segunda-feira, maio 22, 2006
Viloazinhas
Estas duas viloazinhas foram foram feitas com dois botões de papoila, que apanhei na berma de uma estrada, de propósito para dar à minha mãe esse gosto antigo.
Fiquei a olhá-la enquanto se tornava menina. Com gestos precisos, de quem não esquece as coisas verdadeiramente importantes mesmo que pareçam pequenas, explicou-me com vagar o melhor método para obter estas bonecas minúsculas, vestindo o traje típico da Madeira.
Esta era uma das brincadeiras de todas as crianças nesse tempo em que as papoilas espreitavam por entre as espigas nos trigais.
Escolhe-se um botão ainda todo fechado. Com cuidado, abre-se o botão em dois e puxam-se para fora as pétalas vermelhas, todas amarrotadas. Fica a saia pronta, encimada pelas duas partes da capa. Falta apenas a cabeça da viloazinha, que mais não é do que a parte que guarda as sementes, retirada do sítio e encaixada no pequeno caule, acima da capa. E já está.
Duas pequenas viloazinhas aninhadas na mão da minha mãe. Ficou a olhá-las com carinho, recordando. E contando porque sabe como eu gosto de ouvir contar. Obrigada, mãe.
sábado, maio 20, 2006
Um rato de cinco unhas
"Aquilo é um rato de cinco unhas". Os ratos são conhecidos por serem ladrões, não é verdade?? Pois então, um rato de cinco unhas é uma pessoa que rouba. Achei imensa piada a esta expressão, que ouvi pela primeira vez há muito pouco tempo. A minha mãe estava a recordar uma das minhas bisavós, mãe da minha avó materna, e disse esta expressão imitando os jeitos e até a voz da "avozinha", como carinhosamente lhe chamavam.
A "avozinha" chamava "rato de cinco unhas" a uma mulher da família que às vezes ia a casa dela ajudar nas voltas em troca de alguma ajuda, porque era necessitada.
Sorrateiramente, ia levando algumas coisas, que escondia num buraco quando ia à fonte, para depois levar quando fosse embora de vez, ao fim do dia.
Um dia, por alum acaso que não se sabe qual foi, ela teve de ir embora sem as coisas que ao longo do dia tinha juntado nessa pequena gruta junto da ponte. Mais tarde vieram a descobri-las aí escondidas e deram razão à minha bisavó de quem a inha mãe deve ter herdado um incrível faro para detectar as verdadeiras características das pessoas, só de olhar para elas.
Essa característica, infelizmente, eu não herdei. Gostaria de ter aquela espécie de visão raio-x, como gostaria. Olhar para uma pessoa e saber de imediato e com exactidão se é sonsa ou mentirosa, se é leal ou se, pelo contrário, não merece qualquer tipo de confiança.
Talvez não adiantasse muito, talvez fosse atá mais angustiante. Mas ao menos uma pessoa surpreendia-se menos qse porventura viessem a descobrir objectos roubados da sua própria casa numa pequena furna perto da fonte.
A "avozinha" chamava "rato de cinco unhas" a uma mulher da família que às vezes ia a casa dela ajudar nas voltas em troca de alguma ajuda, porque era necessitada.
Sorrateiramente, ia levando algumas coisas, que escondia num buraco quando ia à fonte, para depois levar quando fosse embora de vez, ao fim do dia.
Um dia, por alum acaso que não se sabe qual foi, ela teve de ir embora sem as coisas que ao longo do dia tinha juntado nessa pequena gruta junto da ponte. Mais tarde vieram a descobri-las aí escondidas e deram razão à minha bisavó de quem a inha mãe deve ter herdado um incrível faro para detectar as verdadeiras características das pessoas, só de olhar para elas.
Essa característica, infelizmente, eu não herdei. Gostaria de ter aquela espécie de visão raio-x, como gostaria. Olhar para uma pessoa e saber de imediato e com exactidão se é sonsa ou mentirosa, se é leal ou se, pelo contrário, não merece qualquer tipo de confiança.
Talvez não adiantasse muito, talvez fosse atá mais angustiante. Mas ao menos uma pessoa surpreendia-se menos qse porventura viessem a descobrir objectos roubados da sua própria casa numa pequena furna perto da fonte.
Com a pulga atrás da orelha
Olha-nos de frente, mas deixa claro que está desconfiado. Que é desconfiado. Que nunca nos vai dar muita confiança. Tem a pulga atrás da orelha.
Há dias disseram-me que sou desconfiada. Eu ri-me levemente. Nao levei a sério. Pensei que até confio demais nas pessoas. Se houvesse pulgas à venda, numa qualquer estranha loja, talvez comprasse uma para meter atrás da orelha.
Muitas vezes é preciso ter a pulga atrás da orelha. Pobre de quem não a tem.
Há dias disseram-me que sou desconfiada. Eu ri-me levemente. Nao levei a sério. Pensei que até confio demais nas pessoas. Se houvesse pulgas à venda, numa qualquer estranha loja, talvez comprasse uma para meter atrás da orelha.
Muitas vezes é preciso ter a pulga atrás da orelha. Pobre de quem não a tem.
