segunda-feira, janeiro 31, 2005
Quanto custa a cabrinha?
Lembro-me desta expressão quase todos os dias quando, depois de ler os jornais, me demoro nas páginas dos anúncios, lendo descrições e preços de casas.
Antes demorava-me só nas casas, mesmo casas, com quintal onde pudesse ter todos os meus vasos de flores e um jardim selvagem como o que tinha antes. Com o tempo, comecei a demorar os olhos também nos apartamentos com três quartos, onde pudesse voltar a ter "o quarto dos livros", como já tive.
Depois fecho os jornais e, com um sorriso leve, lembro-me da expressão do Ti Noé, que ouço desde criança e ainda há poucos dias a minha mãe usou, numa conversa telefónica com a minha tia que está na Austrália.
"Quanto custa a cabrinha?" A frase é atribuídda ao Ti Noé, que tinha o jeito de perguntar o preço de tudo, mesmo sem ter um tostão no bolso. Conta-se que um dia, com apenas dois mil e quinhentos na algibeira, cruzou-se com um homem que levava uma cabra e perguntou-lhe: "Quanto custa a cabrinha?" O Ti Noé não tinha a mínima possibilidade de a comprar mas perguntou o preço.
A história correu como corriam todas as histórias no tempo em que não havia televisão, nem livros, nem computadores, nem cinema, nem mais nada com que as pessoas se pudessem entreter.
Talvez o Ti Noé nunca tivesse sequer perguntado o preço de uma cabrinha. Depois de alguém se ter apercebido desse seu hábito de perguntar pelo preços de coisas que não podia comprar, é bem possível que tenha sido acrescentada a história da cabrinha, para tornar mais valioso o objecto, e, consequentemente, mais indicada a expressão para ser aplicada com propriedade em casos como o meu.
"Quanto custa a cabrinha?" Fecho as últimas páginas do jornal e sorrio para dentro. Está na hora de voltar à realidade.
Antes demorava-me só nas casas, mesmo casas, com quintal onde pudesse ter todos os meus vasos de flores e um jardim selvagem como o que tinha antes. Com o tempo, comecei a demorar os olhos também nos apartamentos com três quartos, onde pudesse voltar a ter "o quarto dos livros", como já tive.
Depois fecho os jornais e, com um sorriso leve, lembro-me da expressão do Ti Noé, que ouço desde criança e ainda há poucos dias a minha mãe usou, numa conversa telefónica com a minha tia que está na Austrália.
"Quanto custa a cabrinha?" A frase é atribuídda ao Ti Noé, que tinha o jeito de perguntar o preço de tudo, mesmo sem ter um tostão no bolso. Conta-se que um dia, com apenas dois mil e quinhentos na algibeira, cruzou-se com um homem que levava uma cabra e perguntou-lhe: "Quanto custa a cabrinha?" O Ti Noé não tinha a mínima possibilidade de a comprar mas perguntou o preço.
A história correu como corriam todas as histórias no tempo em que não havia televisão, nem livros, nem computadores, nem cinema, nem mais nada com que as pessoas se pudessem entreter.
Talvez o Ti Noé nunca tivesse sequer perguntado o preço de uma cabrinha. Depois de alguém se ter apercebido desse seu hábito de perguntar pelo preços de coisas que não podia comprar, é bem possível que tenha sido acrescentada a história da cabrinha, para tornar mais valioso o objecto, e, consequentemente, mais indicada a expressão para ser aplicada com propriedade em casos como o meu.
"Quanto custa a cabrinha?" Fecho as últimas páginas do jornal e sorrio para dentro. Está na hora de voltar à realidade.
quinta-feira, janeiro 27, 2005
Rã, rã, vai p'ra serra ou p'ró mar
"Já sei, vou ser uma joaninha!" A composição exigia que as crianças imaginassem ser uma animal pequenino e ela escolheu ser uma joaninha. Escreveu que seria vermelha com bolinhas negras e que gostaria de viver num lindo jardim, colorido e perfumado.
Então eu lembrei-me. Quando era criança, chamávamos rãzinhas às joaninhas. E quando encontrávamos uma, nalguma flor ou folha das abundantes plantas do quintal, era uma alegria! Segurávamos a rãzinha na ponta do dedo e repetíamos a lenga-lenga que a minha mãe nos tinha ensinado: "Rã, rã, vai p'ra serra ou p'ró mar, senão eu vou pegar numa faquinha e vou-te matar." Esperávamos caladas, quase apreensivas, para ver qual a rota de voo escolhida. Desse rumo dependia o nosso futuro. A direcção escolhida pela rãzinha seria também a direcção do nosso destino.
O mesmo resultado obtinham as raparigas solteiras, quando soltavam um zangão na manhã de São João, depois de o ter deixado prisioneiro durante toda a noite dentro de uma flor de aboboreira, ou "abobareira", como se dizia. A direcção tomada pelo zangão indicava o local onde a rapariga teria o seu futuro lar, onde se estabeleceria com o marido, caso não ficasse para tia.
À minha mãe aconteceu certa vez que o zangão, entontecido pelas longas horas dentro da folha de aboboreira, ensaiou um pequeno voo e quedou-se, sem mais se mexer, no poio à frente da casa dos meus avós. A minha mãe conta que ficou muito triste, por ver assim o seu zangão, enquanto o das outras raparigas tinha voado para lá do alcance da vista, para o lado do mar por onde mais tarde embarcaram para a Venezuela ou para a Austrália. A verdade é que a minha mãe casou e fez casa, precisamente num poio à frente da dos meus avós, a poucos metros do local onde o zangão ficou, imóvel.
Nunca fiz o ritual do zangão na manhã de São João. Mas a todas as joaninhas (ou rãzinhas no dizer da minha mãe) que encontrei durante a infância, ameacei de morte com uma faquinha, apesar de me parecer que as pobrezinhas não mereciam aquilo.
Então eu lembrei-me. Quando era criança, chamávamos rãzinhas às joaninhas. E quando encontrávamos uma, nalguma flor ou folha das abundantes plantas do quintal, era uma alegria! Segurávamos a rãzinha na ponta do dedo e repetíamos a lenga-lenga que a minha mãe nos tinha ensinado: "Rã, rã, vai p'ra serra ou p'ró mar, senão eu vou pegar numa faquinha e vou-te matar." Esperávamos caladas, quase apreensivas, para ver qual a rota de voo escolhida. Desse rumo dependia o nosso futuro. A direcção escolhida pela rãzinha seria também a direcção do nosso destino.
