, depois mesa do leite, não teria utilidade nenhuma. Mas sinto-lhe a falta. Sempre. Sinto-lhe a falta assim que chego ao canto do terreiro da casa dos meus avolitos, onde não vive ninguém quase há dez anos.
segunda-feira, fevereiro 21, 2005
Ver o passo do francelho
"Deixa, para vermos o passo do francelho". Esta expressão deve-se ao meu tio João, o mesmo que matou o pintainho, e continuamos a usá-la amiúde no meio familiar.
O meu tio e a minha mãe, os mais moços da casa, foram deixados a cuidar de uma ninhada de bisalhos, porque o perigo espreitava permanentemente dos céus, com a forma de algum francelho ou de alguma manta.
A tarefa era simples: bastava que as crianças ficassem no terreiro, perto do local onde os bisalhos depenicavam folhas de couve e rolão, junto à galinha-mãe, sempre de olhos atentos ao céu. Quando viam aproximar-se alguma dessas aves de rapina, começando a peneirar por cima dos bisalhos, em jeito de os ir apanhar, tinham de começar a fazer muito barulho, apupando e batendo em tachos, para as espantar.
Ficaram os dois em casa, de guarda à ninhada de pintos, e quando se aproximou o primeiro francelho, a minha mãe preparou-se para seguir à risca a tarefa: desatou a apupar e a bater nos tachos, chamando a atenção do irmão para que fizesse o mesmo. Ele, irritado, virou-se para ela e mandou-a calar: "Shuuuu, sua tonta, cala a boca. Não faças barulho que é para vermos o passo do francelho."
O meu tio, aventureiro e curioso como era, não se importava de sacrificar a vida de um bisalho, se isso lhe permitisse observar de perto e com todos os pormenores, o método utilizado pelos francelhos e pelas mantas para capturarem o almoço. "Deixa, para vermos o passo do francelho."
Não me lembro bem do final da história, apesar de a minha mãe a ter contado vezes sem fim, a nosso pedido, durante toda a infância. Penso que o francelho se espantou com o barulho da minha mãe, para grande frustração do meu tio, mas isso não interessa para o caso, que é o sentido com que, ainda hoje, utilizamos esta expressão.
"Deixa, para vermos o passo do francelho". Hoje são poucos os francelhos. Quando dizemos isto referimo-nos sempre a pessoas e à decisão de ficarmos quietos no nosso canto, na expectativa de ver como irão actuar, atentos para analisar-lhes o passo seguinte, sem fazer barulho, tal como o meu tio queria fazer em relação ao francelho, ainda que isso pudesse custar a vida de um pequeno bisalho.
O país acordou totalmente diferente, do ponto de vista político. E agora? Haverá algum milagre? A crise vai desaparecer? Os desempregados vão encontrar emprego? O ordenado vai render mais? Ocorre-me apenas a frase do meu tio: "Deixa, não faças barulho, que é para vermos o passo do francelho."
O meu tio e a minha mãe, os mais moços da casa, foram deixados a cuidar de uma ninhada de bisalhos, porque o perigo espreitava permanentemente dos céus, com a forma de algum francelho ou de alguma manta.
A tarefa era simples: bastava que as crianças ficassem no terreiro, perto do local onde os bisalhos depenicavam folhas de couve e rolão, junto à galinha-mãe, sempre de olhos atentos ao céu. Quando viam aproximar-se alguma dessas aves de rapina, começando a peneirar por cima dos bisalhos, em jeito de os ir apanhar, tinham de começar a fazer muito barulho, apupando e batendo em tachos, para as espantar.
Ficaram os dois em casa, de guarda à ninhada de pintos, e quando se aproximou o primeiro francelho, a minha mãe preparou-se para seguir à risca a tarefa: desatou a apupar e a bater nos tachos, chamando a atenção do irmão para que fizesse o mesmo. Ele, irritado, virou-se para ela e mandou-a calar: "Shuuuu, sua tonta, cala a boca. Não faças barulho que é para vermos o passo do francelho."
O meu tio, aventureiro e curioso como era, não se importava de sacrificar a vida de um bisalho, se isso lhe permitisse observar de perto e com todos os pormenores, o método utilizado pelos francelhos e pelas mantas para capturarem o almoço. "Deixa, para vermos o passo do francelho."
Não me lembro bem do final da história, apesar de a minha mãe a ter contado vezes sem fim, a nosso pedido, durante toda a infância. Penso que o francelho se espantou com o barulho da minha mãe, para grande frustração do meu tio, mas isso não interessa para o caso, que é o sentido com que, ainda hoje, utilizamos esta expressão.
"Deixa, para vermos o passo do francelho". Hoje são poucos os francelhos. Quando dizemos isto referimo-nos sempre a pessoas e à decisão de ficarmos quietos no nosso canto, na expectativa de ver como irão actuar, atentos para analisar-lhes o passo seguinte, sem fazer barulho, tal como o meu tio queria fazer em relação ao francelho, ainda que isso pudesse custar a vida de um pequeno bisalho.
O país acordou totalmente diferente, do ponto de vista político. E agora? Haverá algum milagre? A crise vai desaparecer? Os desempregados vão encontrar emprego? O ordenado vai render mais? Ocorre-me apenas a frase do meu tio: "Deixa, não faças barulho, que é para vermos o passo do francelho."
domingo, fevereiro 20, 2005
Figos e beiços rebentados
"Uns comem os figos, outros rebentam-lhes os beiços". Ouvi esta expressão hoje de manhã e achei deliciosa a metáfora, com um sentido parecido ao de "fama sem proveito", mas muito mais criativa, sem a menor dúvida.
Foi no Caniço, no meio de uma conversa a propósito de eleições. Alguém comparava a cobertura da campanha eleitoral pela comunicação social da Madeira e do Continente. O homem afirmava: "Fartam-se de dizer que na Madeira é tudo controlado pelo Governo mas aqui todos os partidos foram tratados por igual. Lá, no continente, foi uma vergonha." A conclusão do raciocínio veio a seguir: "Uns comem os figos, outros rebentam-lhes os beiços."
Eu já conhecia a expressão, mas estava totalmente esquecida, até porque na parte do Caniço mais a norte, onde nasci e cresci, nunca houve muitas figueiras. As figueiras, tal como as tabaibeiras, dão-se melhor nas zonas mais à beira-mar, no Caniço de Baixo.
Lembro-me de os meus avós e tios irem visitar pessoas ao Caniço de Baixo, levando ameixas ou peras, no tempo delas, para trazer, na volta, figos ou tabaibos. Aquilo que não temos é sempre mais apreciado, tem um sabor mais apetecível. Às vezes as visitas eram ao contrário e era essa família amiga que ia visitar a minha, levando num cesto figos ou tabaibos. Adorava vê-los chegar com esses frutos exóticos. Levavam bêberas, tanto das brancas como das pretas, estas alongadas, e os figos, que têm a forma redonda.
