segunda-feira, outubro 30, 2006

Fazer boa farinha

"Aqueles dois juntos não fazem boa farinha". A última vez que ouvi esta expressão foi num dia em que a minha menina e o meu sobrinho passaram uma tarde, juntos, em casa dos avós. No final do dia, a minha mãe sentenciou: "Quando ficam sozinhos, portam-se muito bem. Juntos, não fazem boa farinha."
Baseou-se com certeza no velho ditado "duas pedras ásperas não fazem farinha", facilmente comprovado pela constação da forma de funcionamento dos moinhos, ou azenhas. Ora, é sabido que as pedras do moinho não são iguais. A de baixo é éspera, a de cima é macia. Se fossem as duas ásperas, o resultado não seria bom. Se fossem as duas macias, também não seria. É do equilíbrio da diferença que surge o bom produto.
Assim é também com as pessoas, a julgar pela sabedoria popular. "Duas pedras ásperas não fazem farinha." A tradução da minha mãe: "Duas pessoas brabas que se juntam, não dá bom resultado. Uma tem de ser melhor do que a outra." E duas pessoas que se comparem, ambas, à pedra macia? Talvez uma grande monotonia. Sem bom resultado.
Terá o povo, também neste caso, a sua razão? Dou por mim a pensar.
Onde estará o meu ponto de equilíbrio? Falta-me uma pedra áspera ou uma pedra macia? A única certeza que tenho é de que uma única pedra não é suficiente. De uma única pedra, não resulta. Nem boa farinha, nem má farinha.

domingo, outubro 22, 2006

Quem mama no dedo

Para além da história da menina arrastada para o mar pelos piolhos, da tira que nascia a quem dava e tirava, da mão em estátua por ter batido na mãe e da surdez durante a missa por ter dito palavrões, havia outra ameaça pedagógica que muitas crianças ouviam antigamente porque tinham o hábito de mamar no dedo.
Ao contrário das minhas irmãs, eu nunca tive esse costume, e por isso nunca ouvi: "Não mames no dedo. Olha que os espanhóis cortam o dedo!" Dessa ameaça eu ficava de fora e tinha pena. Sentia-me excluída. Se gostasse de mamar no dedo, estaria mais próxima das minhas irmãs, pensava eu. Partilharia até, com olhar asustado, aquele aviso dito em tom sério pelas pessoas grandes.
Os epanhóis passavam de vez em quando no nosso sítio, anunciados ao longe pela música inconfundível do seu apito. Traziam às costas a roda, que descansavam no canto do terreiro, enquanto as mulheres se desdobravam à procura dos objectivos que precisavam de conserto: tesouras de todos os tamanhos, facas, e guarda-chuvas, pois ele também soldava as baleias partidas. No tempo da minha avó, o espanhol até dava pontos em louça partida.
As crianças que mamavam no dedo ficavam cheias de medo à passagem do espanhol, e ele às vezes dava uma ajuda aos adultos e dizia que era verdade, mas que ia deixar mais uns tempos a ver se havia emenda.
Mas tudo muda, claro está. Há pouco tempo, ouvi os pais de um bebé que mama no dedo, orgulhosos, a dizer que tinham lido não sei onde, que as crianças que mamam no dedo são mais auto-confiantes, mais seguras de si. Ainda bem que a teoria mudou. Há anos que não vejo um "espanhol".

sexta-feira, outubro 20, 2006

Não me quadrou!