O mesmo resultado obtinham as raparigas solteiras, quando soltavam um zangão na manhã de São João, depois de o ter deixado prisioneiro durante toda a noite dentro de uma flor de aboboreira, ou "abobareira", como se dizia. A direcção tomada pelo zangão indicava o local onde a rapariga teria o seu futuro lar, onde se estabeleceria com o marido, caso não ficasse para tia.
À minha mãe aconteceu certa vez que o zangão, entontecido pelas longas horas dentro da folha de aboboreira, ensaiou um pequeno voo e quedou-se, sem mais se mexer, no poio à frente da casa dos meus avós. A minha mãe conta que ficou muito triste, por ver assim o seu zangão, enquanto o das outras raparigas tinha voado para lá do alcance da vista, para o lado do mar por onde mais tarde embarcaram para a Venezuela ou para a Austrália. A verdade é que a minha mãe casou e fez casa, precisamente num poio à frente da dos meus avós, a poucos metros do local onde o zangão ficou, imóvel.
Nunca fiz o ritual do zangão na manhã de São João. Mas a todas as joaninhas (ou rãzinhas no dizer da minha mãe) que encontrei durante a infância, ameacei de morte com uma faquinha, apesar de me parecer que as pobrezinhas não mereciam aquilo.
quarta-feira, janeiro 26, 2005
Eu não matei o pintainho
"Eu não matei o pintainho". Esta expressão pertence a uma espécie de código privado, que só é entendido por elementos da minha família ou alguns vizinhos e amigos chegados. É a forma que usamos para nos acusarmos a nós proprios de algum erro cometido: "Eu não matei o pintainho". O responsável pelo nascimento deste dito familiar foi o meu tio João, o mais novo irmão da minha mãe.
O tio João era imaginativo e aventureiro, a curiosidade em pessoa. Estava sempre a inventar. A história que deu à luz esta expressão, aconteceu num dia em que não estava mais ninguém em casa, ou talvez estivesse uma tia, empenhada em terminar algum bordado com pressa. O meu avô devia ter ido para o trabalho nos pinheiros, a minha avó a casa dos pais nalguma volta importante, a minha mãe talvez tivesse ido com o comer. Enfim, ele apanhou-se sozinho e decidiu explorar a forma de vida de uma ninhada de pintos, que andava pelo quintal atrás da galinha, debicando folhas de couve e restos de comida. Curioso, foi-lhes seguindo os passos e a certa altura decidiu ajudar um dos pintos a beber água, do bocado de folha destinado a esse fim. Apertou-o na mão, meteu-lhe o bico na água e só o retirou quando pensou que ele tinha bebido o suficiente. O pintainho estava morto, coitado.
Assim que os adultos chegaram a casa, vinham ainda no canto de terreiro, o tio João disse-lhes: "Eu não matei o pintainho", denunciando-se ainda antes de alguém ter reparado no pobrezinho do bicho, morto ao lado do recipiente da água.
O tio João era imaginativo e aventureiro, a curiosidade em pessoa. Estava sempre a inventar. A história que deu à luz esta expressão, aconteceu num dia em que não estava mais ninguém em casa, ou talvez estivesse uma tia, empenhada em terminar algum bordado com pressa. O meu avô devia ter ido para o trabalho nos pinheiros, a minha avó a casa dos pais nalguma volta importante, a minha mãe talvez tivesse ido com o comer. Enfim, ele apanhou-se sozinho e decidiu explorar a forma de vida de uma ninhada de pintos, que andava pelo quintal atrás da galinha, debicando folhas de couve e restos de comida. Curioso, foi-lhes seguindo os passos e a certa altura decidiu ajudar um dos pintos a beber água, do bocado de folha destinado a esse fim. Apertou-o na mão, meteu-lhe o bico na água e só o retirou quando pensou que ele tinha bebido o suficiente. O pintainho estava morto, coitado.
Assim que os adultos chegaram a casa, vinham ainda no canto de terreiro, o tio João disse-lhes: "Eu não matei o pintainho", denunciando-se ainda antes de alguém ter reparado no pobrezinho do bicho, morto ao lado do recipiente da água.
Deu-me uma reina
Estava no Porto Santo, a fazer tempo, vendo sem realmente ver produtos espalhados numa loja, quando ouvi sem querer parte de uma conversa entre duas mulheres, uma por dentro do balcão, a outra por fora, no lugar de freguesa. "Deu-lhe uma reina!" Do episódio que comentavam, e que não me lembro qual era, esta foi a frase que me chamou a atenção. Daí a pouco, a mulher repetiu, no seguimento da história: "Ele reinou!"
Dei por bem empregue o tempo que ali passei sem fazer nada, só a olhar para coisas que não me interessavam. Ao tempo que não ouvia aquela palavra! "Deu-lhe uma reina". "Ele reinou". Sorri sozinha e saí contente da loja, deixando-as com os restantes pormenores do episódio. Em criança, esses eram os termos que utilizava quando queria dizer zangar-se ou chatear-se. Gostei de saber que alguém ainda usa essas palavras, mesmo que seja um pouco longe de mim, na outra ilha.
Ontem foi a minha vez de reinar. E que reina me deu! O motivo foi uma birra da minha filha, daquelas que não sabemos como controlar, porque também temos a nossa parte de culpa. Entre a urgência de acabar com a cena, e a tendência do coração de querer consolá-la, porque fui eu que lhe estraguei, sem querer, a prisão de cabelo preferida, vi-me dominada por uma reina. Reinei com ela. Reinei e coloquei-a de castigo porque estava farta de explicar-lhe que não foi de propósito e de prometer-lhe que lhe compraria outra, o mais parecida possível, acaso já não houvesse na loja nenhuma exactamente igual, mas ela não me ouvia sequer e continuava a chorar aquela perda, como se tivesse perdido a coisa mais importante do mundo. Mas que reina!
Reinei e de que maneira! Tive a oportunidade de usar a velha palavra tão comum nos dias da infância. Preferia, no entanto, ter-me ficado pela memória leve trazida pelos pedacinhos de história que ouvi sem querer numa loja do Porto Santo, enquanto olhava para coisas amontoadas em prateleiras, só para fazer tempo.
