quinta-feira, fevereiro 03, 2005

Azara, azara, Maria da Clara....

"Azara, Azara, Maria da Clara. Azara, azara, Maria da Clara. Azara, azara, Maria da Clara". A fórmula, repetida continuamente e em tom um pouco baixo, acabava quase sempre por dar resultado, quer se tratasse do complicado jogo das pedrinhas, ou do mais simples saltar à corda. As palavras mágicas do azar eram usadas pelos adversários com a maior das naturalidades.
"Água salgada, peixinho do mar, hás-de perder, quando eu mandar. Água salgada, peixinho do mar, hás-de perder quando eu mandar. Água salgada, peixinho do mar, hás-de perder quando eu mandar." Lembro-me de estar no recreio da escola primária que funcionava por cima de uma venda no Pinheirinho, saltando à corda praticamente no terreiro da vizinha mais próxima, no balcãozinho que ficava por cima de outra venda, e ter tropeçado na corda e perdido logo, porque me azararam com esta lengalenga da água salgada, peixinho do mar.
"Rabo de gato, rabo de cão, hás-de perder, nesta ocasião. Rabo de gato, rabo de cão, hás-de perder, nesta ocasião. Rabo de gato, rabo de cão, hás-de perder nesta ocasião." E pronto, em pelo jogo das manteigas, ou de cima da mão, ou noutra qualquer parte do complexo jogo das pedrinhas, uma das pequenas bagas de eucalipto saltava para fora do alcance da mão e perdia-se. Era a vez de a adversária, que estivera a azarar entre dentes desde o início, pegar no jogo.
E contudo, eram inocentes estas lengalengas de azarar, posso eu garantir! Inocentes brincadeiras de crianças, para quem o azar se resumia a perder um jogo, repetido vezes sem fim, naquele tempo em que o tempo passava lentamente, com as estações do ano muito bem definidas, e cada uma delas com as suas próprias brincadeiras, ditadas, ou pela tradição, ou pelos recursos existentes na natureza, as plantas, os paus e as flores que serviam para brincar.
"Azara, azara, Maria da Clara." "Água salgada, peixinho do mar, hás-de perder quando eu mandar." "Rabo de gato, rabo de cão, hás-de perder, nesta ocasião." Há anos que não ouço estes dizeres de azar, parece que no mundo dos adultos ninguém azara ninguém. Os azares que passam a acontecer em coisas mais sérias do que um jogo das pedrinhas, devem ter outras fórmulas ocultas, ditas não sei por quem. Quem sabe, aquelas fórmulas da infância tenham crescido dentro da cabeça das pessoas, sem elas se aperceberem e se transformado noutras, mais poderosas e realmente eficazes? Na verdade, eu não acredito nessas coisas de sorte e de azar. Mas que há, há.


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