Ultimamente, tem-me ocorrido amiude esta velha expressão. "Quadrar" é um verbo que o povo utiliza com o significado de agradar, ser conveniente, cair bem. E usa-se normalmente na negativa. Quando as palavras ou as atitudes dos outros não nos agradam. "Aquilo não me quadrou." Não me caiu bem. Não estava à espera. Surpreendeu-me pela negativa.
Todos os dias, sem exgaero talvez até pudesse dizer todas as horas, vejo e ouço coisas que não me quadram. Palavras e atitudes que doem. Que causam um aperto no estômago, um nó na garganta, uma impressão nos olhos.
"Não me quadrou!", digo mentalmente, enquanto tento manter as lágrimas sob a forma em que agora se encontram. Brilho.

quarta-feira, outubro 18, 2006

O palheirinho


O palheirinho está a cair, mais não é do que um amontodoado de tábuas e de zinco, embora ainda de pé. Na minha memória, porém, está intacto. O meu palheirinho continua igual ao palheirinho das histórias da juventude da minha mãe e das minhas tias.
O palheirinho foi contruído de propósito para lhes servir de local de trabalho. Porque as quatro se acotovelavam pela casa pequena, disputando os lugares à janela, com mais luz, para poderem bordar ou fazer tela.
O palheirinho era uma pequena construção de madeira, com uma porta virada para nascente e duas janelas grandes voltadas para sul. Tinha a forma quadrada e o telhado de palha e foi construído a poente da casa dos meus avós, um pouco abaixo do terreiro, junto ao pequeno caminho de calçada irregular que ia dar ao curral, à coelheira e à retrete.
Para o palheirinho foi levada uma caixa grande de madeira, sobre a qual eram colocadas as almofadas da tela. Havia ainda uma jardineira e algumas cadeiras.
Todos os dias, as quatro irmãs se reuniam no palheirinho para trabalhar e distraíam-se cantando, contando anedotas, recordando histórias verdadeiras, e gozando umas das outras. Era uma galhofa permanente, à qual ajudavam as inúmeras visitas que "vinham com o bordado" ou com a tela. Muitas raparigas do sítio guardam memórias dos dias passados no palheirinho dos meus avolitos, um local de convívio equiparado às tendas, às vendas ou às eiras.
O palheirinho pertence ao cenário de grande partes das histórias que ouço a minha mãe contar desde a infância: "Uma vez, estávamos no palheirinho a bordar, quando......."
Foi um espaço mágico que só conheci com outras funções, quando nenhuma das raparigas lá trabalhava, porque cada um tinha seguido a sua vida, e foram construídos prateleiros de madeira na parede norte, para guardar semilhas, batatas e pêros.
Quando os meus tios e primas regressaram à força de Moçambique, tinha eu sete anos, foi ali que se guardaram objectos os estranhos que trouxeram na bagagem. Os que me ficaram na memória com mais nitidez foram dois frigoríficos que trabalhavam a petróleo e muito espanto causaram no nosso sítio. Ao menos um deles, ou o que dele resta, acho que ainda está guardado no palheirinho.
Não sei precisar em que ano a palha da cobertura foi substituída por folhas de zinco, que pena! Teve de ser porque o cultivo do trigo tornou-se escasso, até desaparecer, bem como os mestres especialistas na arte das coberturas de colmo. A fotografia do palheirinho original tenho na memória, não sei se por de facto o ter visto assim, se por mo terem descrito.
A fotografia que posso mostrar é de como ele está hoje, um quadrado de madeira e zinco, todo retorcido, como se o lobo da história dos três porquinhos tivesse soprado com muita força junto dele.

segunda-feira, outubro 16, 2006

Inzevir

É claro que eu já tinha ouvido esta palavra. Mas ontem, quando a apanhei pelo ar numa conversa, recebi-a com o entusiasmo de uma descoberta nova.
Estávamos a conversar sobre pessoas e acontecimentos de antigamente, a partir da referência a um homem do nosso sítio que já tem mais de oitenta anos e nunca casou. E conversa puxa conversa, tal como as cerejas, falámos de uma rapariga com quem ele tinha andado para casar, e com quem de repente decidiu acabar o casamento.
Mas ela teve sorte, graças a Deus, e casou com um viuvo. "Foi a filha dele que o inzeviu a ir pedi-la". Inzeviu, sim senhor. E ainda bem que teve a ideia de o inzevir.
"Inzevir" é convencer, levar a. Penso que deve ser uma forma deturpada de "induzir". Há pessoas que precisam de pequenos empurrões e é bom que alguém seja capaz de as inzevir, tratando-se de uma acção positiva, claro está.