Dei por bem empregue o tempo que ali passei sem fazer nada, só a olhar para coisas que não me interessavam. Ao tempo que não ouvia aquela palavra! "Deu-lhe uma reina". "Ele reinou". Sorri sozinha e saí contente da loja, deixando-as com os restantes pormenores do episódio. Em criança, esses eram os termos que utilizava quando queria dizer zangar-se ou chatear-se. Gostei de saber que alguém ainda usa essas palavras, mesmo que seja um pouco longe de mim, na outra ilha.
Ontem foi a minha vez de reinar. E que reina me deu! O motivo foi uma birra da minha filha, daquelas que não sabemos como controlar, porque também temos a nossa parte de culpa. Entre a urgência de acabar com a cena, e a tendência do coração de querer consolá-la, porque fui eu que lhe estraguei, sem querer, a prisão de cabelo preferida, vi-me dominada por uma reina. Reinei com ela. Reinei e coloquei-a de castigo porque estava farta de explicar-lhe que não foi de propósito e de prometer-lhe que lhe compraria outra, o mais parecida possível, acaso já não houvesse na loja nenhuma exactamente igual, mas ela não me ouvia sequer e continuava a chorar aquela perda, como se tivesse perdido a coisa mais importante do mundo. Mas que reina!
Reinei e de que maneira! Tive a oportunidade de usar a velha palavra tão comum nos dias da infância. Preferia, no entanto, ter-me ficado pela memória leve trazida pelos pedacinhos de história que ouvi sem querer numa loja do Porto Santo, enquanto olhava para coisas amontoadas em prateleiras, só para fazer tempo.
terça-feira, janeiro 25, 2005
Apilhagem
"Hoje brincámos às apanhadas no recreio!" Vinha ainda a arfar e com o rosto muito vermelho, de tanta correria. "Apanhadas?" Não consegui evitar dizer o nome do jogo, que deve ser dos jogos mais antigos do mundo, e que todas as crianças do mundo devem conhecer, de tão elementares as regras, dando-lhe um tom interrogativo. "É claro que sei qual é o jogo das apanhadas, filha. Mas no meu tempo chamava-se jogo da apilhagem."
"Apilhagem?" Agora foi a vez de ela repetir esta palavra num tom interrogativo, mas que mostrava sobretudo estranheza. "Apilhagem, mãe? Chamavas apilhagem ao jogo das apanhadas?" É verdade. Eu nunca brinquei às apanhadas, mas fartei-me de brincar à apilhagem. Expliquei-lhe que apilhagem vem de apilhar, que significa agarrar, apanhar de surpresa, alcançar, enfim, aquilo que de facto se faz no jogo.
"Não me apilhas, não me apilhas, não me apilhas". Para irritar quem tinha ficado com a incumbência de apilhar, dávamo-nos ao trabalho de repetir vezes sem fim este "não me apilhas", no melhor tom de desafio que conseguíssemos fazer soar.
A apilhagem nem sequer dos meus jogos preferidos, por ser o mais simples, aquele a que se brincava quando não nos conseguíamos lembrar de mais nenhum jogo, numa espécie de descanso de tantos jogos que sabíamos. A apilhagem era o jogo de que menos gostava mas fiquei com saudades, quando me vi apanhada, apilhada, melhor dizendo, pela surpresa de lhe terem mudado o nome assim, sem aviso, em tão curto espaço de tempo. Parece que foi mesmo há dias; aquintrodia eu ainda brincava à apilhagem e agora a minha filha brinca às apanhadas.
Agora ela já sabe o que é apilhagem e eu também sei o que é o jogo das apanhadas. Talvez deva olhar para esta evolução como um enriquecimento e não como uma perda. Mas custa-me. Apilhagem soava melhor. Apilhar dá muito mais jeito do que apanhar.
"Apilhagem?" Agora foi a vez de ela repetir esta palavra num tom interrogativo, mas que mostrava sobretudo estranheza. "Apilhagem, mãe? Chamavas apilhagem ao jogo das apanhadas?" É verdade. Eu nunca brinquei às apanhadas, mas fartei-me de brincar à apilhagem. Expliquei-lhe que apilhagem vem de apilhar, que significa agarrar, apanhar de surpresa, alcançar, enfim, aquilo que de facto se faz no jogo.
"Não me apilhas, não me apilhas, não me apilhas". Para irritar quem tinha ficado com a incumbência de apilhar, dávamo-nos ao trabalho de repetir vezes sem fim este "não me apilhas", no melhor tom de desafio que conseguíssemos fazer soar.
A apilhagem nem sequer dos meus jogos preferidos, por ser o mais simples, aquele a que se brincava quando não nos conseguíamos lembrar de mais nenhum jogo, numa espécie de descanso de tantos jogos que sabíamos. A apilhagem era o jogo de que menos gostava mas fiquei com saudades, quando me vi apanhada, apilhada, melhor dizendo, pela surpresa de lhe terem mudado o nome assim, sem aviso, em tão curto espaço de tempo. Parece que foi mesmo há dias; aquintrodia eu ainda brincava à apilhagem e agora a minha filha brinca às apanhadas.
Agora ela já sabe o que é apilhagem e eu também sei o que é o jogo das apanhadas. Talvez deva olhar para esta evolução como um enriquecimento e não como uma perda. Mas custa-me. Apilhagem soava melhor. Apilhar dá muito mais jeito do que apanhar.
segunda-feira, janeiro 24, 2005
Pêras-melãs
A minha mãe desmanchou a lapinha e eu comi as pêras-melãs que a tinham enfeitado durante todo o Natal. Que delícia! Confirma-se a ideia que alimentei desde criança: as frutas colocadas na lapinha, para o menino Jesus, adquirem outro sabor. Um sabor mágico, inigualável. Naquele momento, pensei que nunca tinha provado nada tão delicioso. Saboreando as pêras -melãs, fechei os olhos e regressei ao quarto onde a minha avó tinha a lapinha.