A verdade é que algumas espécies de figos, e no geral todos quando não estão ainda bem maduros, deixam os lábios ásperos. A sabedoria popular diz que "rebentam os beiços".
Lembro-me muito bem de ouvir e também usar a palavra beiços em vez de lábios e da forma depreciativa como se falava de alguma rapariga que se atrevesse a "pintar os beiços." A minha avó dava como garantido que fazê-lo representava uma espécie de pacto com o diabo e contava a história de uma rapariga que tinha por hábito pintar os beiços e as unhas e quando morreu, estando na écia, entrou alguém desconhecido que a pintou toda (A conclusão era que devia ser o diabo).
"Uns comem os figos, outros rebentam-lhes os beiços". Uns fazem as coisas, outros ficam com a fama de as terem feito. De todas as expressões populares, é talvez das mais engraçadas. Quem a inventou e muito provavelmente a pessoa de quem hoje a ouvi, nunca soube o que é uma metáfora. Mas que interessa isso? O resultado, que é esta mestria na arte de comparar, é que interessa realmente.
Foi no Caniço, no meio de uma conversa a propósito de eleições. Alguém comparava a cobertura da campanha eleitoral pela comunicação social da Madeira e do Continente. O homem afirmava: "Fartam-se de dizer que na Madeira é tudo controlado pelo Governo mas aqui todos os partidos foram tratados por igual. Lá, no continente, foi uma vergonha." A conclusão do raciocínio veio a seguir: "Uns comem os figos, outros rebentam-lhes os beiços."
Eu já conhecia a expressão, mas estava totalmente esquecida, até porque na parte do Caniço mais a norte, onde nasci e cresci, nunca houve muitas figueiras. As figueiras, tal como as tabaibeiras, dão-se melhor nas zonas mais à beira-mar, no Caniço de Baixo.
Lembro-me de os meus avós e tios irem visitar pessoas ao Caniço de Baixo, levando ameixas ou peras, no tempo delas, para trazer, na volta, figos ou tabaibos. Aquilo que não temos é sempre mais apreciado, tem um sabor mais apetecível. Às vezes as visitas eram ao contrário e era essa família amiga que ia visitar a minha, levando num cesto figos ou tabaibos. Adorava vê-los chegar com esses frutos exóticos. Levavam bêberas, tanto das brancas como das pretas, estas alongadas, e os figos, que têm a forma redonda.
A verdade é que algumas espécies de figos, e no geral todos quando não estão ainda bem maduros, deixam os lábios ásperos. A sabedoria popular diz que "rebentam os beiços".
Lembro-me muito bem de ouvir e também usar a palavra beiços em vez de lábios e da forma depreciativa como se falava de alguma rapariga que se atrevesse a "pintar os beiços." A minha avó dava como garantido que fazê-lo representava uma espécie de pacto com o diabo e contava a história de uma rapariga que tinha por hábito pintar os beiços e as unhas e quando morreu, estando na écia, entrou alguém desconhecido que a pintou toda (A conclusão era que devia ser o diabo).
"Uns comem os figos, outros rebentam-lhes os beiços". Uns fazem as coisas, outros ficam com a fama de as terem feito. De todas as expressões populares, é talvez das mais engraçadas. Quem a inventou e muito provavelmente a pessoa de quem hoje a ouvi, nunca soube o que é uma metáfora. Mas que interessa isso? O resultado, que é esta mestria na arte de comparar, é que interessa realmente.
sábado, fevereiro 19, 2005
Fama sem proveito
"Fama sem proveito faz dores no peito". Ouço desde pequena esta sentença popular. É uma expressão que nunca perdeu actualidade, como aconteceu com algumas. Há situações bem piores do que esta, de ter a fama e não ter o proveito, lá isso é verdade. Mas esta é, sem súvida, das coisas que mais irritam uma pessoa: ter fama sem proveito.
Os tempos mudam mas as bilhardices continuam a existir. Hão-de existir sempre "línguas de sogra", embora as pessoas casem cada vez menos. E isso só acontece porque as pessoas se deixam afectar quando são alvos dessas bilhardices, sobretudo se for um caso de "fama sem proveito".
Há quem não ligue ao que dizem os outros e se gabe de não o fazer. Mas quando se trata de "fama sem proveito", não conseguem evitar. "Fama sem proveito faz dores no peito"
quando nos atribuem a propriedade de algo que na verdade não temos, a autoria de uma acção que na verdade não fizemos, o benefício de alguma coisa de que na verdade nunca beneficiámos. Sei bem do que estou a falar. Essas dores no peito são reais.
Os tempos mudam mas as bilhardices continuam a existir. Hão-de existir sempre "línguas de sogra", embora as pessoas casem cada vez menos. E isso só acontece porque as pessoas se deixam afectar quando são alvos dessas bilhardices, sobretudo se for um caso de "fama sem proveito".
Há quem não ligue ao que dizem os outros e se gabe de não o fazer. Mas quando se trata de "fama sem proveito", não conseguem evitar. "Fama sem proveito faz dores no peito"
quando nos atribuem a propriedade de algo que na verdade não temos, a autoria de uma acção que na verdade não fizemos, o benefício de alguma coisa de que na verdade nunca beneficiámos. Sei bem do que estou a falar. Essas dores no peito são reais.
sexta-feira, fevereiro 18, 2005
Cabra-Cega, de onde vens?
Com um lenço dobrado e bem amarrado à volta dos olhos, a cabra-cega aguardava no meio de uma roda, pela pergunta: " - Cabra-Cega, de onde vens?"
O jogo só começaria de facto, com a cabra-cega a tentar apanhar as outras crianças, quando se completasse o diálogo. Ela respondia:
- "Venho do Lombo do Moinho."
Continuava assim essa conversa obrigatória, enquanto as outras crianças se preparavam para a correria da praxe, com o intuito de não se deixarem apanhar:
- "O que trazes?"
- "Pão e Vinho."
- "Não me dás nada?"
- "Não."
- "Então anda à roda, Cabra-Cega."
Este "Anda à roda Cabra-Cega" era a deixa para ela começar a tentar apanhar algum dos colegas de brincadeira e para estes tentarem a todo o custo escapar-lhe.
Hoje as crianças ainda brincam à Cabra-Cega, mas esqueceram a parte mais importante. Já não há diálogo. Desapareceu aquele momento de espera, de antecipação, em que todos se preparavam para o jogo, repetindo esta espécie de lenga-lenga, ensinada pelos pais e pelos avós.