segunda-feira, outubro 09, 2006

Penosa

"Tu és muito penosa!"Fiquei calada. Penosa? Acabavam de me fazer um elogio e eu comportava-me de uma forma estranha. Calada. Num frente a frente silencioso com o adjectivo que tinham escolhido para caracterizar uma parte da minha personalidade. "- É verdade, tu és muito penosa! Gostas de ajudar toda a gente."
Foi um grande elogio. Um elogio dito à maneira popular, que eu tanto admiro. No entanto, eu vi outro alcance na palavra. Olhei para a palavra penosa e não me limitei a ver o significado com que foi dita, de ter pena. Vi também o outro significado, o que vem em todos os dicionários de português.
Não consegui evitar, fiquei um pouco manente.

Algorreira

Acabo de aprender esta palavra nova. Parece-me nova, mas a minha mãe teima que é muito velha e de uso comum entre o povo e que é impossível eu não a conhecer.
"Andavas toda algorreira, mas durou pouco!" Durou pouco mais de uma semana. A minha filhota andou muito algorreira nos primeiros dias de escola. Algorreira significa entusiasmada, contente, eufórica até.
Mas à medida que os espaços, os professores e os colegas novos passam a conhecidos, e à medida que os TPCs aumentam, o entusiasmo vai diminuindo. É sempre assim, todos sabemos que é. De tal modo que a minha menina já não anda tão algorreira. E eu também não.

sábado, outubro 07, 2006

Quem dá e tira, nasce-lhe uma tira

Esta possibilidade era a que mais nos aterrava. Mais do que ser arrastadas para o mar por um bando de piolhos, do que ficar pretas como tições, ou ir à missa e nada ouvir. "Quem dá e tira, nasce-lhe uma tira." A sentença foi-nos ensinada desde bem pequenas, para nos mostrar que aquilo que é dado, dado está e ponto final. Se foi dado, não se pode ir buscar de volta e nem vale a pena arrepender-se.
"Quem dá e tira, nasce-lhe uma tira." Com medo desta possibilidade, nunca tentei obter nada de volta. Muito matutei às custas desta ameaça. Eu e as minhas irmãs. Mas que raio era essa tira que nascia às pessoas que davam e depois tiravam?
Eu imaginava uma espécie de cauda, semelhante à do diabo. Algo comprido que sairia do traseiro e se arrastaria pelo chão, como sinal evidente de que a pessoa em causa tinha cometido o sacrilégio de dar e depois tirar.
Nunca pude confirmar se a sentença é verdadeira ou não. Mas talvez não seja. É o mais certo. Afinal, já me deram e tiraram sem que acontecesse nada a não ser a minha desilusão.

A menina que não deixava a mãe catar

Era uma vez uma menina que não deixava a mãe catá-la. Fazia uma birra e não deixava e por isso os piolhos iam tomando conta da cabeça da menina. Certa noite, enquanto a menina estava a dormir, os piolhos fizeram uma longa trança com o cabelo da menina e arrastam-na para o mar.
-E depois, o que é que aconteceu à menina?
A menina foi levada para o mar pelos piolhos e aí deve ter sido comida pelos peixes, porque nunca mais ninguém viu a menina.
Esta história assustava as crianças do meu tempo, assustava sim senhor. Mas só tomava proporções de verdadeiro terror quando a minha mãe estava na cozinha a arranjar uma espada, com um monte de folhas de pimpineleira ao lado, para depois raspar a pele preta da espada, e nos chamava.
Nós íamos a correr, respondendo ao chamamento, e então a minha mãe mostrava-nos algo que encontrara dentro da barriga da espada. Era uma parte qualquer do debulho, que não sei qual era, mas juro que era igual a uma pequena mão de criança.
-Lembram-se da história da menina que não deixava a mão catar? Deve ter sido comida por esta espada, e esta deve ser a mão da menina.
Nós ficávamos aterrorizadas. Lembro-me de não conseguir dormir, com medo que aquela história se tornasse real também comigo ou com uma das minha irmãs. Fechava os olhos e via a minha mãe a retirar de dentro da espada a mão da outra menina, coitadinha da menina.
Achava esta história uma verdadeira tortura e jurei que nunca a haveria de contar. Mas a verdade é que já quebrei a promessa, confesso.

