terça-feira, janeiro 24, 2006

Enxócanhar os sapatos

A expressão saiu-me sem eu notar. De tal modo que depois de a ter dito fiquei a olhá-la parada, no ar. E apercebi-me de como algumas coisas adormecem dentro de nós, mas num qualquer dia podem acordar de mansinho.
Olhei para a minha filha que na pressa do momento decidiu vir da sala até à cozinha só com os sapatos meios calçados, ou seja com os calcanhares a amarrotarem a taloeira, e repreendi-a da forma exacta como me repreendiam na infância: "Assim vais enxócanhar os sapatos."
E foi então que fiquei parada por uns momentos, a olhar para a palavra enxócanhar, como se fôssemos duas desconhecidas. Mas não. Era apenas a surpresa do reconhecimento.
Foram tantas as vezes que me disseram para não enxócanhar os sapatos. Mas quando ela me pergunta "O que é enxócanhar, mãe?", fico outra vez por breves instantes na contemplação da palavra que tanto me lembra a infância. "Enxócanhar é pô-los tortos."
Eu sempre tive tendência para enxócanhar os sapatos porque, tal como muitas pessoas da família, "deito os pés para dentro". Ouvi tantas vezes a recomendação para não "enxócanhar" os sapatos porque era muito difícil comprar uns.
Tínhamos apenas um par de sapatos da missa e outro, mais velho, de andar em casa. Enquanto estivessem em bom estado, não haveríamos de ter outros. Nada que se compare com as verdadeiras sapatarias a que se habituam desde bem pequenas as crianças de agora, que não se importam de "enxócanhar" sapatos, nem elas nem os adultos. Dou por mim a importar-me e fico contente por ter memória.

sexta-feira, janeiro 20, 2006

Um saco de gatos

Ouvi esta expressão pela primeira vez há pouco tempo. Ou talvez já a tivesse ouvido mas a minha atenção não a tivesse captado, porque muitas vezes só ouvi aquilo que estamos interessados em ouvir e o resto passa-nos despercebido.
"Um saco de gatos" é um grande problema, pois então! Lembrei-me de histórias que ouço contar desde pequena sobre a tarefa que por vezes davam às crianças de irem para uma levada ou um poço afogar os indesejados gatos de uma qualquer nova ninhada.
Veio-me também à memória um episódio da minha adolescência. Soube que o meu pai tinha abandonado nos "alzarózes", para morrerem, alguns pequenos gatos. Deve tê-los atirado para uma ribanceira, dentro de uma saca, não sei ao certo. Dirigi-me ao local, alimentando a esperança de os poder salvar.
Revejo-me percorrendo a vereda, atenta a todos os movimentos por entre os pinheiros. Mas nada. A tarde foi correndo e não havia sinais dos gatinhos. Então, de braços colocados à volta de um pinheiro em forma de abraço, chorei todas as mágoas possíveis: as minhas, as dos pobres gatos, e as do mundo.
Às vezes ainda me apetece chorar assim. Ou talvez mais, porque mais solitária, longe do abraço protector do tal pinheiro. A vida está cheia de "sacos de gatos" que não miam, isso ninguém nos tira porque os problemas fazem parte da aventura de andar neste mundo.

quinta-feira, janeiro 19, 2006

Um sarrame!

"Houve um sarrame do diabo!" Ia a passar numa das ruas do centro do Caniço, perto da Igreja, quando ouvi esta frase perdida no ar, e apeteceu-me agarrá-la para a registar. Nem sequer vi a cara do homem que a dizia, dirigindo-se a outro. Um sarrame! Ao tempo que não ouvi esta expressão, embora não faltem por aí sarrames. Cada vez há mais sarrames! Basta ver os noticiários das televisões, para ter um banho de sarrames de toda a ordem.
Lembro-me de a minha mãe dizer, quando em ocasiões excepcionais havia mais pessoas em casa, e uma de nós ia para junto dela, enquanto lidava na cozinha: "Não venhas para aqui fazer sarrame!" Isso foi há muito tempo, agora somos poucos, cada vez menos.
Um sarrame é uma confusão. Acho muito bem que se mantenha a palavra tradicional. Mas não que se mantenham os muitos sarrames que por aí vão existindo. Gosto mais do sentido que a minha mãe dava a sarrame: muitos adultos numa casa, tios e tias vindos de outros locais, avós agarrados às suas memórias, muita gente na cozinha, ajudando a preparar uma refeição. Crianças correndo, brincando à apilhagem e aos escondidos, e agarrando-se às pernas das mulheres que lidam na cozinha: "Vão brincar para a rua, não venham para aqui fazer sarrame."