Andar debaixo do chão
"Mas eles não andam debaixo do chão!" A expressão saiu-me sem aviso, sem eu pensar nela, sem a ter procurado. Uma amiga estava desgostosa por ter encontrado um casal que lhe trazia más mamórias e, ao lamentar-se, dei-lhe esta resposta: "E achas que eles vão andar debaixo do chão?"
A minha mãe usa estra expressão vezes sem conta e eu interiorizei-a sem dar por isso.
Depois lembrei-me de comentá-la com a minha filha e ela não percebia o que queria dizer. Não entendia em que situações podeia ser usada: "Mas, mãe, ninguém anda debaixo do chão." Por isso mesmo. Porque ninguém anda debaixo do chão, é que é normal, mais tarde ou mais cedo, nos cruzarmos com as pessoas. Percebeste??
"Sim, mas...." Às vezes não queremos ser vistos por algumas pessoas. Por vários motivos. E às vezes não queremos ver outras pessoas. Porque nos irritam, porque nos trazem más recordações, por várias razões. Quando expressamos esse desejo, de não nos cruzamos com alguém, é normal que a reacção de quem nos ouve seja esta: "Mas tu não andas debaixo do chão." Ou então: "E achas que ele/a vai andar debaixo do chão?"
Às vezes comentamos, com algum espanto, uma qualquer situação que tenhamos presenciado, envolvendo pessoas conhecidas e ao relatarmos o acontecimento, também vem a propósito que nos digam: "Eles não andam debaixo do chão". Até podemos ser nós a usar a expressão, em jeito de conclusão da narrativa.
Eu também não ando debaixo do chão, ninguém anda. Mas às vezes era o que apetecia.
A minha mãe usa estra expressão vezes sem conta e eu interiorizei-a sem dar por isso.
Depois lembrei-me de comentá-la com a minha filha e ela não percebia o que queria dizer. Não entendia em que situações podeia ser usada: "Mas, mãe, ninguém anda debaixo do chão." Por isso mesmo. Porque ninguém anda debaixo do chão, é que é normal, mais tarde ou mais cedo, nos cruzarmos com as pessoas. Percebeste??
"Sim, mas...." Às vezes não queremos ser vistos por algumas pessoas. Por vários motivos. E às vezes não queremos ver outras pessoas. Porque nos irritam, porque nos trazem más recordações, por várias razões. Quando expressamos esse desejo, de não nos cruzamos com alguém, é normal que a reacção de quem nos ouve seja esta: "Mas tu não andas debaixo do chão." Ou então: "E achas que ele/a vai andar debaixo do chão?"
Às vezes comentamos, com algum espanto, uma qualquer situação que tenhamos presenciado, envolvendo pessoas conhecidas e ao relatarmos o acontecimento, também vem a propósito que nos digam: "Eles não andam debaixo do chão". Até podemos ser nós a usar a expressão, em jeito de conclusão da narrativa.
Eu também não ando debaixo do chão, ninguém anda. Mas às vezes era o que apetecia.
terça-feira, maio 16, 2006
Fazer manteiga
Não enumerei, juntamente com as outras, uma das brincadeiras que mais nos deliciava e que era "fazer manteiga". Talvez por ser especial.
Lembro-me perfeitamente que foi a minha mãe quem nos ensinou a fazer manteiga com flores de pinheiro, como alias, praticamente todas as outras brincadeiras.
Chamou-nos num desses dias enormes em que estavamos um pouco aborrecidas por falta de brincadeiras novas e disse que nos ia ensinar a fazer manteiga. Ficámos espantadas, de olhos arregalados. Então ela foi connosco ao pinham que ficava em frente da nossa casa e a que chamávamos, simplesmente, os pinheiros.
Ajudámos todas a juntar do chão flores de pinheiro que tinham caído com a ventania, e trouxemo-las para junto do telheiro. Aí a minha mãe procurou um caneco qualquer, não me lembro o que era, meteu-lhe água e começou a sacudir o pó amarelo das flores para dentro da água. Era necessário repetir a operação vezes sem conta, até obter uma pasta consistente, tal e qual a cor da manteiga e que se podia partir com uma faca. Com ela barrávamos o nosso pão também inventado, que eram bocados de casca de pinheiro.
Um dia veio à nossa casa um senhor de lá de baixo, do Caniço, que o meu pai tinha conhecido quando estivera emigrado na Austrália. Trouxe com ele o filho, mais ou menos da nossa idade. Nós estávamos nos preparativos para "fazer manteiga", brincadeira que o rapaz nunca tinha visto na vida, talvez por viver numa zona mais perto do centro, sem pinheiros à volta.
O miudo ficou muito espantado com a nossa brincadeira. Acompanhou o processo todo e quando teve e a oportunidade chamou o pai e disse-lhe, com uma pronúncia a que não estávamos habituadas, muito caniceiro, "elas estão fazendo manteiga nuns cabaços". Novo, para nós, era a palavra cabaço para designar um qualquer recipiente. Para nós era um caneco, para ele um cabaço. Também achámos muito estranha aquela foam de falar, dizendo as palavras com outra sonoridade: palavras iguais, que soavam de forma diferente, que engraçado.
Mas o que era mesmo engraçado e um exercício de extrema paciência, era "fazer manteiga" com flores de pinheiro.