Ela costumava fazê-la sobre a cômoda do "quarto-de-fora". No centro colocava o menino Jesus, dentro de uma campânula de vidro, com um vestido de renda e um colar de ouro, com muitas voltas, onde estava pendurada uma fotografia do meu avô, quando jovem. Ao lado do menino ficavam os solitários enfeitados com verdura, ensaião e junquilhos, que enchiam toda a casa com um cheiro forte. Depois, sobre a toalha branca, de renda à ponta, espalhavam-se as vasilhas do triguinho, algumas fotografias e postais, cabrinhas e fruta: pêros encarnados, nozes, castanhas, anonas, pêras-melãs. À frente do menino, em lugar de destaque, ficava a lamparina de azeite, que a minha avó tinha o cuidado de nunca deixar apagar-se.
No dia de Festa, depois do almoço de carne-de-vinho-e-alhos, ela ordenava que fôssemos agradecer ao Menino Jesus. Lembro-me de entrar, sozinha, na penumbra do quarto, por entre o cheiro dos junquilhos e dos frutos, da cera do chão e do lavado das cortinas, e ajoelhar-me à frente da cômoda. Era um lindo momento de recolhimento, como não me lembro de ter voltado a experimentar.
Durante todo o Natal namorávamos os frutos da lapinha. Lembro-me de ter roubado alguns, numa espécie de negociação com o Menino Jesus, por vezes colocando no lugar dos frutos outros parecidos, ou então alargando o espaço entre todos, para disfarçar a falta. Aqueles peros já murchos tinham outro sabor. Fiquei com esse sabor gravado na memória, mas nunca mais me tinha lembrado dele.
E de repente, vejo a minha mãe a tirar da lapinha pêros encarnados e pêras-melãs, colocando-os sobre a mesa, enquanto dobrava o papel pintado que formara a rochinha. A minha mãe não tem cômoda e a lapinha sempre foi assim, uma rochinha com pinheiro por trás, colocada num canto do quarto que serve de sala de visitas. Depois, começou a guardar numa caixa, embrulhando-as em papel, as figurinhas do presépio, pequenas, um pouco toscas, com muitos natais cumpridos. Peguei nas pêras-melãs, com o vermelho já desbotado, murchas, aqui e além com algumas manchas mais escuras ou claras. Afinal, é verdade: o sabor diferente dos frutos da lapinha não é apenas uma ilusão guardada do passado. É verdade.
Falta-me apenas esclarecer uma coisa. Pêras-melãs são tomates ingleses. É assim que a maioria das pessoas chama a esse fruto, e é esse nome que aparece escrito no mercado, nos cestos em que se encontram à venda. Pois para mim, aqueles frutos sempre tiveram o nome de pêras-melãs e ninguém me sabe explicar porquê. Temos um pereira-melã encarnada (existe uma variedade que dá os frutos mais alaranjados) um pouco abaixo do quintal, na roda do ribeiro. Dá os frutos no Natal, e são eles que mais alegram o presépio. O sabor das pêras-melãs retiradas da lapinha da minha mãe, tranformou este final de festa numa experiência maravilhosa. Já tenho saudades do próximo.
Ela costumava fazê-la sobre a cômoda do "quarto-de-fora". No centro colocava o menino Jesus, dentro de uma campânula de vidro, com um vestido de renda e um colar de ouro, com muitas voltas, onde estava pendurada uma fotografia do meu avô, quando jovem. Ao lado do menino ficavam os solitários enfeitados com verdura, ensaião e junquilhos, que enchiam toda a casa com um cheiro forte. Depois, sobre a toalha branca, de renda à ponta, espalhavam-se as vasilhas do triguinho, algumas fotografias e postais, cabrinhas e fruta: pêros encarnados, nozes, castanhas, anonas, pêras-melãs. À frente do menino, em lugar de destaque, ficava a lamparina de azeite, que a minha avó tinha o cuidado de nunca deixar apagar-se.
No dia de Festa, depois do almoço de carne-de-vinho-e-alhos, ela ordenava que fôssemos agradecer ao Menino Jesus. Lembro-me de entrar, sozinha, na penumbra do quarto, por entre o cheiro dos junquilhos e dos frutos, da cera do chão e do lavado das cortinas, e ajoelhar-me à frente da cômoda. Era um lindo momento de recolhimento, como não me lembro de ter voltado a experimentar.
Durante todo o Natal namorávamos os frutos da lapinha. Lembro-me de ter roubado alguns, numa espécie de negociação com o Menino Jesus, por vezes colocando no lugar dos frutos outros parecidos, ou então alargando o espaço entre todos, para disfarçar a falta. Aqueles peros já murchos tinham outro sabor. Fiquei com esse sabor gravado na memória, mas nunca mais me tinha lembrado dele.
E de repente, vejo a minha mãe a tirar da lapinha pêros encarnados e pêras-melãs, colocando-os sobre a mesa, enquanto dobrava o papel pintado que formara a rochinha. A minha mãe não tem cômoda e a lapinha sempre foi assim, uma rochinha com pinheiro por trás, colocada num canto do quarto que serve de sala de visitas. Depois, começou a guardar numa caixa, embrulhando-as em papel, as figurinhas do presépio, pequenas, um pouco toscas, com muitos natais cumpridos. Peguei nas pêras-melãs, com o vermelho já desbotado, murchas, aqui e além com algumas manchas mais escuras ou claras. Afinal, é verdade: o sabor diferente dos frutos da lapinha não é apenas uma ilusão guardada do passado. É verdade.
Falta-me apenas esclarecer uma coisa. Pêras-melãs são tomates ingleses. É assim que a maioria das pessoas chama a esse fruto, e é esse nome que aparece escrito no mercado, nos cestos em que se encontram à venda. Pois para mim, aqueles frutos sempre tiveram o nome de pêras-melãs e ninguém me sabe explicar porquê. Temos um pereira-melã encarnada (existe uma variedade que dá os frutos mais alaranjados) um pouco abaixo do quintal, na roda do ribeiro. Dá os frutos no Natal, e são eles que mais alegram o presépio. O sabor das pêras-melãs retiradas da lapinha da minha mãe, tranformou este final de festa numa experiência maravilhosa. Já tenho saudades do próximo.