Ir e vir em seco

Para mim era uma situação normal. Tinha ido fazer um trabalho de reportagem, mas a pessoa que eu devia entrevistar tinha decidido que não havia declarações e manteve a decisão, pelo que eu me vim embora sem nada. Insisti, claro está. E teria vindo embora mais satisfeita se o gravador tivesse sido usado. Mas não foi, paciência, não havia drama.
A contínua que lá estava de serviço é que ficou com pena. Tentou consolar-me. Olhava para mim e levantava os ombros, dava um jeito à cabeça e à boca. A concluir, afirmou: "Menina, que aborrecido, ir e vir em seco. " Eu sosseguei-a. Não era nada do outro mundo, até porque já estou habituada. São coisas que acontecem, ossos do ofício. Ela acenava que sim com a cabeça. Mas acrescentou ainda: "É verdade, mas de qualquer maneira...ir e vir em seco..."

domingo, janeiro 15, 2006

Varrer o almário

Este ano não andei a "varrer armários" na noite de Santo Amaro, como no ano passado. Não andei de casa em casa, em grupo, de avental e vassouras, cantando para nos abrirem a porta e depois provando as delícias da Festa. Mas ontem em casa dos meus pais, havia ainda broas de côco e de mel e Tin-Ta-Ton que ficou do outro Natal e eu podia ter varriado o "almário".
Devia ter-me lembrado que a Festa vai até ao Santo Amaro e que ninguém no seu perfeito juízo deve pensar em fazer dieta antes desta data. Não provei, mas lembrei-me. E também me lembrei da palavra "almário", que ainda ouço amiúde, sobretudo das pessoas mais idosas. A tentação é corrigir para armário. Mas no dicionário da Língua portuguesa aparecem as duas palavras como sendo sinónimas. Este é um erro que cometemos muitas vezes. Tentamos corrigir algo que pensamos estar errado e acabamos por ajudar a eliminar do quotidiano algumas palavras que até estão correctas. No próximo ano, espero "varrer almários", sem qualquer restrição.

Na fim do mundo...

Ouço repetir a velha sentença sempre que falamos de algum caso de maldade humana, de desonestidade, de exploração..."Sempre ouvi dizer que p'ra fim do mundo vai ser preciso andar de cabeço em cabeço para encontrar um homem sério."
Antes era comum falarmos nos "cabeços". Agora a palavra até soa estranha. Fica quase esquecida com a existência de boas vias de comunicação. Lembro-me de se apontarem e saberem de cor os cabeços, porque custava a lá chegar, a pé.
Se a sentença está certa, a fim do mundo (a minha avó dizia no femino, sempre) deve estar próxima. Onde andam as pessoas sérias? Onde param as pessoas honestas? Claro que as há e eu conheço algumas. Mas são poucas. Talvez nem cheguem para todos os cabeços da nossa escarpada ilha.
"P'ra fim do mundo vai ser preciso andar de cabeço em cabeço para encontrar um homem sério." A minha mãe repete a entença que ouviu em criança de gente muito antiga, enquanto desenvolvemos a conversa a propósito de uma qualquer notícia de jornal ou de um qualquer facto envolvendo gente conhecida.
Depois complementa com mais alguns estranhos factos que serão um sinal "da fim do mundo": "Eles diziam que antes da fim do mundo ia estar um ano sem nascerem bebés. E já nascem cada vez menos, estão a ver?"
Outro estranho fenómeno anunciador "da fim-do-mundo": "As figueiras vão dar flôr". Toda a gente sabe que as figueiras dão frutos sem darem flôr, mas "na fim do mundo" tudo será ao contrário.
Até hoje não se conhecem figueiras com flor e, no entanto, essas flores que não imagino como poderão ser, são-me sem dúvida mais familiares do que a actual raridade de seriedade humana. Andando "de cabeço em cabeço", há cabeços vazios, erguidos na solidão do mundo. Dói-me.