Lembro-me perfeitamente que foi a minha mãe quem nos ensinou a fazer manteiga com flores de pinheiro, como alias, praticamente todas as outras brincadeiras.
Chamou-nos num desses dias enormes em que estavamos um pouco aborrecidas por falta de brincadeiras novas e disse que nos ia ensinar a fazer manteiga. Ficámos espantadas, de olhos arregalados. Então ela foi connosco ao pinham que ficava em frente da nossa casa e a que chamávamos, simplesmente, os pinheiros.
Ajudámos todas a juntar do chão flores de pinheiro que tinham caído com a ventania, e trouxemo-las para junto do telheiro. Aí a minha mãe procurou um caneco qualquer, não me lembro o que era, meteu-lhe água e começou a sacudir o pó amarelo das flores para dentro da água. Era necessário repetir a operação vezes sem conta, até obter uma pasta consistente, tal e qual a cor da manteiga e que se podia partir com uma faca. Com ela barrávamos o nosso pão também inventado, que eram bocados de casca de pinheiro.
Um dia veio à nossa casa um senhor de lá de baixo, do Caniço, que o meu pai tinha conhecido quando estivera emigrado na Austrália. Trouxe com ele o filho, mais ou menos da nossa idade. Nós estávamos nos preparativos para "fazer manteiga", brincadeira que o rapaz nunca tinha visto na vida, talvez por viver numa zona mais perto do centro, sem pinheiros à volta.
O miudo ficou muito espantado com a nossa brincadeira. Acompanhou o processo todo e quando teve e a oportunidade chamou o pai e disse-lhe, com uma pronúncia a que não estávamos habituadas, muito caniceiro, "elas estão fazendo manteiga nuns cabaços". Novo, para nós, era a palavra cabaço para designar um qualquer recipiente. Para nós era um caneco, para ele um cabaço. Também achámos muito estranha aquela foam de falar, dizendo as palavras com outra sonoridade: palavras iguais, que soavam de forma diferente, que engraçado.
Mas o que era mesmo engraçado e um exercício de extrema paciência, era "fazer manteiga" com flores de pinheiro.
Arranjar peixe
Era uma das muitas brincadeiras com que as crianças se entretinham no tempo em que eu também era criança. As plantas eram os nossos brinquedos. De uma delas, retirando pequenos grãos avermelhados, fazíamos colorau, de outra retirávamos bagos a que chamávamos arroz, com as folhas dos castanheiros fazíamos vestidos inteiros, pregando as folhas umas nas outras com faúlhas de pinheiro, com as folhas redondas da carapuceira fazíamos chapéus.
Esta planta da fotografia, de que não sei o nome exacto, é uma espécie de ensaião com folhas carnudas muito verdes, de forma triangular, que dá uma bonita flor amarela, era o nosso peixe. Retirávamos uma folha, abriamos um pouco num lado, como víamos a minha ma~e fazer junto á cabeça dos chicharros e das cavalas, e procurávamos um fio que atravessaa a folha até cá abaixo. Depois de lhe encontrar a ponta, era só puxá-lo, com o mesmo cuidado com que víamos a minha mãe retirar desses peixes o debulho.
Arranjávamos peixe aos montes, como se estas folhas fossem chicharros ou cavalas de verdade. Lembro-me de os irmos colocando dentro de um qualquer recipiente, com as barrigas abertas e sem debulho. Que maravilha poder brincar assim, imaginando o que não era. Nenhum brinquedo sofisticado de hoje em dia, tão perfeito que até engana, pode causar a alegria que nos causava aquela função de arranjar o peixe, imitando os gestos dos adultos, com os recursos que a Natureza nos colocava à disposição.
Não tinhamos televisão. Nao tinhamos sequer luz eléctrica. Não tínhamos computador, nem leitor de CDs, nem livros, nem barbies, nem nada do que as crianças de hoje têm aos montes. Mas eu tenho a certeza que ser criança, nesse tempo, era bem mais interessante.
Esta planta da fotografia, de que não sei o nome exacto, é uma espécie de ensaião com folhas carnudas muito verdes, de forma triangular, que dá uma bonita flor amarela, era o nosso peixe. Retirávamos uma folha, abriamos um pouco num lado, como víamos a minha ma~e fazer junto á cabeça dos chicharros e das cavalas, e procurávamos um fio que atravessaa a folha até cá abaixo. Depois de lhe encontrar a ponta, era só puxá-lo, com o mesmo cuidado com que víamos a minha mãe retirar desses peixes o debulho.
Arranjávamos peixe aos montes, como se estas folhas fossem chicharros ou cavalas de verdade. Lembro-me de os irmos colocando dentro de um qualquer recipiente, com as barrigas abertas e sem debulho. Que maravilha poder brincar assim, imaginando o que não era. Nenhum brinquedo sofisticado de hoje em dia, tão perfeito que até engana, pode causar a alegria que nos causava aquela função de arranjar o peixe, imitando os gestos dos adultos, com os recursos que a Natureza nos colocava à disposição.
