quinta-feira, janeiro 05, 2006
O gamse
Foi um acontecimento que me marcou para sempre. Como esquecer esse dia? Estávamos em vésperas da Primeira Comunhão, e nesse tempo era preciso ir diversas vezes à Igreja do Caniço, à preparação. Íamos com a catequista, a pé, percorrendo cerca de uma hora de caminho, a maior aventura de todas as empreendidas até então.
Nesse dia, alguém tinha me dado uma moeda, que eu não posso garantir exactamente de quanto era, mas de certeza não devia ultrapassar um escudo. A esta distância, também não consigo dizer com certeza absoluta quem ma deu. Talvez tenha sido o meu avô, penso. Mas no fundo da minha memória espreita outra possibilidade. Que outra pessoa poderia tê-lo feito?
Carreguei aquela moeda com uma excitação desmedida. Nem senti a lonjura do caminho, de tão excitada com a novidade de levar comigo uma moeda, que poderia utilizar como quisesse. No Caniço, depois da preparação, pedi a uma colega que entrasse comigo numa mercearia, ali mesmo ao lado da Igreja, e com o balcão a dar-me por cima da cabeça, isso é a parte de que me lembro melhor, pedi ao vendeiro "um gamse".
Disse-o com voz baixinha, uma voz dominada pela timidez: "Um gamse." A voz era tão baixinha que tive de repetir, mas à segunda vez ele percebeu. Então, abriu um franco de boca larga, meteu lá a mão muito grande, agarrou um "gamse" e passou- o para a minha mão, em troca da moeda que eu levava e que era o preço exacto de um "gamse" há trinta e dois anos.
Foi uma sensação difícil de descrever a que senti quando vi que tinha na mão o fruto da minha primeira transação comercial e, simultaneamente, o primeiro "gamse" da minha vida. Tinha resultado. Funcionou. Eu pedi o "gamse"; o vendeiro deu-me o "gamse; eu dei ao vendeiro o dinheiro do "gamse"; ele agradeceu; eu saí da mercearia e meti o "gamse" na boca e comecei a mastigá-lo, sabia que não o podia engolir, tinha de o mastigar até perder o sabor e depois deitá-lo fora.
No ano seguinte, quando os meus tios e primos regressaram de Moçambique, por entre malas, lágrimas e recordações, aprendemos uma palavra sinónima de "gamse": a palavra "chuinga". Parece que estou a ouvi-la, dita com o sotaque engraçado da minha prima Carla, que fez a Primeira Comunhã já aqui, na Igreja do Caniço, no mesmo dia que a minha irmã do meio.
Poucos dias antes da cerimónia, a minha irmã colocou na testa um "gamse" já gasto, para fingir que tinha um galo, e aconteceu que o cabelo da beira se colou no "gamse" e apesar das inúmeras tentativas, desde petróleo a alcóol ou sabão, essa parte da beira teve de ser cortada. De maneira que a minha irmã também ficou para sempre com a memória de um "gamse", essa registada na fotografia da Primeira Comunhão, sob a forma de um ralo da beira.
O "gamse" e a "chuinga" tiveram mais tarde o concorrente "pirata".
Agora, às vezes perguntam-me se eu quero uma "pastilha elástica". Raramente aceito. Contento-me com a memória dos "gamses" e das "chuingas".
Nesse dia, alguém tinha me dado uma moeda, que eu não posso garantir exactamente de quanto era, mas de certeza não devia ultrapassar um escudo. A esta distância, também não consigo dizer com certeza absoluta quem ma deu. Talvez tenha sido o meu avô, penso. Mas no fundo da minha memória espreita outra possibilidade. Que outra pessoa poderia tê-lo feito?
Carreguei aquela moeda com uma excitação desmedida. Nem senti a lonjura do caminho, de tão excitada com a novidade de levar comigo uma moeda, que poderia utilizar como quisesse. No Caniço, depois da preparação, pedi a uma colega que entrasse comigo numa mercearia, ali mesmo ao lado da Igreja, e com o balcão a dar-me por cima da cabeça, isso é a parte de que me lembro melhor, pedi ao vendeiro "um gamse".
Disse-o com voz baixinha, uma voz dominada pela timidez: "Um gamse." A voz era tão baixinha que tive de repetir, mas à segunda vez ele percebeu. Então, abriu um franco de boca larga, meteu lá a mão muito grande, agarrou um "gamse" e passou- o para a minha mão, em troca da moeda que eu levava e que era o preço exacto de um "gamse" há trinta e dois anos.
Foi uma sensação difícil de descrever a que senti quando vi que tinha na mão o fruto da minha primeira transação comercial e, simultaneamente, o primeiro "gamse" da minha vida. Tinha resultado. Funcionou. Eu pedi o "gamse"; o vendeiro deu-me o "gamse; eu dei ao vendeiro o dinheiro do "gamse"; ele agradeceu; eu saí da mercearia e meti o "gamse" na boca e comecei a mastigá-lo, sabia que não o podia engolir, tinha de o mastigar até perder o sabor e depois deitá-lo fora.
No ano seguinte, quando os meus tios e primos regressaram de Moçambique, por entre malas, lágrimas e recordações, aprendemos uma palavra sinónima de "gamse": a palavra "chuinga". Parece que estou a ouvi-la, dita com o sotaque engraçado da minha prima Carla, que fez a Primeira Comunhã já aqui, na Igreja do Caniço, no mesmo dia que a minha irmã do meio.
Poucos dias antes da cerimónia, a minha irmã colocou na testa um "gamse" já gasto, para fingir que tinha um galo, e aconteceu que o cabelo da beira se colou no "gamse" e apesar das inúmeras tentativas, desde petróleo a alcóol ou sabão, essa parte da beira teve de ser cortada. De maneira que a minha irmã também ficou para sempre com a memória de um "gamse", essa registada na fotografia da Primeira Comunhão, sob a forma de um ralo da beira.
O "gamse" e a "chuinga" tiveram mais tarde o concorrente "pirata".
Agora, às vezes perguntam-me se eu quero uma "pastilha elástica". Raramente aceito. Contento-me com a memória dos "gamses" e das "chuingas".
Comments:
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excelente! isto de andar a estudar fora faz com que nos esqueçamos de palavras da nossa infância.
mesmo sendo mais novo ainda lembro-me de gamses e chuingas :-)
mesmo sendo mais novo ainda lembro-me de gamses e chuingas :-)
Eu lembro-me de as vezes "roubar" a minha mae uns trocos de 2$50 para ir comprar gamses. No meu tempo os gamses ja custavam 2$50 :)
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