domingo, janeiro 08, 2006

O prato num cagulo

A abundância de comida é um dos aspectos que mais caracteriza a "Festa". Lembro-me de o natal ser a única altura do ano em que na minha casa se comprava um queijo de bola, da ilma, e lembro-se de o Natal ser a única época do ano em que se comprava um ananás. Contava-se os dias que faltavam para a Festa e um dos motivos eram as iguarias raras no resto do ano, sobretudo devido às dificuldades económicas. O Natal era um banquete, repleto de comidas raras e por isso preciosas.
Já não é assim para a maioria das pessoas porque durante todo o ano se come de tudo. Pode-se comprar um ananás e um queijo de bola sem esperar pela Festa. Mas a abundância de comida continua a caracterizar a "Festa". É uma abundância levada ao exgero, que faz com que as pessoas comam muito mais do que seria razoável, e por isso registo a expressão "o prato num cagulo", que é um prato com demasiada comida.

sábado, janeiro 07, 2006

O velho, as mesas e os bancos

Não me lembro de ver grupos a cantar os reis nas casas da minha infância. Nem na dos meus pais, nem na dos meus avós, nem na dos meus tios. Talvez o costume tivesse existido também naquela zona alta da freguesia do Caniço, mas em tempos mais antigos.
A única lembrança que guardo é a de uma cantiga que a minha mãe nos ensinou certa vez, dizendo-nos para a irmos cantar a casa dos meus tios, no terreiro. Essa cantiga sempre me intrigou e tenho na ideia as muitas perguntas que fazia à minha mãe, na tentativa de lhe encontrar uma explicação.

Afastai as mesas,
Afastai os bancos
Que aqui vem um velho
de cabelos brancos.

Afastai os bancos,
Afastai as mesas
Qu'aqui vem um velho
C'as canelas tesas.

Afastar as mesas e os bancos para quê? Ora essa. Para bailar. Para ficar espaço livre dentro de casa para bailar. E porque é que o velho tinha as canelas tesas, mãe? E porque é que....?

quinta-feira, janeiro 05, 2006

Dar amor

"Ela nem sequer deu amor a afastar os joelhos." O quê? Falávamos a propósito de um episódio passado momentos antes dentro da igreja, que nesse domingo não era a habitual, a da nossa paróquia. Estávamos numa igreja que não temos por hábito frequentar e a minha mãe ficou surpreendida com a altivez de uma senhora sentada no banco onde encontrámos lugares disponíveis. Apesar do pouco espaço livre para passarmos, a tal senhora manteve-se hirta, na posição exacta em que estava, não se movendo um centímetro sequer no sentido de nos facilitar a passagem para os espaços vazios no banco.
"Ela nem sequer deu amor a fastar os joelhos!" Com esta expressão, a minha mãe mostrava a seu espanto por uma atitude incompreensível, mesmo sendo nós intrusas naquela comunidade. Mais uma expressão nova para mim. "Não deu amor a afastar os joelhos?"- pergunto - "Mas qual é a lógica?" Mas lá no fundo a lógica é o que menos me interessa. O que me interesse é me comove é esta surpresa permanente, de novas palavras, novas expressões. Saberes antigos e belos.