Não tinhamos televisão. Nao tinhamos sequer luz eléctrica. Não tínhamos computador, nem leitor de CDs, nem livros, nem barbies, nem nada do que as crianças de hoje têm aos montes. Mas eu tenho a certeza que ser criança, nesse tempo, era bem mais interessante.
segunda-feira, maio 15, 2006
Os pesquitos
Antigamente, uma das primeiras palavras do vocabulário das crianças, era "Peeeeeixe", gritado à maneira dos muitos pesquitos que passavam no sítio a vender peixe. "Era pesquitos como chuva. Um gritava ali, outro acolá em baixo, outro lá além", recorda a minha mãe. Por fim, as pessoas já conheciam os pesquitos pela voz com que gritavam. Sabiam à distância qual era o rabujento e qual era o mais careiro.
Os de Câmara de Lobos passavam com o peixe dentro de celhas, carregadas às costas, e a eles as pessoas chamavam os "xarnotas", que imagino um sinónimo de "xavelhas". As más-línguas diziam que eles "mijavam" no peixe para ele ter a aparência de fresco, vá-se lá saber se era verdade ou não.
Os pesquitos que vinham do Caniço, das zonas da beira-mar, traziam o peixe em dois canastros de cana, pendurados num cajado, um de cada lado. Eram normalmente rapazes novos, de 13, 14 anos, que iam embora deixando o peixe pendurado num prego sobre a lareira da cozinha da minha avolita, mesmo depois de ela ter garantido que não queria peixe nenhum nesse dia. "Não faz mal, fica a dever". E num abrir e fechar de olhos desapareciam deixando o peixe no prego da cozinha.
"Era tudo por quantia, aqui e na praça." Claro, não havia balanças. Lembro-me de ver o pesquito descansando a celha no chãozinho do Cabouco. Mal recebia a encomenda começaca a contar os chicharros, enquanto os enfiava num vime ou numa erva rija, entrando numa guelra e saindo na boca, ou ao contrário, não posso precisar.
Eles contavam muito depressa e quem estava a ver perdia a conta, não conseguia acompanhá-los. "Contavam por avanço." As pessoas ficavam convencidas de que estavam a trazer mais peixe do que aquele que estavam a pagar. "No fim, os pesquitos diziam sempre: mais um para o gato. Mas quando as pessoas iam ver, não tinha nem um a mais."`É por isso que no meu sítio ainda hoje, quando alguém conta muito depressa, se afirma: "Parece que está enfiando peixe." E invariavelmente a memória se perde nesses tempos em que não havia frigoríficos, nem supermercados, nem sequer balanças, e todos os dias passavam por aqui pesquitos como chuva.
Os de Câmara de Lobos passavam com o peixe dentro de celhas, carregadas às costas, e a eles as pessoas chamavam os "xarnotas", que imagino um sinónimo de "xavelhas". As más-línguas diziam que eles "mijavam" no peixe para ele ter a aparência de fresco, vá-se lá saber se era verdade ou não.
Os pesquitos que vinham do Caniço, das zonas da beira-mar, traziam o peixe em dois canastros de cana, pendurados num cajado, um de cada lado. Eram normalmente rapazes novos, de 13, 14 anos, que iam embora deixando o peixe pendurado num prego sobre a lareira da cozinha da minha avolita, mesmo depois de ela ter garantido que não queria peixe nenhum nesse dia. "Não faz mal, fica a dever". E num abrir e fechar de olhos desapareciam deixando o peixe no prego da cozinha.
"Era tudo por quantia, aqui e na praça." Claro, não havia balanças. Lembro-me de ver o pesquito descansando a celha no chãozinho do Cabouco. Mal recebia a encomenda começaca a contar os chicharros, enquanto os enfiava num vime ou numa erva rija, entrando numa guelra e saindo na boca, ou ao contrário, não posso precisar.
Eles contavam muito depressa e quem estava a ver perdia a conta, não conseguia acompanhá-los. "Contavam por avanço." As pessoas ficavam convencidas de que estavam a trazer mais peixe do que aquele que estavam a pagar. "No fim, os pesquitos diziam sempre: mais um para o gato. Mas quando as pessoas iam ver, não tinha nem um a mais."`É por isso que no meu sítio ainda hoje, quando alguém conta muito depressa, se afirma: "Parece que está enfiando peixe." E invariavelmente a memória se perde nesses tempos em que não havia frigoríficos, nem supermercados, nem sequer balanças, e todos os dias passavam por aqui pesquitos como chuva.
sábado, maio 13, 2006
A mulher do açucar
Entre as inúmeras pessoas que todos os dias passavam em casa dos meus avolitos a pedir uma esmolinha, porque os tempos eram de grande miséria, havia uma mulher que ficou conhecida até hoje como "a mulher do açucar", baptizada pela minha mãe, pelas minhas tias e pelos meus tios.
Nesse tempo de guerra, um dos produtos mais difíceis de arranjar era açúcar. Para conseguir um pouco de açúcar era necessário ter uma senha e mesmo com a senha a quantidade atribuida era muito pouca.
Não se sabe como, mas de certeza devido a algum conhecimento, essa mulher conseguia arranjar um pouco de açucar, que levava consigo nessa deambulação pelo campo, para oferecer a quem mais a ajudasse com produtos da terra, para matar a fome.
Foi esse o motivo do nome que passaram a usar para a identificar. Provavelmente chamava-se Maria ou Conceição ou outro nome comum nessa época, e assim sendo, tornava-se muito mais fácil saber de quem se tratava.