Quem diz palavrões

Era também horrivel aquilo que podia acontecer a quem dizia palavrões. Quem dissesse palavrões seria castigado não ouvindo nada da missa, no domingo seguinte.
As outras pessoas todas ouviriam as leituras e as rezas e o sermão do senhor padre. A pessoa que tivesse dito palavrões, estaria lá, mas muito simplesmente, não ouviria uma única palavra. Seria como se fosse surda.
O nosso leque de palavrões, ou palavras feias, era reduzidíssimo. Era talvez o mais pobre das redondezas, talvez por sermos três raparigas e termos pouco contacto com rapazes, que então eram os detentores naturais desse estranho saber.
Além do mais, as pouquíssimas palavras feias que pudéssemos eventualmente dizer, eram para nós de significado oculto, porque apenas repetidas. Mesmo assim, lembro-me de ir para a missa cheia de medo, imaginando como seria se não ouvisse nada, porque alguns dias antes tinha chamado "macaca estuporada" a uma vizinha nossa que teimara em nos atentar.

Quem malha na mãe...

Quando eu era criança, havia duas coisas horríveis que podiam acontecer a quem se atrevesse a levantar uma mão para bater na mãe, no meio de uma qualquer birra, ou para se defender de uma qualquer malha.
"Quem malha na mãe, fica preto". É uma ameaça racista, pois é. Mas eu acho que resultava. Ficar "preto como um tição" era uma ameaça que aterrava qualquer criança, num tempo em que era raro ver pessoas de cor, tão raro que quando viam uma, as pessoas davam um beliscão em alguém que estivesse perto para "terem um gosto".
"Uma vez, havia um menino que levantou o braço para malhar na mãe e nunca mais pôde mexer esse braço. Ficou para sempre com o braço levantado, como uma estátua." Para o caso de alguma criança de má timbre não ter medo de ficar preto, havia esta história terrível. Que criança não ficaria aterrada com a possibilidade de ficar para sempre com um braço levantado, como uma estátua?
Contaram-me estas histórias há cerca de trinta e cinco anos e eu nunca delas me esqueci. Nunca me esqueci e, um dia destes, dei por mim a repeti-las à minha menina. Nalgumas situações, os métodos antigos continuam a ser os melhores.

Outra lengalenga

Pi Pi qu'eu piei
grão de milho eu achei
fui moê-lo ao moinho
o moinho não moeu
chamei por São Tiago
São Tiago não ouviu
só ouviram os ladrões
que roubaram os meus calções.

Data da recolha: 20-08-1986
Sítio da Ribeira dos Pretetes, Caniço
INformante: Justina Fernandes

quinta-feira, outubro 05, 2006

Lengalenga

Hoje é domingo
do pé do caminho
toca na tumba
e a tumba no sino
tão - la - rão
senhor capitão
orelha de gato
no seu coração.

Data da recolha: 04-06-1989
Sitio da Ribeira dos Pretetes, Caniço
Informante: Justina Fernandes

quarta-feira, outubro 04, 2006

Um ratinho ou uma ratinha?