Hoje a minha filha brincou à Cabra-Cega na escola. Contou como foi: Não tinham lenço para dobrar cuidadosamente e amarrar à volta dos olhos da colega escolhida. Por isso, a venda da Cabra-Cega foi um boné puxado bem para a frente dos olhos. "E depois?", perguntei. Depois começaram a correr e ela a tentar apanhá-los. "E aquela conversa do início com a Cabra-Cega?" Ela não sabia. Eu ensinei-lhe e fiquei contente.
O jogo só começaria de facto, com a cabra-cega a tentar apanhar as outras crianças, quando se completasse o diálogo. Ela respondia:
- "Venho do Lombo do Moinho."
Continuava assim essa conversa obrigatória, enquanto as outras crianças se preparavam para a correria da praxe, com o intuito de não se deixarem apanhar:
- "O que trazes?"
- "Pão e Vinho."
- "Não me dás nada?"
- "Não."
- "Então anda à roda, Cabra-Cega."
Este "Anda à roda Cabra-Cega" era a deixa para ela começar a tentar apanhar algum dos colegas de brincadeira e para estes tentarem a todo o custo escapar-lhe.
Hoje as crianças ainda brincam à Cabra-Cega, mas esqueceram a parte mais importante. Já não há diálogo. Desapareceu aquele momento de espera, de antecipação, em que todos se preparavam para o jogo, repetindo esta espécie de lenga-lenga, ensinada pelos pais e pelos avós.
Hoje a minha filha brincou à Cabra-Cega na escola. Contou como foi: Não tinham lenço para dobrar cuidadosamente e amarrar à volta dos olhos da colega escolhida. Por isso, a venda da Cabra-Cega foi um boné puxado bem para a frente dos olhos. "E depois?", perguntei. Depois começaram a correr e ela a tentar apanhá-los. "E aquela conversa do início com a Cabra-Cega?" Ela não sabia. Eu ensinei-lhe e fiquei contente.
quinta-feira, fevereiro 17, 2005
Olhar e Andar para casar
Antigamente, as pessoas "andavam para casar" em vez de namorarem ou noivarem. Primeiro, "olhavam", no adro da igreja, nas procissões, no caminho para a venda ou na debulha do trigo. Depois o rapaz ia "pedir a rapariga" e, se ela o aceitasse, "começavam a andar para casar". O casamento acontecia normalmente e ao fim de oito a dez anos, depois de terem feito casa. Se o noivado, por algum motivo, terminava, diziam "acabou-se o casamento". Lembrei-me de colocar aqui estas palavras a propósito de um dia que não existia nesse tempo, que é o de São Valentim. O santo "casamenteiro" era o Santo Antonio.
Aqui fica uma conversa sobre namoro, noivado e casamento, que tive com o senhor João de Nóbrega Chícharo, do Sítio da Tendeira, Caniço, também conhecido por João da Matilde. Vi-o uma única vez, no Verão de 1992. A minha tia Romana estava de férias na Madeira e trazia recomendações dos familiares do senhor João, também emigrados na Venezuela, para que lhe fizesse uma visita. Acompanhei-a nessa visita e conversei com ele. Depois escrevi este texto, que foi premiado no suplemento jovem do Diário de Notícias de Lisboa. O senhor João era bastante idoso e, entretanto, faleceu.
"Eu já a conhecia desde que se era pequenos. Mas comecei a olhar para ela quando se ia levar o leite à máquina para desnatar. Só falei com ela uma vez. Ela disse-me: 'Vai-me pedir a meu pai.' Ora, eu fui e ele mandou-me voltar daí a oito dias buscar a resposta. Era tudo assim naquele tempo.
Eu voltei no dia marcado e já fiquei lá para a ceia. Não me esqueço, era papas de farinha de trigo num alguidar só para aquela casa de gente. Era cada um com a sua colher, naquela mesa grande, à volta do alguidar das papas.
Depois andava-se para casar; eu ia lá às quintas-feiras e aos domingos, como era de moda. Cumprimentava-se um ao outro com uma mãozada, não era nada como agora. Acha que se andava aos beijos com nestas novelas que dá na televisão? Nem pensar! Eu dei-lhe um beijo uma vez mas foi às escondidas. Deus me livrasse se o pai dela soubesse.
E mesmo mais ela não deixava; cá se ela quisesse... Sabe o que é que eu digo? Que hoje, só de se ver na televisão goza-se mais que naquele tempo vivendo. Também não se caminhava sozinhos. Isso! A primeira vez que eu saí mais ela fomos à serra buscar lã de ovelha para se fazer a cama dos noivos.
- Foi feliz no seu casamento?
- Então não fui!
- Porque é que não voltou a casar depois de ter ficado
viúvo?
- Menina, casar e morrer é uma vez só. E além do mais eu
já estou velho. Acha que eu ia casar com uma rapariga mais nova para os outros terem mulher?"
Aqui fica uma conversa sobre namoro, noivado e casamento, que tive com o senhor João de Nóbrega Chícharo, do Sítio da Tendeira, Caniço, também conhecido por João da Matilde. Vi-o uma única vez, no Verão de 1992. A minha tia Romana estava de férias na Madeira e trazia recomendações dos familiares do senhor João, também emigrados na Venezuela, para que lhe fizesse uma visita. Acompanhei-a nessa visita e conversei com ele. Depois escrevi este texto, que foi premiado no suplemento jovem do Diário de Notícias de Lisboa. O senhor João era bastante idoso e, entretanto, faleceu.
"Eu já a conhecia desde que se era pequenos. Mas comecei a olhar para ela quando se ia levar o leite à máquina para desnatar. Só falei com ela uma vez. Ela disse-me: 'Vai-me pedir a meu pai.' Ora, eu fui e ele mandou-me voltar daí a oito dias buscar a resposta. Era tudo assim naquele tempo.
Eu voltei no dia marcado e já fiquei lá para a ceia. Não me esqueço, era papas de farinha de trigo num alguidar só para aquela casa de gente. Era cada um com a sua colher, naquela mesa grande, à volta do alguidar das papas.
Depois andava-se para casar; eu ia lá às quintas-feiras e aos domingos, como era de moda. Cumprimentava-se um ao outro com uma mãozada, não era nada como agora. Acha que se andava aos beijos com nestas novelas que dá na televisão? Nem pensar! Eu dei-lhe um beijo uma vez mas foi às escondidas. Deus me livrasse se o pai dela soubesse.