Ora, a mulher do açucar sentava-se a conversar na cozinha da minha avó, davam-lhe o que podiam, e depois, muito bem sentada, dizia: "Agora vou me embora. Muito obrigada, senhora Maria. Até mais outra, se Deus quiser." Dizia isto tudo, mas continuava muito bem sentada. Despedia-se e continuava sentada no banco comprido da cozinha.
Toda a gente achava aquilo diferente. Ninguém se despedia continuanao sentada, como se não fizesse a mínima intenção de se ir embora. Por isso é que ainda hoje quando alguém demora demaisado numa despedidada, quando parece que vai mas não vai, diz-se que é "a mulher do açucar".
Nesse tempo de guerra, um dos produtos mais difíceis de arranjar era açúcar. Para conseguir um pouco de açúcar era necessário ter uma senha e mesmo com a senha a quantidade atribuida era muito pouca.
Não se sabe como, mas de certeza devido a algum conhecimento, essa mulher conseguia arranjar um pouco de açucar, que levava consigo nessa deambulação pelo campo, para oferecer a quem mais a ajudasse com produtos da terra, para matar a fome.
Foi esse o motivo do nome que passaram a usar para a identificar. Provavelmente chamava-se Maria ou Conceição ou outro nome comum nessa época, e assim sendo, tornava-se muito mais fácil saber de quem se tratava.
Ora, a mulher do açucar sentava-se a conversar na cozinha da minha avó, davam-lhe o que podiam, e depois, muito bem sentada, dizia: "Agora vou me embora. Muito obrigada, senhora Maria. Até mais outra, se Deus quiser." Dizia isto tudo, mas continuava muito bem sentada. Despedia-se e continuava sentada no banco comprido da cozinha.
Toda a gente achava aquilo diferente. Ninguém se despedia continuanao sentada, como se não fizesse a mínima intenção de se ir embora. Por isso é que ainda hoje quando alguém demora demaisado numa despedidada, quando parece que vai mas não vai, diz-se que é "a mulher do açucar".
quinta-feira, maio 11, 2006
Muito açucre e muito café
Não cheguei a conhecer pessoalmente a ti Elisa, uma tia da minha avolita, irmã do meu bisavô, o Ti José Flôr da Ponte. Mas já ouvi falar dela mais vezes, talvez, do que se realmente a tivesse conhecido.
A ti Elisa ia visitar muitas vezes a minha avolita. Enquanto lá estava, serviam-lhe do que havia em casa, davam-lhe almoço, davam-lhe café de cevada, e davam-lhe muitas vezes um bocado de carne de porco para levar, porque a família passava muitas necessidades.
A ti Elisa nunca agradecia devidamente. Pelo contrário, dizia sempre mal do que lhe ofereciam para comer e beber ou do que lhe davam para levar. Achava sempre pouco e reclamava ali mesmo, na hora. Nunca ficava satisfeita.
Serviam-lhe o café de cevada e ela, provando, pousava a chávena e batia na mesa, dizendo:"Tem pouco açucre e pouco café. Isto é água de baratas." Davam-lhe um bocado de carne de porco e ela respondia, ironizando: "Mei même, uma fortuna!"
Ao domingo, a minha avolita cozia sempre para o almoço grão-de-bico com bacalhau. Havia pão de casa cozido na véspera e café de cevada a seguir. Certa domingo, passou a ti Elisa lá em casa e almoçou com toda a família, antes de prosseguir caminho. Mais tarde, chegada a casa do irmão, perguntaram-lhe se tinha almoçado em casa da minha avolita. Ela respondeu: "Comi um pouco de saragaço com água de baratas."
As minhas tias e os meus tios ficavam muito irritados com aquilo. Mas a minha avolita tinha uma alma enorme, sentia pena de toda a gente e a ninguém deixava de ajudar, ainda que fosse ela a que menos tinha.
Uma vez que a ti Elisa nunca ficava satisfeita, os meus tios decidiram pregar-lhe uma partida: exageraram tanto na quantidade de café como na quantidade de açucar. Serviram-lhe o café, ela velou a chávena à boca, pousou-a na mesa e, repetindo os gestos de sempre, exclamou: "Tem muito açucre e muito café!"
Eu não cheguei a conhecer a ti Elisa, mas de tanto ouvir contar estes episódios, imagino até a expressão do rosto e os gestos de desagrado que fazia em todas as situações. Cresci ouvindo a expressão "tem muito açucre e muito café" sempre que se estava perante uma pessoa mal agradecida e sigo também o código familiar. Em alterantiva ao "muito açucre e uito café", usamos por vezes: "Mei même, uma cabeça de porco. Ca fortuna!" A história da cabeça de porco é exagero dos meus tios, para reforçar a ideia de mal agradecida. Pois ainda que lhe dessem a cabeça do porco, inteira, com toda a certeza que a ti Elisa não ficaria satisfeita. Achava que as pessoas tinham a obrigação de lhe dar sempre mais. Às vezes simplificamos e dizemos apenas "água de baratas."
São três expressões com o mesmo significado e todas usamos, com propriedade, de vez em quando. Não faltam neste mundo pessoas mal agradecidas.