terça-feira, janeiro 18, 2005
Vai cair algum burro da rocha em baixo
No espaço de dois ou três dias, ouvi algumas vezes esta expressão. Uma das vezes, fui eu própria a pronunciá-la, de forma automática, perante uma caso qualquer que merecia verdadeiro espanto. "Vai cair algum burro da rocha em baixo" é a maneira mais popular de mostrar espanto perante algo muito pouco provável de acontecer mas que vemos acontecer. Quando me saiu a expressão, estava na mesma conversa uma amiga, cuja família é originária de São Vicente. Ela achou engraçada a minha maneira de me espantar porque na terra dos avós e dos pais diz-se simplesmente: "Vai azougar algum burro." Na costa Norte da ilha o burro azouga ou azoiga (já ouvi as duas maneiras de pronunciar esse verbo que substitui o verbo morrer quando se trata de animais, em vez de pessoas); na costa sul também, mas acrescenta-se o pormenor do método: a queda por uma rocha abaixo." No dia seguinte, outra amiga, nascida no Porto, norte do País, disse-me que na terra dela se diz, para mostrar o mesmo espanto: "Vai cair alguma vaca do céu." Na terra dela há poucas vacas. E na Madeira penso que também nunca houve muitos burros. Animais, claro está. Devem estar todos trasnformados em pessoas. Penso que esta deve ser a explicação. O facto de se usar na expressão um animal raro na localidade, é uma boa maneira de mostrar esse tal espanto perante o improvavél que acaba por acontecer.
segunda-feira, janeiro 17, 2005
Bolo atravessado
Cumprindo a velha tradição, andei a "varrer os armários" na véspera do Santo Amaro, integrada num grupo que todos os anos costuma ir à minha casa na noite de 14 para 15 de Janeiro. Um grupo pequeno, no total dez pessoas entre adultos e crianças. Pusémos aventais, e não esquecemos as vassouras, tachos e pás, para além de castanholas e pandeiros, para acompanhar as quadros ao santo. "Vimos varrer a lapinha/ abri-nos a porta senhora/trazemos connosco a pá/ e também uma vassoura." Outra: "Nós viemos do Caniço/mesmo da terra dos alhos/ trazemos a vassourinha/ para varrer os armários".
Em casa da dona Maria José, as primeiras cantigas soaram no canto do terreiro, com este a parecer de repente muito pequeno, na penumbra da noite, com tanta gente arrumada por entre os cântaros de begónias e de azáleas. Não demoraram nada a abrir a porta e por isso o resto das cantigas já foram cantadas dentro de casa. "Vimos varrer os armários/não é por vinho nem pão/só queremos no Caniço/manter esta tradição." Ainda tinham a lapinha e um jarra cheia de ensaião da festa.
Depois dos cumprimentos, a dona Maria José foi até à cozinha e trouxe uma bandeja com copos de sumo e com bolo. Perguntei que bolo era e ela respondeu: "É bolo atravessado." "- Bolo atravessado?" "- Sim, é uma mistura." O bolo era uma delícia. Tinha passas e outros frutos e uma cor castanha clara; era muito mais claro do que todas as variedades de bolo preto que conheço. O bolo era, de facto, "atravessado". Deve ter sido o resultado de uma ideia daqui, uma dali, dependendo em grande parte dos ingredientes disponíveis no momento.
Lembrei-me das raças "atravessadas" que se diz dos animais que resultam do cruzamento de duas raças diferentes. Afinal, o termo não se fica por aí. Até um simples bolo pode ser "atravessado".
Aquele "bolo atravessado" foi do melhor desta noite de Santo Amaro, tirando a graça do que aconteceu a seguir, em que a dona da casa já estava de pijama e preparada para meter-se na cama, quando lhe chegámos à porta.
sexta-feira, janeiro 14, 2005
Para quem é, bacalhau basta!
A expressão saiu-me a propósito de uma conversa que agora não interessa para nada, mas só depois de a dizer é que me apercebi de como está desactualizada. "Para quem é, bacalhau basta!"
Antigamente, o bacalhau era um produto barato, acessível aos menos abonados. Lembro-me de haver bacalhau quase todos os dias, para o almoço ou até para o jantar ou para ceia. O bacalhau era cozido às postas, depois feitas em bocados mais pequenos dentro de um prato, e regado com azeite, vinagre, salsa, alho e cebola, escaldada para lhe tirar o forte. Ao almoço, metia-se o bacalhau com molho dentro de um quarto de pão, e toca a comê-lo, acompanhado com café preto, de cevada. Ao jantar, costumava ser o conduto para acompanhar o milho, ainda quente, frio, cortado aos bocados, ou frito. Pelo São Martinho, não podia faltar o bacalhau assado nas brasas.
Com o passar dos anos, porém, o bacalhau tornou-se quase num produto de luxo, acessível apenas às bolsas mais fartas, ou reservado para ocasiões especiais, talvez mais amiude em casas remediados, por um hábito adquirido do passado e por dar jeito ter sempre em casa, ainda que apenas um bocadinho desse conduto de fácil preparação, mesmo que do mais fininho.
Alterou-se o preço do bacalhau, mudaram os hábitos alimentares, mas a expressão continua a ser esta: "Para quem é, bacalhau basta!" E quer dizer, muito simplesmente, que para a pessoa em causa, mais não é preciso. Ou por a pessoa não merecer mais, ou por se contentar com pouco, ou apenas por ser o mais indicado à sua condição.
"Para quem é, bacalhau basta!" Hei-de continuar a usar a expressão genuína, tal como a aprendi. Neste caso, quando em causa está a sobrevivência de uma expressão da nossa cultura popular, bacalhau não basta.
Antigamente, o bacalhau era um produto barato, acessível aos menos abonados. Lembro-me de haver bacalhau quase todos os dias, para o almoço ou até para o jantar ou para ceia. O bacalhau era cozido às postas, depois feitas em bocados mais pequenos dentro de um prato, e regado com azeite, vinagre, salsa, alho e cebola, escaldada para lhe tirar o forte. Ao almoço, metia-se o bacalhau com molho dentro de um quarto de pão, e toca a comê-lo, acompanhado com café preto, de cevada. Ao jantar, costumava ser o conduto para acompanhar o milho, ainda quente, frio, cortado aos bocados, ou frito. Pelo São Martinho, não podia faltar o bacalhau assado nas brasas.
Com o passar dos anos, porém, o bacalhau tornou-se quase num produto de luxo, acessível apenas às bolsas mais fartas, ou reservado para ocasiões especiais, talvez mais amiude em casas remediados, por um hábito adquirido do passado e por dar jeito ter sempre em casa, ainda que apenas um bocadinho desse conduto de fácil preparação, mesmo que do mais fininho.