E mesmo mais ela não deixava; cá se ela quisesse... Sabe o que é que eu digo? Que hoje, só de se ver na televisão goza-se mais que naquele tempo vivendo. Também não se caminhava sozinhos. Isso! A primeira vez que eu saí mais ela fomos à serra buscar lã de ovelha para se fazer a cama dos noivos.
- Foi feliz no seu casamento?
- Então não fui!
- Porque é que não voltou a casar depois de ter ficado
viúvo?
- Menina, casar e morrer é uma vez só. E além do mais eu
já estou velho. Acha que eu ia casar com uma rapariga mais nova para os outros terem mulher?"
Estamos trompicados
Esta expressão é a única que me ocorre hoje, atendendo ao assunto do momento: as negociações do novo contrato colectivo da minha empresa. Tenho ouvido versões muito diferentes. Uns a tentam convencer-nos de como seremos altamente beneficiados. Outros contrapõem com a lista de todas as regalias perdidas. Alguns estão felizes porque vão ganhar mais. Outros estão tristes porque ficam na mesma. Ainda não entendi nada. Mas espero que desta vez o meu pressentimento não esteja certo pois desde manhã tenho na ideia esta expressão popular: "Estamos trompicados!". Que talvez se possa traduzir por "estamos enganados", ou "estamos tramados".
quarta-feira, fevereiro 16, 2005
Ir de balde e vir de selha
Ouvi esta expressão, pela primeira vez, há poucas semanas. No meu Sítio nunca me apercebi de que alguém a usasse, nem sequer durante a infância. Mas parece ser corrente no resto da ilha e significada não trazer nada, vir de mãos a abanar.
Foi uma colega de profissão que a usou, depois de termos passado uma hora à espera da conclusão de uma reunião na Câmara Municipal, e nos terem dito que, afinal, não havia conclusões para divulgar aos jornalistas. Desiludida, a Luísa exclamou: "O quê? Não me diga que viemos de balde e vamos de selha?"
A selha é maior do que um simples balde. No regresso, uma pessoa traz mais um pouco do nada que já levava inicialmente, pensando voltar com o balde cheio.
É assim que me sinto hoje: carregando uma enorme selha, cheia de nada.
Foi uma colega de profissão que a usou, depois de termos passado uma hora à espera da conclusão de uma reunião na Câmara Municipal, e nos terem dito que, afinal, não havia conclusões para divulgar aos jornalistas. Desiludida, a Luísa exclamou: "O quê? Não me diga que viemos de balde e vamos de selha?"
A selha é maior do que um simples balde. No regresso, uma pessoa traz mais um pouco do nada que já levava inicialmente, pensando voltar com o balde cheio.
É assim que me sinto hoje: carregando uma enorme selha, cheia de nada.
segunda-feira, fevereiro 14, 2005
Dar uma carreira num chãozinho
Ah mê Deus qu' eu já não posso
Subir a esta ladeira
Quand' eu chegar ao chãozinho
Eu vou dar uma carreira
Veio-me à ideia esta quadra graças a um colega que hoje de manhã me chamou atenção para o uso da palavra "chão" como sinónimo de local plano. Na verdade, eu ainda uso muitas vezes a palavra chão ou chãozinho com esse sentido.
O que nunca mais fiz foi "dar uma carreira". Passo a vida a correr de um lado para o outro, como a maioria das pessoas, prisioneira dos ponteiros do relógio e dos muitos afazeres diários, mas nunca mais dei uma carreira.
Como era bom, dar uma carreira ao vento num chãozinho! Em qualquer chãozinho dava jeito a dar uma carreira. E uma simples carreira podia tornar-se num jogo. "-Vai-se dar uma carreira?" "-Vamos, um, dois, três...." Apenas um instante depois, já íamos a meio da carreira, quase a voar, para ver quem chegava mais depressa.
Podíamos não ter brinquedos, nem sapatos, nem roupas novas e da moda, mas podíamos sempre dar uma carreira, nem que fosse no terreiro, para cá e para lá, com cuidado para não esbarrar em nenhum cântaro e partir as orquídeas ou as begónias.
Quem me dera, voltar a ganhar asas numa simples carreira e levantar voo.
Subir a esta ladeira
Quand' eu chegar ao chãozinho
Eu vou dar uma carreira
Veio-me à ideia esta quadra graças a um colega que hoje de manhã me chamou atenção para o uso da palavra "chão" como sinónimo de local plano. Na verdade, eu ainda uso muitas vezes a palavra chão ou chãozinho com esse sentido.
O que nunca mais fiz foi "dar uma carreira". Passo a vida a correr de um lado para o outro, como a maioria das pessoas, prisioneira dos ponteiros do relógio e dos muitos afazeres diários, mas nunca mais dei uma carreira.
Como era bom, dar uma carreira ao vento num chãozinho! Em qualquer chãozinho dava jeito a dar uma carreira. E uma simples carreira podia tornar-se num jogo. "-Vai-se dar uma carreira?" "-Vamos, um, dois, três...." Apenas um instante depois, já íamos a meio da carreira, quase a voar, para ver quem chegava mais depressa.
Podíamos não ter brinquedos, nem sapatos, nem roupas novas e da moda, mas podíamos sempre dar uma carreira, nem que fosse no terreiro, para cá e para lá, com cuidado para não esbarrar em nenhum cântaro e partir as orquídeas ou as begónias.
Quem me dera, voltar a ganhar asas numa simples carreira e levantar voo.
O caminho do carro
Foi uma mulher do Sítio da Ribeira de João Gonçalves, no Santo da Serra, que me recordou esta expressão, que tanto usei na infância e juventude como sinónimo de estrada.
Angelina Francisca da Silva viveu até agora sem caminho do carro, mas finalmente chegou o dia de ver o carro chegar-lhe à porta. À entrada do novo caminho, numa pequena conversa inicada por mim, a senhora Angelina Francisca, emocionada, usou oito vezes a expressão "caminho do carro" e outras que também me fizeram voltar ao passado, como "armar o chapéu", "dar pena de chorar", "esmigalhar", "a soleira da porta", e "do fundo da ribeira ao cabeço".
A família de Angelina Francisca da Silva, conhecida pela alcunha de "Massinhas" deu cinco poios de terra para o caminho do carro. Perderam-se ameixieiras e outras árvores de fruto, mas os doentes já não precisam de ser levados às costas, subindo a vereda até ao caminho do carro.
Também fiquei contente, com a alegria daquela mulher simples. Aqui ficam, como homenagem às pessoas que por aí existem ainda sem caminho do carro, alguns excertos da nossa conversa.
-Está contente com este caminho?
-Estou, minha senhora, muito contente, minha senhora. Porque isto era uma necessidade que a gente tinha porque a gente 'tava como quem 'tava dentro de uma sepultura, sem caminho de carro (....) até dá pena de chorar.