A ti Elisa ia visitar muitas vezes a minha avolita. Enquanto lá estava, serviam-lhe do que havia em casa, davam-lhe almoço, davam-lhe café de cevada, e davam-lhe muitas vezes um bocado de carne de porco para levar, porque a família passava muitas necessidades.
A ti Elisa nunca agradecia devidamente. Pelo contrário, dizia sempre mal do que lhe ofereciam para comer e beber ou do que lhe davam para levar. Achava sempre pouco e reclamava ali mesmo, na hora. Nunca ficava satisfeita.
Serviam-lhe o café de cevada e ela, provando, pousava a chávena e batia na mesa, dizendo:"Tem pouco açucre e pouco café. Isto é água de baratas." Davam-lhe um bocado de carne de porco e ela respondia, ironizando: "Mei même, uma fortuna!"
Ao domingo, a minha avolita cozia sempre para o almoço grão-de-bico com bacalhau. Havia pão de casa cozido na véspera e café de cevada a seguir. Certa domingo, passou a ti Elisa lá em casa e almoçou com toda a família, antes de prosseguir caminho. Mais tarde, chegada a casa do irmão, perguntaram-lhe se tinha almoçado em casa da minha avolita. Ela respondeu: "Comi um pouco de saragaço com água de baratas."
As minhas tias e os meus tios ficavam muito irritados com aquilo. Mas a minha avolita tinha uma alma enorme, sentia pena de toda a gente e a ninguém deixava de ajudar, ainda que fosse ela a que menos tinha.
Uma vez que a ti Elisa nunca ficava satisfeita, os meus tios decidiram pregar-lhe uma partida: exageraram tanto na quantidade de café como na quantidade de açucar. Serviram-lhe o café, ela velou a chávena à boca, pousou-a na mesa e, repetindo os gestos de sempre, exclamou: "Tem muito açucre e muito café!"
Eu não cheguei a conhecer a ti Elisa, mas de tanto ouvir contar estes episódios, imagino até a expressão do rosto e os gestos de desagrado que fazia em todas as situações. Cresci ouvindo a expressão "tem muito açucre e muito café" sempre que se estava perante uma pessoa mal agradecida e sigo também o código familiar. Em alterantiva ao "muito açucre e uito café", usamos por vezes: "Mei même, uma cabeça de porco. Ca fortuna!" A história da cabeça de porco é exagero dos meus tios, para reforçar a ideia de mal agradecida. Pois ainda que lhe dessem a cabeça do porco, inteira, com toda a certeza que a ti Elisa não ficaria satisfeita. Achava que as pessoas tinham a obrigação de lhe dar sempre mais. Às vezes simplificamos e dizemos apenas "água de baratas."
São três expressões com o mesmo significado e todas usamos, com propriedade, de vez em quando. Não faltam neste mundo pessoas mal agradecidas.
O indês
" - Fica um?" " - Fica, que é para a galinha pôr mais." Sem me aperceber, usei uma expressão que me deve ter ficado gravada na infância, no tempo em que as galinhas andavam soltas e faziam ninhos escondidos nos bardos e nos matos, e era preciso ter o cuidado de deixar sempre um ovo no ninho, para a galinha não o enjeitar.
A esse ovo, deixado de propósito, para evitar que a galinha, cacarejando muito e de forma zangada, fosse construir outro ninho, quem sabe em local de mais difícil acesso, chamava-se o "indês".
Não passava pela cabeça de ninguém esquecer o "indês". Os ovos eram preciosos para vender, ou para uso da casa, e era uma pena quando se perdiam porque ninguém tinha dado com o ninho. Ainda há relativamente pouco tempo foi o que aconteceu com os ovos de duas galinhas que sairam ao meu pai numa rifa comprada no bazar da festa da Senhora da Paz.
Uma das galinhas fez o ninho debaixo da pereira que fica à frente da casa dos meus avolits, por debaixo de uns matos acumulados junto ao tronco. So foi encontrado tempos depois, cheio de ovos, que já não puderam ser utilizados.
A outra escolheu um local ainda mais inacessível: no meio das abobareiras que cresciam debaixo da ameixeira que ficava adiante do chiqueiro. Só muito tempo depois, quando estavam a cavar a terra, cairam os ovos todos de uma vez desse ninho nunca descoberto a tempo.
As palheiras eram piores do que as galinhas, sem comparação! Faziam os ninhos em locais tão bem escondidos, que quando as pessoas se precatavam, elas apareciam "pelo terreiro p'ra lá, com uma ninhada atrás". Estepilha.
Lembro-me de um facto engraçado, que acontecia em casa dos meus avolitos: as galinhas tinham a mania de fazer ninho no canto da lenha, o espaço que ficava ao lado da lareira, por baixo de um armário de madeira contruído a partir de meia parede, e que servia para guardar a lenha e o mato utilizados para cozinhar, porque o comer era todo feito no lar.
As galinhas faziam o ninho no "canto da lenha", que maravilha, nada mais fácil de descobrir. Desde que se deixasse o indês, nãoeram pecisos mais cuidados, a não ser quando se ia retirar ou colocar a lenha, para não os partir ou não assustar a galinha.