O gamse

Foi um acontecimento que me marcou para sempre. Como esquecer esse dia? Estávamos em vésperas da Primeira Comunhão, e nesse tempo era preciso ir diversas vezes à Igreja do Caniço, à preparação. Íamos com a catequista, a pé, percorrendo cerca de uma hora de caminho, a maior aventura de todas as empreendidas até então.
Nesse dia, alguém tinha me dado uma moeda, que eu não posso garantir exactamente de quanto era, mas de certeza não devia ultrapassar um escudo. A esta distância, também não consigo dizer com certeza absoluta quem ma deu. Talvez tenha sido o meu avô, penso. Mas no fundo da minha memória espreita outra possibilidade. Que outra pessoa poderia tê-lo feito?
Carreguei aquela moeda com uma excitação desmedida. Nem senti a lonjura do caminho, de tão excitada com a novidade de levar comigo uma moeda, que poderia utilizar como quisesse. No Caniço, depois da preparação, pedi a uma colega que entrasse comigo numa mercearia, ali mesmo ao lado da Igreja, e com o balcão a dar-me por cima da cabeça, isso é a parte de que me lembro melhor, pedi ao vendeiro "um gamse".
Disse-o com voz baixinha, uma voz dominada pela timidez: "Um gamse." A voz era tão baixinha que tive de repetir, mas à segunda vez ele percebeu. Então, abriu um franco de boca larga, meteu lá a mão muito grande, agarrou um "gamse" e passou- o para a minha mão, em troca da moeda que eu levava e que era o preço exacto de um "gamse" há trinta e dois anos.
Foi uma sensação difícil de descrever a que senti quando vi que tinha na mão o fruto da minha primeira transação comercial e, simultaneamente, o primeiro "gamse" da minha vida. Tinha resultado. Funcionou. Eu pedi o "gamse"; o vendeiro deu-me o "gamse; eu dei ao vendeiro o dinheiro do "gamse"; ele agradeceu; eu saí da mercearia e meti o "gamse" na boca e comecei a mastigá-lo, sabia que não o podia engolir, tinha de o mastigar até perder o sabor e depois deitá-lo fora.
No ano seguinte, quando os meus tios e primos regressaram de Moçambique, por entre malas, lágrimas e recordações, aprendemos uma palavra sinónima de "gamse": a palavra "chuinga". Parece que estou a ouvi-la, dita com o sotaque engraçado da minha prima Carla, que fez a Primeira Comunhã já aqui, na Igreja do Caniço, no mesmo dia que a minha irmã do meio.
Poucos dias antes da cerimónia, a minha irmã colocou na testa um "gamse" já gasto, para fingir que tinha um galo, e aconteceu que o cabelo da beira se colou no "gamse" e apesar das inúmeras tentativas, desde petróleo a alcóol ou sabão, essa parte da beira teve de ser cortada. De maneira que a minha irmã também ficou para sempre com a memória de um "gamse", essa registada na fotografia da Primeira Comunhão, sob a forma de um ralo da beira.
O "gamse" e a "chuinga" tiveram mais tarde o concorrente "pirata".
Agora, às vezes perguntam-me se eu quero uma "pastilha elástica". Raramente aceito. Contento-me com a memória dos "gamses" e das "chuingas".

quarta-feira, janeiro 04, 2006

Eu não brinco....

"Eu não brinco àqueles sapatinhos acolá, naquelas jarrinhas." As jarrinhas são solitários antigos, que pertenceram à minha avó. Estão encardidos, com as marcas do tempo, mas guardo-os com grande estimação e mantenho-os em lugar de destaque na sala. Este ano meti em cada uma dessas "jarrinhas" um sapatinho, a completar as humildes decorações natalícias.
Na habitual "visita da Festa", a minha mãe reparou na lapinha que voltei a fazer em cima da mesa de metro que também foi da minha avó e disse que lhe faltava a toalha branca de renda à ponta. Depois demorou-se um pouco a admirar o arranjo que fiz sobre a mesa grande. Aí, achou que devia ser outro o "centro" sobre o qual coloquei o arranjo: disse que ficaria melhor um centro com motivos natalícios, em vez do bordado simples que me ofereceu e que exibo com orgulho.
Prosseguindo a minuciosa apreciação, afinal bem característica das "visitas da Festa" (com a diferença de que em casas estranhas não se dizem as coisas com esta confiança), deteve então o olhar nos meus solitários antigos, menos solitários neste Natal graças aos sapatinhos com que os enfeitei. "Eu não brinco àqueles sapatinhos acolá, naquelas jarrinhas."
Sorriu. "Eu não brinco àqueles sapatinhos." Continuou com a explicação, desta vez sem eu ter perguntado, adivinhando já o meu interessa por mais uma expressão que não faz parte do meu vocabulário. "Quando se estava todas em casa (ou seja, quando ainda eram solteiras), dizia-se "eu não brinco" quando não se gostava de uma coisa. Registei mentalmente a expressão. Estando ocupada a preparar o jantar não fiz mais perguntas, mas lembro-me de ter pensado nos inúmeros jogos a que se brincava antigamente, arranjando uma súbita lógica para a expressão da minha mãe. Mas eu brinco e os sapatinhos continuam a enfeitar os velhos solitários da minha avó que guardo com tanta estimação.

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