-Quando alguém adoecia como era?
-Olhe, quando alguém 'tava deficiente, doente...eu tive uma irmã que partiu os ossos cinco vezes e adespois os embulantes porque nã tinha caminho de carro não queriam ir à minha casa. Eu fui, agarrei na minha irmã e trouxe-na às costas. Vinha aqui ao lado de baixo, dei uma queda com ela, ela acabou de se esmigalhar e eu parti uma perna, por não haver caminho de carro. (...)
-A senhora também cedeu terrenos para a construção do caminho?
-Eu dei, minha senhora. Eu dei cinco poios para o caminho, e foi muitas amexieiras, cinco amexieieras, pereiros, laranjeiras, cavare-me até à soleira da porta.
-Mas valeu a pena?
-Valeu a pena porque eu gostei muito do caminho do carro. (....)
-Porque é que dizem que este é o "Caminho das Massinhas"?
-O Caminho das Massinhas é...espere eu vou armar o chapéu (começara a chover)...O caminho das Massinhas é a gente que foi a gente que cedemos muito terreno, cinco poios, se fosse um terreno pequeno, tinha ido tudo. Mas era um terreno que ia do fundo da ribeira ao cabeço, 'inda ficou assim uns bocadinhos, mas não dá sequer um bocadinho, um poio, a cada herdeiro, mas eu 'tou muito contentes e sastefeita.
-Também assim tem mais valor...
-Também tem mais valor...pronto. Eu dei uma ajuda a pessoas que 'tavam ali acamadas à cama, muito doentes, eu também lhe dei uma ajuda.
Angelina Francisca da Silva viveu até agora sem caminho do carro, mas finalmente chegou o dia de ver o carro chegar-lhe à porta. À entrada do novo caminho, numa pequena conversa inicada por mim, a senhora Angelina Francisca, emocionada, usou oito vezes a expressão "caminho do carro" e outras que também me fizeram voltar ao passado, como "armar o chapéu", "dar pena de chorar", "esmigalhar", "a soleira da porta", e "do fundo da ribeira ao cabeço".
A família de Angelina Francisca da Silva, conhecida pela alcunha de "Massinhas" deu cinco poios de terra para o caminho do carro. Perderam-se ameixieiras e outras árvores de fruto, mas os doentes já não precisam de ser levados às costas, subindo a vereda até ao caminho do carro.
Também fiquei contente, com a alegria daquela mulher simples. Aqui ficam, como homenagem às pessoas que por aí existem ainda sem caminho do carro, alguns excertos da nossa conversa.
-Está contente com este caminho?
-Estou, minha senhora, muito contente, minha senhora. Porque isto era uma necessidade que a gente tinha porque a gente 'tava como quem 'tava dentro de uma sepultura, sem caminho de carro (....) até dá pena de chorar.
-Quando alguém adoecia como era?
-Olhe, quando alguém 'tava deficiente, doente...eu tive uma irmã que partiu os ossos cinco vezes e adespois os embulantes porque nã tinha caminho de carro não queriam ir à minha casa. Eu fui, agarrei na minha irmã e trouxe-na às costas. Vinha aqui ao lado de baixo, dei uma queda com ela, ela acabou de se esmigalhar e eu parti uma perna, por não haver caminho de carro. (...)
-A senhora também cedeu terrenos para a construção do caminho?
-Eu dei, minha senhora. Eu dei cinco poios para o caminho, e foi muitas amexieiras, cinco amexieieras, pereiros, laranjeiras, cavare-me até à soleira da porta.
-Mas valeu a pena?
-Valeu a pena porque eu gostei muito do caminho do carro. (....)
-Porque é que dizem que este é o "Caminho das Massinhas"?
-O Caminho das Massinhas é...espere eu vou armar o chapéu (começara a chover)...O caminho das Massinhas é a gente que foi a gente que cedemos muito terreno, cinco poios, se fosse um terreno pequeno, tinha ido tudo. Mas era um terreno que ia do fundo da ribeira ao cabeço, 'inda ficou assim uns bocadinhos, mas não dá sequer um bocadinho, um poio, a cada herdeiro, mas eu 'tou muito contentes e sastefeita.
-Também assim tem mais valor...
-Também tem mais valor...pronto. Eu dei uma ajuda a pessoas que 'tavam ali acamadas à cama, muito doentes, eu também lhe dei uma ajuda.
sábado, fevereiro 12, 2005
O Merlata
Ainda lhe sinto a falta, aos domingos, à saída da missa. Durante toda a minha infância, adolescência e juventude, o Merlata estava à espera que as pessoas saíssem da missa, num ponto estratégico do caminho, junto ao cesto dos tremoços.
O Merlata vendia tremoços à saída das missas de domingo, esse era um dos seus dois meios de vida. Sempre me pareceu já velhote, mas no início não deveria ter toda a idade que aparentava. Talvez eu tenha ficado com essa ideia porque ele andava de forma trôpega, e também não conseguia articular bem as palavras. Não sei se foi por isso que lhe puseram aquela alcunha, tão difícil de desvendar. Toda a gente tinha alcunhas, algumas delas não me atrevo sequer a dizer, mas na maioria dos casos eram coisas que se conseguiam perceber, que tinham uma explicação. No caso do Merlata, nunca percebi a origem da alcunha, ou apelido, como então se dizia. Quem sabe tenha sido a forma de pronunciar alguma palavra, bastava um facto tão simples para pôr um "apelido" em alguém.
Depois de ter vendido todos os tremoços possíveis, o Merlata colocava o cesto às costas e percorria a vereda, no regresso a casa, como se fosse cair a cada passo que dava. Da imagem dele já fazia parte aquele cesto de vimes com o resto dos tremoços. Nunca vi o Merlata sem esse prolongamento, ou sem o outro, que era o segundo ganha-pão: um bode.
O Merlata tinha um bode, e vivia também de levá-lo às cabras na altura certa, para que resultasse criação. O bode do Merlata foi pai de todos os cabritos e cabritas do sítio e até de outras freguesias, pois lembro-me de o ver passar com o bode amarrado por uma corda, a caminho da Camacha. Descia a vereda, com os passos muito incertos e normalmente vinha a falar. Olhávamos e afinal não vinha mais ninguém no caminho. O Merlata falava com o bode, a quem pusera o nome de Joaquim, mas que chamava Jaquim ou Jóquim, como toda a gente. Mesmo tratando-se de uma pessoa, os joaquins eram todos chamados de uma forma ou de outra, viviam e morriam sem nunca ouvirem o seu nome pronunciado com todas as letras.