Alterou-se o preço do bacalhau, mudaram os hábitos alimentares, mas a expressão continua a ser esta: "Para quem é, bacalhau basta!" E quer dizer, muito simplesmente, que para a pessoa em causa, mais não é preciso. Ou por a pessoa não merecer mais, ou por se contentar com pouco, ou apenas por ser o mais indicado à sua condição.
"Para quem é, bacalhau basta!" Hei-de continuar a usar a expressão genuína, tal como a aprendi. Neste caso, quando em causa está a sobrevivência de uma expressão da nossa cultura popular, bacalhau não basta.
quarta-feira, janeiro 12, 2005
Fadestinha!
"Está uma fadestinha!" É esta expressão que me apetece utilizar sempre que me perguntam como está a minha filha. Mas normalmente respondo que está bem de saúde, que tem bons resultados na escola, que está a gostar das aulas de música, ou simplesmente que está muito crescida. Resumindo tudo numa frase, a verdade é que ela "está uma fadestinha".
Não uso a expressão talvez por pensar que algumas pessoas não a irão entender. Mas envergonho-me de não o fazer. Se todos fizerem como eu, mais dia, menos dia, ninguém saberá o significado de "fadestinha". "Fadestinha" é algo bonito, agradável à vista, que está bem; já ouvi a expressão tanto para pessoas como para outros objectos.
Pois bem, a minha filha "está uma fadestinha" e por isso esqueço tudo o resto, tudo o que, vendo bem, são problemas sem a mínima importância. Tudo o que me interessa é ela estar assim, uma "fadestinha".
Não uso a expressão talvez por pensar que algumas pessoas não a irão entender. Mas envergonho-me de não o fazer. Se todos fizerem como eu, mais dia, menos dia, ninguém saberá o significado de "fadestinha". "Fadestinha" é algo bonito, agradável à vista, que está bem; já ouvi a expressão tanto para pessoas como para outros objectos.
Pois bem, a minha filha "está uma fadestinha" e por isso esqueço tudo o resto, tudo o que, vendo bem, são problemas sem a mínima importância. Tudo o que me interessa é ela estar assim, uma "fadestinha".
segunda-feira, janeiro 10, 2005
Estar com uma cagança
Talvez pensem que estou "com uma cagança". "Estar com uma cagança" significa estar com vaidade, mostrar-se orgulhoso com algum feito ou algum facto. Fui uma das nomeadas na categoria de literatura para a gala RTP/Diário. Devia "estar com uma cagança", então não? Noutras circunstâncias até estaria. Neste caso, porém, propõem ao povo que compare o incomparável. Quatro escritores profissionais, com carreiras longas, consolidadas e reconhecidas pela crítica nacional, ao lado de uma simples amadora da escrita, com dois pequenos livros publicados, que não ultrapassaram as fronteiras da ilha. Depois da surpresa inicial, fiquei bastante preocupada e até assustada com uma possível vitória porque, afinal, o método de selecção acaba por basear-se na popularidade e não no mérito literário.
Agora estou mais calma. Tudo pode ter um lado positivo e talvez ainda venha a descobri-lo também neste caso. Talvez, lá por dentro, até esteja a sentir a tal "cagança" que é normal as pessoas sentirem quando são reconhecidas.
Agora estou mais calma. Tudo pode ter um lado positivo e talvez ainda venha a descobri-lo também neste caso. Talvez, lá por dentro, até esteja a sentir a tal "cagança" que é normal as pessoas sentirem quando são reconhecidas.
quinta-feira, janeiro 06, 2005
Bicuétx!
Ontem devia ter havido silêncio em memória das incontáveis vítimas do maremoto na Ásia. Mas os jornais dizem que a maioria das pessoas se esqueceu. Eu sabia e também não cumpri. Só me lembrei à noite, quando a minha filha me contou que ao meio-dia todos os meninos da escola, professores e empregados se reuniram no pátio da escola e ficaram três minutos em silêncio. Todos muito tristes, contou-me.
Foi a propósito de silêncio que me lembrei da palabra "bicuétx", que era a forma que antigamente se usava para mandar calar alguém. Em criança, obedeci muitas vezes ao silêncio imposto pela palavra "bicuétx", uma infulência do inglês "be quiet", assim transporto para a nossa língua pelos emigrantes. Parece-me que a palavra foi esquecida e que agora se diz apenas "cala-te". Será que ainda se diz "bico calado"?
De qualquer forma, eu tenho saudades é da palavra "bicuétx". Quem dera que alguém ma dissesse sempre que eu estivesse a falar demais. "Bicuétx". Nunca é tarde para o silêncio. Hoje vou dizer-me a mim mesma a palavra mágica e ficarei em silêncio em memória dos que morreram e com tristeza pelos que sobreviveram.
Foi a propósito de silêncio que me lembrei da palabra "bicuétx", que era a forma que antigamente se usava para mandar calar alguém. Em criança, obedeci muitas vezes ao silêncio imposto pela palavra "bicuétx", uma infulência do inglês "be quiet", assim transporto para a nossa língua pelos emigrantes. Parece-me que a palavra foi esquecida e que agora se diz apenas "cala-te". Será que ainda se diz "bico calado"?
De qualquer forma, eu tenho saudades é da palavra "bicuétx". Quem dera que alguém ma dissesse sempre que eu estivesse a falar demais. "Bicuétx". Nunca é tarde para o silêncio. Hoje vou dizer-me a mim mesma a palavra mágica e ficarei em silêncio em memória dos que morreram e com tristeza pelos que sobreviveram.
terça-feira, janeiro 04, 2005
O num-num
A minha filha nunca teve um num-num. Tem um quarto cheio de brinquedos, alguns até estão guardados em caixas debaixo da cama e outros dispersos pelas casas dos avós. Com muitos desses brinquedos ela nem sequer brinca ou brincou uma ou duas vezes e depois simplesmente nunca mais se lembrou deles. São demasiado sofisticados, são brinquedos perfeitos, que já fazem tudo e não deixam muita margem para a imaginação.
Tenho a certeza que ela ficaria feliz se tivesse um num-num. Talvez lhe desse mais valor. Talvez brincasse até ele se estragar e ela ficar triste e querer outro. Talvez fizesse questão de aprender a fazer um, mesmo que nas primeiras tentativas não resultasse. Talvez gostasse até de ir procurar a cana ideal para fazer esse pequeno brinquedo mágico. O num-num não é só um brinquedo, é também um instrumento musical.