O habito do indês era cumprido tão religiosamete por toda a gente, que um dia o meu tio João recebeu amêndoas pela páscoa - um luxo só cumprido com o menino da baboseira, o mais novo da casa - e uma das primeiras coisas que fez foi colocar um dos ovinhos, assim se chamavam as amêndoas, precisamente no canto da lenha.
Quando lhe perguntaram porque o fez, respondeu, desembaraçado: "Pa gla pô mais". Ainda mal sabia falar, mas já se apercebera desse hábito de deixar o indês para garantir que as galinhas não deixavam de pôr os ovos no ninho conhecido.
A esse ovo, deixado de propósito, para evitar que a galinha, cacarejando muito e de forma zangada, fosse construir outro ninho, quem sabe em local de mais difícil acesso, chamava-se o "indês".
Não passava pela cabeça de ninguém esquecer o "indês". Os ovos eram preciosos para vender, ou para uso da casa, e era uma pena quando se perdiam porque ninguém tinha dado com o ninho. Ainda há relativamente pouco tempo foi o que aconteceu com os ovos de duas galinhas que sairam ao meu pai numa rifa comprada no bazar da festa da Senhora da Paz.
Uma das galinhas fez o ninho debaixo da pereira que fica à frente da casa dos meus avolits, por debaixo de uns matos acumulados junto ao tronco. So foi encontrado tempos depois, cheio de ovos, que já não puderam ser utilizados.
A outra escolheu um local ainda mais inacessível: no meio das abobareiras que cresciam debaixo da ameixeira que ficava adiante do chiqueiro. Só muito tempo depois, quando estavam a cavar a terra, cairam os ovos todos de uma vez desse ninho nunca descoberto a tempo.
As palheiras eram piores do que as galinhas, sem comparação! Faziam os ninhos em locais tão bem escondidos, que quando as pessoas se precatavam, elas apareciam "pelo terreiro p'ra lá, com uma ninhada atrás". Estepilha.
Lembro-me de um facto engraçado, que acontecia em casa dos meus avolitos: as galinhas tinham a mania de fazer ninho no canto da lenha, o espaço que ficava ao lado da lareira, por baixo de um armário de madeira contruído a partir de meia parede, e que servia para guardar a lenha e o mato utilizados para cozinhar, porque o comer era todo feito no lar.
As galinhas faziam o ninho no "canto da lenha", que maravilha, nada mais fácil de descobrir. Desde que se deixasse o indês, nãoeram pecisos mais cuidados, a não ser quando se ia retirar ou colocar a lenha, para não os partir ou não assustar a galinha.
O habito do indês era cumprido tão religiosamete por toda a gente, que um dia o meu tio João recebeu amêndoas pela páscoa - um luxo só cumprido com o menino da baboseira, o mais novo da casa - e uma das primeiras coisas que fez foi colocar um dos ovinhos, assim se chamavam as amêndoas, precisamente no canto da lenha.
Quando lhe perguntaram porque o fez, respondeu, desembaraçado: "Pa gla pô mais". Ainda mal sabia falar, mas já se apercebera desse hábito de deixar o indês para garantir que as galinhas não deixavam de pôr os ovos no ninho conhecido.
segunda-feira, maio 08, 2006
Como o padre do Caniçal
"O padre do Caniçal só sabe ler no seu missal". Só há muito pouco tempo ouvi e registei este dito popular.
Foi no dia da última audição do Conservatório, em que a minha princesa tocou muito bem, quer a peça de violino, quer as duas de piano que lhe estavam destinadas.
Em casa, quando tentava praticar, raramente lhe saíam bem. Ali, mesmo com tanto público a assistir, e com o barulho de fundo das crianças mais pequenas, e apesar dos nervos, não se enganou uma única vez.
No regresso, explicou: "Nas aulas, quando está a minha professora, também nunca me engano. Só não toquei bem uma vez, o ano passado, quando tive de tocar acompanhada de outra professora."
A minha mãe, exclamou: "O Padre do Caniçal só sabe ler no seu missal."
E eu, de imediato a querer saber que história era essa, e que padre era esse, e porque é que alguém se tinha lembrado de criar aquele ditado, para ilustrar o poder do hábito. Mas a minha mãe não sabia responder a nada disso. Só sabia desse ditado, mais velho do que o norte tal como quase todos os outros.
Talvez não se baseie em nenhum caso passado com um qualquer padre do Caniçal, mas apenas tenha calhado assim por rimar tão bem.
A verdade é que somos todos um pouco assim, como esse padre do Caniçal, que só sabe ler no seu missal. Fora do nosso ambiente, longe das nossas coisas, afastados dos nossos hábitos, somos outros, sem dúvida.
Foi no dia da última audição do Conservatório, em que a minha princesa tocou muito bem, quer a peça de violino, quer as duas de piano que lhe estavam destinadas.
Em casa, quando tentava praticar, raramente lhe saíam bem. Ali, mesmo com tanto público a assistir, e com o barulho de fundo das crianças mais pequenas, e apesar dos nervos, não se enganou uma única vez.
No regresso, explicou: "Nas aulas, quando está a minha professora, também nunca me engano. Só não toquei bem uma vez, o ano passado, quando tive de tocar acompanhada de outra professora."