Aquintrodia (não resisto a usar esta palavra, embore conte um dia dar-lhe mais destaque), algures entre São Jorge e Santana, à beira da estrada, vi um homem de camisa enquartada e barrete de orelhas, segurando uma cabra por uma corda. Talvez a "levasse a passeio" pois era assim que ouvia dizer quando era a cabra que era levada até a casa de alguém que fosse dono de um bode, para resolver o problema da criação. Lembrei-me do Merlata, tal como me lembro aos domingos, à saída da missa.
O Merlata vendia tremoços à saída das missas de domingo, esse era um dos seus dois meios de vida. Sempre me pareceu já velhote, mas no início não deveria ter toda a idade que aparentava. Talvez eu tenha ficado com essa ideia porque ele andava de forma trôpega, e também não conseguia articular bem as palavras. Não sei se foi por isso que lhe puseram aquela alcunha, tão difícil de desvendar. Toda a gente tinha alcunhas, algumas delas não me atrevo sequer a dizer, mas na maioria dos casos eram coisas que se conseguiam perceber, que tinham uma explicação. No caso do Merlata, nunca percebi a origem da alcunha, ou apelido, como então se dizia. Quem sabe tenha sido a forma de pronunciar alguma palavra, bastava um facto tão simples para pôr um "apelido" em alguém.
Depois de ter vendido todos os tremoços possíveis, o Merlata colocava o cesto às costas e percorria a vereda, no regresso a casa, como se fosse cair a cada passo que dava. Da imagem dele já fazia parte aquele cesto de vimes com o resto dos tremoços. Nunca vi o Merlata sem esse prolongamento, ou sem o outro, que era o segundo ganha-pão: um bode.
O Merlata tinha um bode, e vivia também de levá-lo às cabras na altura certa, para que resultasse criação. O bode do Merlata foi pai de todos os cabritos e cabritas do sítio e até de outras freguesias, pois lembro-me de o ver passar com o bode amarrado por uma corda, a caminho da Camacha. Descia a vereda, com os passos muito incertos e normalmente vinha a falar. Olhávamos e afinal não vinha mais ninguém no caminho. O Merlata falava com o bode, a quem pusera o nome de Joaquim, mas que chamava Jaquim ou Jóquim, como toda a gente. Mesmo tratando-se de uma pessoa, os joaquins eram todos chamados de uma forma ou de outra, viviam e morriam sem nunca ouvirem o seu nome pronunciado com todas as letras.
Aquintrodia (não resisto a usar esta palavra, embore conte um dia dar-lhe mais destaque), algures entre São Jorge e Santana, à beira da estrada, vi um homem de camisa enquartada e barrete de orelhas, segurando uma cabra por uma corda. Talvez a "levasse a passeio" pois era assim que ouvia dizer quando era a cabra que era levada até a casa de alguém que fosse dono de um bode, para resolver o problema da criação. Lembrei-me do Merlata, tal como me lembro aos domingos, à saída da missa.
sexta-feira, fevereiro 11, 2005
A charola do Gaveia
"É como a charola do Gaveia, nem é bonita, nem é feia". Nunca tinha ouvido, até hoje, este dito, surgido numa conversa com a minha mãe, em que se discutia sobre a beleza de uma rapariga conhecida, que casou há pouco tempo. Eu comentei que ela estava bonita e não apenas pelo facto de estar vestida de noiva. É sabido que todas as noivas ficam bonitas, mas ela é mesmo bonita, independentemente de estar vestida de noiva ou não. A minha mãe, para dizer que ela não é feia mas também não tem uma beleza por aí além, fora do comum, afirmou: "É como a charola do Gaveia, nem é bonita, nem é feia!"
Fiquei pequenina: como é que eu nunca tinha ouvido este dito? Talvez até o tenha ouvido, mas numa altura em que não estava tão interessada em meter neste blog todos os ditos e falares possíveis. Quem era esse "Gaveia"(Gouveia, naturalmente)? "Era um homem do nosso sítio." Mas como é que surgiu este ditado? Isso a minha mãe não sabe. Talvez ele tenha, algum dia, feito de facto uma charola para levar numa romagem, de uma das festas mais rijas da freguesia, talvez para a Festa da Senhora do Livramento, ou, antes, para a Festa do Senhor.
"Olha, se calhar é só porque dá certo." Talvez a minha mãe tenha razão e seja tão simples como isso, mas não acredito. Os ditos deste género costumam basear-se sempre numa história real.
Como seria a tal charola, que o povo sentenciou que nem era bonita nem era feia? Acredito que deve ter havido uma charola: nem bonita, nem feia, mas com todos os elementos que a devem compor: de forma arredondada, toda coberta de produtos da terra e bem segura num pau, para que pudesse ser transportada na romagem aos ombros de dois homens.
quinta-feira, fevereiro 10, 2005
Dedo mindinho, seu vizinho....
"Dedo mindinho, seu vizinho, pai de todos, fura bolos, mata piolhos". Começa-se pelo dedo mindinho e acaba-se no polegar. Lembro-me de, muito pequena ainda, os adultos me pegarem nos dedos da mão, tocando neles, um a um, muito devagar como uma carícia, e irem repetindo esta espécie de lengalenga que indicava o nome pelo qual cada dedo era conhecido. Não o nome científico, mas o nome popular. Eu ficava encantada, mesmo quando ainda não percebia o que estavam a dizer. Gostava daquela carícia nos dedos e nos ouvidos, da voz que transmitia um conhecimento qualquer, que um dia haveria de entender.
Quando passei a entender as palavras, comecei a perguntar o que significavam e fiquei contente porque aqueles nomes tinham lógica. "Pai de todos porque é o dedo maior, já reparaste?" "Mata piolhos, porque é com este dedo, junto com o mesmo da outra mão, que se matam os piolhos que às vezes aparecem na cabeça dos meninos." Como é bom, quando tudo tem uma explicação simples e lógica, como os nomes atribuídos aos dedos da mão, nesta cantilena que também repeti à minha filha, com voz suave e uma carícia em cada dedo da mão pequenina, quando ela ainda não entendia nada do que eu estava a dizer.
Também lhe ensinei a outra lengalenga, que na verdade sempre foi a minha preferida: "Este foi à serra, este encontrou um perinho, este descascou, este provou e este disse que era bonzinho". Esta, pelo contrário, sempre me intrigou, não tinha a menor lógica. "Mãe, mas como é que este pode ter dito que era bonzinho, se foi o outro que o provou?" Lembro-me da pergunta mas não da resposta. Não devia haver nenhuma, era uma brincadeira e nem tudo precisa de ter explicação. Também é bom existirem mistérios como este e talvez por isso é que entre as duas, esta sempre foi a minha lengalenga preferida. "Este foi à serra, este achou um perinho, este descascou, este provou e este disse que era bonzinho." Para além do som encantatório da voz, e da carícia em cada dedo da mão, havia também o mistério. Ainda bem que a vida está cheio de mistérios, assim pequeninos, que não fazem mal a ninguém, mas nos levam além de uma simples carícia na ponta dos dedos e nos ouvidos.