Há outra história que ouço contar desde sempre. Uma história que é ressuscitada sempre que duas pessoas teimam, cada uma para o seu lado, e depois de muita teima, continuam cada uma na sua, para voltarem a teimar daí a tempos e sempre que o assunto vier à baila.
Os protagonistas da história são marido e mulher, tal como na anterior. Certo dia o homem matou um ratinho que apareceu lá em casa, e ainda bem que o matou. O problema é que o homem achou que era um ratinho e a mulher que era uma ratinha. Teimaram, teimaram, teimaram. Quase que a teima não tinha fim.
Exactamente um ano depois, no dia preciso em que fazia um ano do dito acontecimento, acho que foi o homem que se lembrou e disse: - "Faz hoje um ano que eu matei um ratinho que apareceu aqui." A mulher replicou: "Não foi um ratinho, que foi uma ratinha." E a teima durou e durou, e durou.
Dois anos após o dito acontecimento, não sei se foi o homem que se lembrou, ou se foi a mulher. Imaginemos que foi ela a primeira a dizer: "Faz hoje dois anos, que mataste uma ratinha que apareceu aqui a aborrecer." E o homem replicou: "Não foi uma ratinha, que foi um ratinho." Nova teima sem tréguas: um a teimar que tinha sido um ratinho, o outro a teimar que fora uma ratinha. Teimaram, teimaram e teimaram sem nenhum deles mudar de opinião.
No ano seguinte voltaram a teimar, e no que veio depois também teimaram e ainda no outro, no outro e no seguinte e depois no próximo. "Faz hoje anos que eu matei um ratinho..." - dizia o homem. "Não foi um ratinho que foi uma ratinha" - insistia a mulher.
Ao que sei, teimaram a vida inteira e nunca se entenderam, tal como fazem algumas pessoas que por este mundo andam.

domingo, outubro 01, 2006

Piolho, piolho, piolho.

Era uma vez um homem conhecido pela alcunha de Piolho. Alcunha ou apelido, como dizem as gentes da minha terra. Ora, sempre que reinava com o marido, a mulher entendia de o chamar Piolho e ele ficava irritado.
O homem ficava irritado, mas quanto mais irritado ficava mais ela o chamava de Piolho.
Um dia o Piolho perdeu a paciência e decidiu que nesse dia a brincadeira ia acabar. A mulher ia deixar de o tratar por Piolho, desse por onde desse. Mas por mais que lhe ordenasse que não repetisse a alcunha, ela repetia e repetia, não havia maneira de parar.
Chegou a um ponto em que o homem levou a mulher para a roda de um poço. Aí, perguntou-lhe: "Ainda sou Piolho?" E a mulher, inflexível: "Sim senhor, és Piolho, Piolho, Piolho." A cena tomou tais proporções que o PIolho acabou atirando a mulher para dentro do poço. Então, voltou a perguntar: "Ainda sou Piolho?" E ela, sem hesitar sequer: "És Piolho, Piolho, Piolho."
A mulher foi começando a se afundar, mas ainda assim sempre que vinha à tona e o homem lhe fazia a pergunta, repetia: "Piolho, Piolho, Piolho." Até que o afundamento se tornou mais sério, e ela já não conseguia falar, porque não conseguia por a cabeça fora da água. Então, colocou os dois braços fora da água, funtou as duas unhas dos dedos polegares e fez o gesto de quem mata um piolho. Seguiu a sua avante até ao fim.
Sempre que alguém mostra sinais de extrema teimosia, ouço uma alusão a esta história. Já nem é contada, porque é do domínio geral. Basta a expressão: "Piolho, Piolho, Piolho". E já está dito o que se pensa da pessoa e do comportamento em causa. Que é uma teimosia.
A história só volta a ser totalmente contada quando estão presentes crianças, que adoram ouvi-la e deliram com ela, no caso de se tratarem de pessoas de fora, que não têm semelhante história nas suas raízes culturais, ou, por último, tratando-se de alguém como eu, que quer à fortça capatar todos os pormenores, para aqui os registar, mesmo correndo o risco de ser chamada, como há bocado, de "pessoa muito aborrecida."