A minha mãe, exclamou: "O Padre do Caniçal só sabe ler no seu missal."
E eu, de imediato a querer saber que história era essa, e que padre era esse, e porque é que alguém se tinha lembrado de criar aquele ditado, para ilustrar o poder do hábito. Mas a minha mãe não sabia responder a nada disso. Só sabia desse ditado, mais velho do que o norte tal como quase todos os outros.
Talvez não se baseie em nenhum caso passado com um qualquer padre do Caniçal, mas apenas tenha calhado assim por rimar tão bem.
A verdade é que somos todos um pouco assim, como esse padre do Caniçal, que só sabe ler no seu missal. Fora do nosso ambiente, longe das nossas coisas, afastados dos nossos hábitos, somos outros, sem dúvida.
sábado, maio 06, 2006
Saltar à laja
Um rapaz e uma rapariga do meu sítio andavam para casar. Era tempo de guerra - a segunda grande - e o rapaz foi colocado na Tabua, juntamente com alguns colegas de tropa.
A rapariga escrevia ou pedia a quem soubesse que escrevesse cartas ao seu rapaz. Ora, em vésperas de um qualquer Primeiro de Maio não sei de que ano, a rapariga lembrou-se de perguntar ao rapaz se ele não teria licença para "vir saltar à laja".
Não se acabou o casamento, que os conheci casados por muitos e longos anos, mas aquilo caiu muito mal ao rapaz, que andou uns tempos a matutar na conversa da rapariga, embora sem qualquer motivo para desconfiar dela.
Coitada. A rapariga, na sua inocência, não fazia ideia do que significava a expressão "saltar à laja". Limitou-se a repetir o que ouvia dizer desde criança a propósito do Primeiro de Maio.
Em pequena também nunca percebi o que queria dizer a expressão. Depois entendi que tinha algo a ver com cornos, um acessório que, alguns na brincadeira, outros até bem a propósito, alguns homens exibiam nos passeios do Primeiro de Maio.
No Primeiro de Maio deste ano, suscito a conversa após o almoço e a minha mãe tenta explicar-me, à maneira dela, a origem da expressão "saltar à laja". Digo laja - e não laje - porque é assim que ouço dizer no meu sítio.
"Nesta altura há muitos cabritos novos, porque as cabras foram a passeio em Novembro. E sabe-se que os cabritos, se andarem na serra, saltam tudo. Saltam por cima daquelas pedras todas. Não há na serra umas pedras muito grandes e lajas? Então eles começaram a dizer que os homens com cornos, como os cabritos, saltam à laja nesta altura."
Completa a explicação com uma ressalva: "Isto é o que eu penso. Não é que ninguém me dissesse. Mas tem lógica, não tem?"
O raciocínio tem lógica, sim senhora. O que não tem lógica é eu sempre ter ouvido dizer de alguns homens que têm razões para "saltar à laja", mas nunca ter ouvido dizer o mesmo das mulheres. Talvez até haja uma razão. As maioria das mulheres, se tivesse de "saltar à laja" teria de o fazer mais amiúde e sem um dia específico perder-se-ia todo o sentido do ritual.
A rapariga escrevia ou pedia a quem soubesse que escrevesse cartas ao seu rapaz. Ora, em vésperas de um qualquer Primeiro de Maio não sei de que ano, a rapariga lembrou-se de perguntar ao rapaz se ele não teria licença para "vir saltar à laja".
Não se acabou o casamento, que os conheci casados por muitos e longos anos, mas aquilo caiu muito mal ao rapaz, que andou uns tempos a matutar na conversa da rapariga, embora sem qualquer motivo para desconfiar dela.
Coitada. A rapariga, na sua inocência, não fazia ideia do que significava a expressão "saltar à laja". Limitou-se a repetir o que ouvia dizer desde criança a propósito do Primeiro de Maio.
Em pequena também nunca percebi o que queria dizer a expressão. Depois entendi que tinha algo a ver com cornos, um acessório que, alguns na brincadeira, outros até bem a propósito, alguns homens exibiam nos passeios do Primeiro de Maio.
No Primeiro de Maio deste ano, suscito a conversa após o almoço e a minha mãe tenta explicar-me, à maneira dela, a origem da expressão "saltar à laja". Digo laja - e não laje - porque é assim que ouço dizer no meu sítio.
"Nesta altura há muitos cabritos novos, porque as cabras foram a passeio em Novembro. E sabe-se que os cabritos, se andarem na serra, saltam tudo. Saltam por cima daquelas pedras todas. Não há na serra umas pedras muito grandes e lajas? Então eles começaram a dizer que os homens com cornos, como os cabritos, saltam à laja nesta altura."
Completa a explicação com uma ressalva: "Isto é o que eu penso. Não é que ninguém me dissesse. Mas tem lógica, não tem?"
O raciocínio tem lógica, sim senhora. O que não tem lógica é eu sempre ter ouvido dizer de alguns homens que têm razões para "saltar à laja", mas nunca ter ouvido dizer o mesmo das mulheres. Talvez até haja uma razão. As maioria das mulheres, se tivesse de "saltar à laja" teria de o fazer mais amiúde e sem um dia específico perder-se-ia todo o sentido do ritual.