Quando passei a entender as palavras, comecei a perguntar o que significavam e fiquei contente porque aqueles nomes tinham lógica. "Pai de todos porque é o dedo maior, já reparaste?" "Mata piolhos, porque é com este dedo, junto com o mesmo da outra mão, que se matam os piolhos que às vezes aparecem na cabeça dos meninos." Como é bom, quando tudo tem uma explicação simples e lógica, como os nomes atribuídos aos dedos da mão, nesta cantilena que também repeti à minha filha, com voz suave e uma carícia em cada dedo da mão pequenina, quando ela ainda não entendia nada do que eu estava a dizer.
Também lhe ensinei a outra lengalenga, que na verdade sempre foi a minha preferida: "Este foi à serra, este encontrou um perinho, este descascou, este provou e este disse que era bonzinho". Esta, pelo contrário, sempre me intrigou, não tinha a menor lógica. "Mãe, mas como é que este pode ter dito que era bonzinho, se foi o outro que o provou?" Lembro-me da pergunta mas não da resposta. Não devia haver nenhuma, era uma brincadeira e nem tudo precisa de ter explicação. Também é bom existirem mistérios como este e talvez por isso é que entre as duas, esta sempre foi a minha lengalenga preferida. "Este foi à serra, este achou um perinho, este descascou, este provou e este disse que era bonzinho." Para além do som encantatório da voz, e da carícia em cada dedo da mão, havia também o mistério. Ainda bem que a vida está cheio de mistérios, assim pequeninos, que não fazem mal a ninguém, mas nos levam além de uma simples carícia na ponta dos dedos e nos ouvidos.
segunda-feira, fevereiro 07, 2005
Quando os porcos bailam
"Quando os porcos bailam, adivinham chuva." Esta é uma das inúmeras sentenças populares relacionadas com as previsões do tempo, que anotei há alguns anos, numa recolha sobre o tema.
O curioso, nesta expressão, é que também se aplica a pessoas. Diz-se quando se vê uma pessoa muito contente, mais do que costuma estar, e se prevê que no dia seguinte poderá estar triste. Ou como alerta para que a pessoa não exagere na alegria, não vá, logo a seguir, decepcionar-se.
Não sei se a chuva que tem caído nos últimos dias foi adivinhada em algum chiqueiro, pelo "baile" fora do normal, dos seus habitantes. Mas a expressão encaixa como uma luva no meu estado de espírito.
Nos últimos dias, estive contente em demasia; eu própria me lembrei várias vezes da expressão popular, mas nada fiz para conter essa alegria exagerada e sem explicação. "Bailei" como fazem os porcos em vésperas de chuva, e hoje acordei triste. Penso que só um "milagre da Pisca" poderá trazer de volta a minha alegria perdida.
A expressão "milagre da Pisca" e muito engraçada e dá pano para mangas. Por isso, vou deixá-la para outra ocasião. Vou deixar para falar dela depois da chuva.
O curioso, nesta expressão, é que também se aplica a pessoas. Diz-se quando se vê uma pessoa muito contente, mais do que costuma estar, e se prevê que no dia seguinte poderá estar triste. Ou como alerta para que a pessoa não exagere na alegria, não vá, logo a seguir, decepcionar-se.
Não sei se a chuva que tem caído nos últimos dias foi adivinhada em algum chiqueiro, pelo "baile" fora do normal, dos seus habitantes. Mas a expressão encaixa como uma luva no meu estado de espírito.
Nos últimos dias, estive contente em demasia; eu própria me lembrei várias vezes da expressão popular, mas nada fiz para conter essa alegria exagerada e sem explicação. "Bailei" como fazem os porcos em vésperas de chuva, e hoje acordei triste. Penso que só um "milagre da Pisca" poderá trazer de volta a minha alegria perdida.
A expressão "milagre da Pisca" e muito engraçada e dá pano para mangas. Por isso, vou deixá-la para outra ocasião. Vou deixar para falar dela depois da chuva.
domingo, fevereiro 06, 2005
Entontecer pintos e rapar o espinhaço
"O sol de Fevereiro entontece pintos". A sabedoria popular alerta para o mal de uma pessoa se expor ao sol de Fevereiro, tão perigoso que até "entontece pintos". Mesmo sabendo dessa máxima, gostava que um sol quentinho abrisse o olho, e este frio abrandasse, nem que fosse por umas horas.
"O sol de Março rapa até o espinhaço". O sol de Março também é bastante perigoso, ainda pior que o de Fevereiro, que se limita a "entontecer pintos". O de Março vai mais além e "rapa até o espinhaço". O espinhaço é o peito, foi assim que aprendi na infância distante. O sol de Março pode provocar até pneumonias, penso ser esta a explicação do ditado, que tantas vezes ouvi repetir, em tom de aviso.
Aliás, a crença popular é de que faz mal o sol de todos os meses que têm um r no seu nome. Sobram poucos: Maio, Junho, Julho e Agosto. Ou seja, cada coisa no seu tempo. O que vem no seu tempo é bem vindo e faz bem, o que vem fora de tempo é um perigo.
São os ensinamentos da Mãe Natureza. O povo não aprendeu estes segredos com mais ninguém, a não ser com os sinais do próprio mundo à sua volta. Por isso, respeito e admiro esta sabedoria antiga. Mesmo assim, gostava que hoje o sol abrisse o olho. O domingo, no meu dicionário pessoal, é um dia de sol.
"O sol de Março rapa até o espinhaço". O sol de Março também é bastante perigoso, ainda pior que o de Fevereiro, que se limita a "entontecer pintos". O de Março vai mais além e "rapa até o espinhaço". O espinhaço é o peito, foi assim que aprendi na infância distante. O sol de Março pode provocar até pneumonias, penso ser esta a explicação do ditado, que tantas vezes ouvi repetir, em tom de aviso.
Aliás, a crença popular é de que faz mal o sol de todos os meses que têm um r no seu nome. Sobram poucos: Maio, Junho, Julho e Agosto. Ou seja, cada coisa no seu tempo. O que vem no seu tempo é bem vindo e faz bem, o que vem fora de tempo é um perigo.