Basta ir à procura de uma cana de tamanho médio, verde, cortá-la e trazê-la para casa. Depois é preciso escolher a parte melhor para o num-num e cortá-la, deixando de um lado um dos nós, para ficar tapado desse lado. A seguir vem a parte mais importante, a que requer mais ciência e da qual vai depender a eficácia do instrumento. Com a ajuda de uma faca, vai-se cortanto numa das faces da cana lascas fininhas, tão fininhas que não permitam que se rompa a membrana que fica no interior. É uma membrana branca, muito fina e sensível. É ela que vai fazer a música. E está pronto o num-num.
Para tocar, é muito simples, não é preciso saber as notas musicais. Basta colocar a boca sobre essa membrana fina e ir fazendo o som da música que se quer tocar. Funciona muito bem, garanto eu, que fiz dezenas ou talvez centenas de num-nums durante toda a minha infância e deliciei-me com esse brinquedo-instrumento, como talvez não me tenho deliciado com nenhum outro.
Está decidido: vou fazer um num-num para a minha filha. Não sei onde, mas se procurarmos bem, talvez ainda haja nas redondezas algum ribeiro com canas, talvez alguma delas seja perfeita para um num-num. Está decidido. Vamos fazer um num-num. De certeza que ela vai gostar de fabricar um brinquedo, que não venha com caixa, etiquetas, instruções, pilhas e garantia. Talvez ela goste que tudo dependa de nós, da nossa perícia, e da nossa persistência, porque muitas vezes corta-se sem querer a membrana e lá se vai o num-num, antes de ter emitido qualquer som.
Vamos fazer um num-num. Mesmo que ela não goste assim tanto, eu vou adorar.
Tenho a certeza que ela ficaria feliz se tivesse um num-num. Talvez lhe desse mais valor. Talvez brincasse até ele se estragar e ela ficar triste e querer outro. Talvez fizesse questão de aprender a fazer um, mesmo que nas primeiras tentativas não resultasse. Talvez gostasse até de ir procurar a cana ideal para fazer esse pequeno brinquedo mágico. O num-num não é só um brinquedo, é também um instrumento musical.
Basta ir à procura de uma cana de tamanho médio, verde, cortá-la e trazê-la para casa. Depois é preciso escolher a parte melhor para o num-num e cortá-la, deixando de um lado um dos nós, para ficar tapado desse lado. A seguir vem a parte mais importante, a que requer mais ciência e da qual vai depender a eficácia do instrumento. Com a ajuda de uma faca, vai-se cortanto numa das faces da cana lascas fininhas, tão fininhas que não permitam que se rompa a membrana que fica no interior. É uma membrana branca, muito fina e sensível. É ela que vai fazer a música. E está pronto o num-num.
Para tocar, é muito simples, não é preciso saber as notas musicais. Basta colocar a boca sobre essa membrana fina e ir fazendo o som da música que se quer tocar. Funciona muito bem, garanto eu, que fiz dezenas ou talvez centenas de num-nums durante toda a minha infância e deliciei-me com esse brinquedo-instrumento, como talvez não me tenho deliciado com nenhum outro.
Está decidido: vou fazer um num-num para a minha filha. Não sei onde, mas se procurarmos bem, talvez ainda haja nas redondezas algum ribeiro com canas, talvez alguma delas seja perfeita para um num-num. Está decidido. Vamos fazer um num-num. De certeza que ela vai gostar de fabricar um brinquedo, que não venha com caixa, etiquetas, instruções, pilhas e garantia. Talvez ela goste que tudo dependa de nós, da nossa perícia, e da nossa persistência, porque muitas vezes corta-se sem querer a membrana e lá se vai o num-num, antes de ter emitido qualquer som.
Vamos fazer um num-num. Mesmo que ela não goste assim tanto, eu vou adorar.
segunda-feira, janeiro 03, 2005
Estar lá com a mão nos olhos
"Mesmo ela já tá lá c'a mão nos olhos à tua espera". Esta expressão é uma deliciosa ironia. Traduzindo: É evidente que ela/ele não anseia pela tua visita. Este "estar com a mão nos olhos" não é o gesto de tapar os olhos, mas sim o de colocar a mão, aberta e na horizontal, à frente dos olhos, para fazer sombra e melhor enxergar ao longe. É um gesto de quem espera e desespera, com ansiedade, pela chegada de alguém. É um gesto que talvez já quase ninguém faça actualmente, porque as pessoas, quando estão para chegar, não se conseguem avistar ao longe, percorrendo as veredas, aproximando-se pouco a pouco, ora bem visíveis, adivinhando-se o cansaço pelo ritmo da marcha, ora ocultadas pelas curvas dos caminhos, pelos lombos das montanhas, pelas árvores e pelas casas. Aparecendo e desaparecendo ante os nossos olhos, como num truque de magia.
Agora as pessoas chegam de carro e anunciam-se através de telemóveis cada vez mais sofisticados ou de campaínhas de apartamentos, também cada vez mais evoluídas. Por isso é que este "estar lá com a mão nos olhos" soa agora tão estranho. Os mais novos, para entenderem a expressão, precisam que ela seja explicada. Precisam que se fale com vagar desse tempo em que se demorava muito mais a chegar e talvez por isso as chegadas fossem mais desejadas. Desse tempo em que as pessoas não se importavam de perder algum do seu tempo, permanecendo com a mão aberta à frente dos olhos, numa espécie de pala a fazer sombra, mirando para longe, à espera de um vulto, que reconheciam pela roupa, pela estatura, pela maneira de andar, ou pelo quedado, pelo comprimento e pela cor do cabelo. Era lindo, esse tempo! Era lindo as pessoas ficarem com a mão nos olhos à procura de alguém no horizonte.
"Olha lá ele não 'tá lá com a mão nos olhos". Ouvir esta expressão entristece-nos e normalmente abre-nos os olhos para uma realidade que preferíamos ignorar. É horrível quando tentam matar-nos uma ilusão. Há algo que salva esta expressão. Felizmente. O que a salva é a memória do gesto de colocar a mão nos olhos e procurar alguém ao longe, pequenino primeiro, depois aumentando de tamanho aos poucos, ora aparecenddo, ora desaparecendo, mas sempre se aproximando. A expressão irónica magoa; a original faz-nos saudades. Ainda bem que voltei a ouvir, há pouco tempo: "Olha lá, ela não 'tá lá c'a mão nos olhos à tua espera!"