A primeira fruta


Não se sabe quem foi. Apenas que alguém decidiu roubar as primeiras pêras-melãs amarelas, que estavam lindas, muita grandes e luzidias, segundo a minha mãe, na pereira-melã que ela com tanto carinho plantou em cima do bardo perto do ribeiro. Eram as primeiras dessa árvore e não cheguei a vê-las. Que pena! Será que vão avesar? Como fizeram com os frutos deliciosos, que agora não nos chegam à mão?
A minha mãe não se conforma com o sucedido. Ainda por cima, estava a planear pedir ao meu sobrinho para apanhar essas pêras-melãs, porque é bom ser um rapaz a apanhar a primeira fruta de uma árvore. "É bom ser um rapaz, para a árvore dar muitos frutos. É o que dizem." Ora, essa eu não sabia. Ou então tinha-me esquecido. O que eu sei sobre árvores e frutos é que se deve guardar as flores do espirito santo, as que ficam na bandejinha onde se coloca a oferta em dinheiro aquando da vista pascal, e atirá-las a uma árvore que teime em não dar fruto. No ano seguinte é garantido que se vai encher de frutos, pelo menos é o que dizem porque eu nunca tive a oportunidade de confirmar.
Sei ainda de outro remédio, de eficácia igualmente garantida, de acordo com a sabedoria popular. Na manhã de São João, deve-se carregar de pedras uma árvore que não dê fruto. No ano seguinte, ela ficará "chumbando", carregadinha de fruta.
Lembro-me de ouvir outra coisa: nunca se deve apanhar todos os frutos de uma árvore. Alguns dos frutos devem ficar na árvore, para que ela voltar a dar bastante no ano seguinte. Quando alguém apanha tudo, diz-se que fez "a vindima do diabo". Também já ouvi lamentos quando uma árvore carrega demasiado de frutos. Um número exagerado de frutos é sinal de que no ano seguinte não vai dar nada, ou até que vai secar.

Enxamprado

"'Inda há bocado limpei o fogão e ele já está todo enxamprado de gordura." Assim que ouvi esta frase, dita pela minha mãe à hora do almoço, apercebi-me de que também uso o adjectivo "enxamprado/a", sem dúvida que sim, mas nunca tinha reparado que o usava.
Enxamprado quer dizer cheio...uma superfície coberta com qualquer coisa...como o fogão de gordura, uma parte do quintal com formigas, no tempo em que aparecem, ou um canto do jardim ou de um qualquer bardo, de que uma determinada planta tomou conta, por inçar facilmente, talvez uma vereda cheia de ervas, a precisar de limpeza. Os exemplos nunca mais acabariam.
Tem piada. De todos estes exemplos, o único que me resta, o que eu posso aplicar no meu dia-a-dia, seria o do fogão...não tenho jardim, nem terreiro com buraquinhos por onde possam sair formigas de asa, nem bardos com plantas das que inçam muito. Às vezes, penso que a minha vida está enxamprada de problemas. Mas, na verdade, há quem tenha muitos mais. O que posso dizer, sem margem de erro, é que a minha vida continua, como sempre, enxamprada de sonhos.

Trambôlho e catamôlho

Ainda ontem ouvi chamarem trambôlho a alguém. Referiam-se a um velhote com mais de oitenta anos, que já tem dificuldades em andar. Ora, se se movimenta mal, arrastando os pés, numa espécie de pequenos tropeções, é um trambôlho.
Quis precisar o significado da palavra e explicaram-me que "um trambôlho é uma pessoa muito gorda, que mal se consegue arrastar." O velhote em causa até não é assim tão gordo, mas está bem.
E catamôlho? Eu tinha a ideia de que a palavra catamôlho estava relacionada também com uma característica física. Procuro rapidamente no meu dicionário mental e a palavra catamôlho surge como definição de uma pessoa baixa e grossa. Não sei se inventei.
A minha mãe fica indecisa quando tento comprar a minha definição com a dela, mas acaba por concordar com a minha. A verdade é que ela dá à palavra "catamôlho" outro significado. Talvez numa versão só dela, trambôlho é a palavra que escolheu para designar "uma pessoa opiniosa, teimosa."

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