São os ensinamentos da Mãe Natureza. O povo não aprendeu estes segredos com mais ninguém, a não ser com os sinais do próprio mundo à sua volta. Por isso, respeito e admiro esta sabedoria antiga. Mesmo assim, gostava que hoje o sol abrisse o olho. O domingo, no meu dicionário pessoal, é um dia de sol.
sábado, fevereiro 05, 2005
Entresilhada com frio
"Estou entresilhada com frio!" E não é para menos, pois tem estado realmente frio. Esta expressão foi-me dita há dois dias por uma colega da Camacha, que se lembrou dela a propósito das baixas temperaturas dos últimas dias e também se lembrou de anotar a expressão como contributo para este blog.
Eu não reconheci logo a palavra "entresilhada", mas a minha mãe também a usa, com o mesmo sentido, como sinónimo de enregelada, penso eu.
Hoje este texto ficará curto porque tenho as mãos "engadanhadas" com o frio.
A propósito de tanto frio, quando chegar a casa vou ensinar à minha filha(ou recordar, pois penso que talvez já lha tenha ensinado) a lengalenga que dizía em criança. Era assim:
-Tens frio? Mete o cú no rio, dá um assobio, chama por teu tio, e diz-lhe que o almoço já está frio.
Eu não reconheci logo a palavra "entresilhada", mas a minha mãe também a usa, com o mesmo sentido, como sinónimo de enregelada, penso eu.
Hoje este texto ficará curto porque tenho as mãos "engadanhadas" com o frio.
A propósito de tanto frio, quando chegar a casa vou ensinar à minha filha(ou recordar, pois penso que talvez já lha tenha ensinado) a lengalenga que dizía em criança. Era assim:
-Tens frio? Mete o cú no rio, dá um assobio, chama por teu tio, e diz-lhe que o almoço já está frio.
quinta-feira, fevereiro 03, 2005
Azara, azara, Maria da Clara....
"Azara, Azara, Maria da Clara. Azara, azara, Maria da Clara. Azara, azara, Maria da Clara". A fórmula, repetida continuamente e em tom um pouco baixo, acabava quase sempre por dar resultado, quer se tratasse do complicado jogo das pedrinhas, ou do mais simples saltar à corda. As palavras mágicas do azar eram usadas pelos adversários com a maior das naturalidades.
"Água salgada, peixinho do mar, hás-de perder, quando eu mandar. Água salgada, peixinho do mar, hás-de perder quando eu mandar. Água salgada, peixinho do mar, hás-de perder quando eu mandar." Lembro-me de estar no recreio da escola primária que funcionava por cima de uma venda no Pinheirinho, saltando à corda praticamente no terreiro da vizinha mais próxima, no balcãozinho que ficava por cima de outra venda, e ter tropeçado na corda e perdido logo, porque me azararam com esta lengalenga da água salgada, peixinho do mar.
"Rabo de gato, rabo de cão, hás-de perder, nesta ocasião. Rabo de gato, rabo de cão, hás-de perder, nesta ocasião. Rabo de gato, rabo de cão, hás-de perder nesta ocasião." E pronto, em pelo jogo das manteigas, ou de cima da mão, ou noutra qualquer parte do complexo jogo das pedrinhas, uma das pequenas bagas de eucalipto saltava para fora do alcance da mão e perdia-se. Era a vez de a adversária, que estivera a azarar entre dentes desde o início, pegar no jogo.
E contudo, eram inocentes estas lengalengas de azarar, posso eu garantir! Inocentes brincadeiras de crianças, para quem o azar se resumia a perder um jogo, repetido vezes sem fim, naquele tempo em que o tempo passava lentamente, com as estações do ano muito bem definidas, e cada uma delas com as suas próprias brincadeiras, ditadas, ou pela tradição, ou pelos recursos existentes na natureza, as plantas, os paus e as flores que serviam para brincar.
"Azara, azara, Maria da Clara." "Água salgada, peixinho do mar, hás-de perder quando eu mandar." "Rabo de gato, rabo de cão, hás-de perder, nesta ocasião." Há anos que não ouço estes dizeres de azar, parece que no mundo dos adultos ninguém azara ninguém. Os azares que passam a acontecer em coisas mais sérias do que um jogo das pedrinhas, devem ter outras fórmulas ocultas, ditas não sei por quem. Quem sabe, aquelas fórmulas da infância tenham crescido dentro da cabeça das pessoas, sem elas se aperceberem e se transformado noutras, mais poderosas e realmente eficazes? Na verdade, eu não acredito nessas coisas de sorte e de azar. Mas que há, há.
"Água salgada, peixinho do mar, hás-de perder, quando eu mandar. Água salgada, peixinho do mar, hás-de perder quando eu mandar. Água salgada, peixinho do mar, hás-de perder quando eu mandar." Lembro-me de estar no recreio da escola primária que funcionava por cima de uma venda no Pinheirinho, saltando à corda praticamente no terreiro da vizinha mais próxima, no balcãozinho que ficava por cima de outra venda, e ter tropeçado na corda e perdido logo, porque me azararam com esta lengalenga da água salgada, peixinho do mar.
"Rabo de gato, rabo de cão, hás-de perder, nesta ocasião. Rabo de gato, rabo de cão, hás-de perder, nesta ocasião. Rabo de gato, rabo de cão, hás-de perder nesta ocasião." E pronto, em pelo jogo das manteigas, ou de cima da mão, ou noutra qualquer parte do complexo jogo das pedrinhas, uma das pequenas bagas de eucalipto saltava para fora do alcance da mão e perdia-se. Era a vez de a adversária, que estivera a azarar entre dentes desde o início, pegar no jogo.
E contudo, eram inocentes estas lengalengas de azarar, posso eu garantir! Inocentes brincadeiras de crianças, para quem o azar se resumia a perder um jogo, repetido vezes sem fim, naquele tempo em que o tempo passava lentamente, com as estações do ano muito bem definidas, e cada uma delas com as suas próprias brincadeiras, ditadas, ou pela tradição, ou pelos recursos existentes na natureza, as plantas, os paus e as flores que serviam para brincar.
"Azara, azara, Maria da Clara." "Água salgada, peixinho do mar, hás-de perder quando eu mandar." "Rabo de gato, rabo de cão, hás-de perder, nesta ocasião." Há anos que não ouço estes dizeres de azar, parece que no mundo dos adultos ninguém azara ninguém. Os azares que passam a acontecer em coisas mais sérias do que um jogo das pedrinhas, devem ter outras fórmulas ocultas, ditas não sei por quem. Quem sabe, aquelas fórmulas da infância tenham crescido dentro da cabeça das pessoas, sem elas se aperceberem e se transformado noutras, mais poderosas e realmente eficazes? Na verdade, eu não acredito nessas coisas de sorte e de azar. Mas que há, há.