Agora as pessoas chegam de carro e anunciam-se através de telemóveis cada vez mais sofisticados ou de campaínhas de apartamentos, também cada vez mais evoluídas. Por isso é que este "estar lá com a mão nos olhos" soa agora tão estranho. Os mais novos, para entenderem a expressão, precisam que ela seja explicada. Precisam que se fale com vagar desse tempo em que se demorava muito mais a chegar e talvez por isso as chegadas fossem mais desejadas. Desse tempo em que as pessoas não se importavam de perder algum do seu tempo, permanecendo com a mão aberta à frente dos olhos, numa espécie de pala a fazer sombra, mirando para longe, à espera de um vulto, que reconheciam pela roupa, pela estatura, pela maneira de andar, ou pelo quedado, pelo comprimento e pela cor do cabelo. Era lindo, esse tempo! Era lindo as pessoas ficarem com a mão nos olhos à procura de alguém no horizonte.
"Olha lá ele não 'tá lá com a mão nos olhos". Ouvir esta expressão entristece-nos e normalmente abre-nos os olhos para uma realidade que preferíamos ignorar. É horrível quando tentam matar-nos uma ilusão. Há algo que salva esta expressão. Felizmente. O que a salva é a memória do gesto de colocar a mão nos olhos e procurar alguém ao longe, pequenino primeiro, depois aumentando de tamanho aos poucos, ora aparecenddo, ora desaparecendo, mas sempre se aproximando. A expressão irónica magoa; a original faz-nos saudades. Ainda bem que voltei a ouvir, há pouco tempo: "Olha lá, ela não 'tá lá c'a mão nos olhos à tua espera!"
domingo, janeiro 02, 2005
Quando o Geraldo rejeita caldo
Perguntei à minha mãe quem era o Geraldo e ela lembrou-se de um, que já me esqueci de onde era, e logo o meu pai, entrando na conversa, também se lembrou de um Geraldo, que afinal era outro. Mas acho que nenhum dos dois teve a ver com este ditado, que ainda há dois dias aplicámos, face ao extraordinário caso de o meu cunhado ter recusado comer mais um bocado de queijo, um dos manjares que mais aprecia. "Oh, quando o Geraldo rejeita caldo...." algo está mal, mesmo muito mal. E eu, que acredito em ditados, perguntei logo se ele estava doente e se queria um comprimido qualquer para essa hipotética doença que, afinal, não existia. Apenas não lhe apetecia, estava cheio e pronto. Mas nós voltámos a repetir a sentença: "Quando o Geraldo rejeita caldo.....!" Geraldo somos tomos nós, ou quase, lá de vez em quando. O ditado bem podia ter outro nome, mas qual deles tão bem rimaria com caldo? Está comprovada a antiguidade deste dizer. Hoje, com certeza, o apreciado manjar não seria um simples caldo mas outra iguaria qualquer, e se assim fosse o nome do protagonista também seria outro. Mas ainda bem que é assim, pois este deve ser um dos últimos Geraldos desta terra. Geraldo nunca voltou a ser um nome da moda.
sábado, janeiro 01, 2005
Ir ver dar meia noite
Lembro-me do tempo em que não íamos ver o fogo de artifício da Noite de São Silvestre. Limitávamo-nos a ouvir contar sobre a aventura de "ir ver dar meia-noite" e a imaginar como seria. Ouvíamos falar sobre longas caminhadas a pé para ir "ver dar meia-noite", em especial a São Roque, onde os meus avós maternos tinham familiares. Ouvíamos esses relatos com a mesma curiosidade com que ouvíamos as histórias da minha avó: de gigantes, de feiticeiras, do menino que tinha uma estrelinha na testa, ou da menina que se transformava em pomba porque uma preta malvada lhe tinha metido um alfinete na cabeça.
Nessa altura, o espectáculo de fogo de artifício não tinha nada a ver com o de hoje em dia, nem sequer se pode dizer que não lhe chegava aos calcanhares. Mas "ir ver dar meia-noite" tinha uma tal magia e um tal mistério! Tinha a importância de tudo o que é desconhecido e parece impossível.
Um dia chegou também a nossa vez. Tanto pedimos à minha mãe, que ela se predispôs a ir connosco "ver dar meia-noite", a pé. Ainda ponderámos ir até ao Lombo da Quinta, para lá do Palheiro ferreiro, mas acabámos por ir às Neves, bem para lá das Figueirinhas, seguindo pela antiga estrada do aeroporto. Foi uma conquista. Já pertencíamos ao mundo dos abençoados que sabiam o que era "ver dá meia noite" (era assim que me soava).
Agora vamos sempre. Vamos de carro. E o que vemos é o fogo de artifício, o espectáculo de fim-de-ano. Nunca mais dissemos: "Vamos ver dar meia-noite". Mas eu gosto mais dessa forma de dizer. Parece uma frase saída das histórias da minha avolita.
Nessa altura, o espectáculo de fogo de artifício não tinha nada a ver com o de hoje em dia, nem sequer se pode dizer que não lhe chegava aos calcanhares. Mas "ir ver dar meia-noite" tinha uma tal magia e um tal mistério! Tinha a importância de tudo o que é desconhecido e parece impossível.
Um dia chegou também a nossa vez. Tanto pedimos à minha mãe, que ela se predispôs a ir connosco "ver dar meia-noite", a pé. Ainda ponderámos ir até ao Lombo da Quinta, para lá do Palheiro ferreiro, mas acabámos por ir às Neves, bem para lá das Figueirinhas, seguindo pela antiga estrada do aeroporto. Foi uma conquista. Já pertencíamos ao mundo dos abençoados que sabiam o que era "ver dá meia noite" (era assim que me soava).
Agora vamos sempre. Vamos de carro. E o que vemos é o fogo de artifício, o espectáculo de fim-de-ano. Nunca mais dissemos: "Vamos ver dar meia-noite". Mas eu gosto mais dessa forma de dizer. Parece uma frase saída das histórias da minha avolita.