sábado, março 26, 2005

Os relâmpagos e as bogangas

Uma regra tão simples e só há pouco tempo a aprendi: os relâmpagos pecam as bogangas. "As luzes dos relâmpagos fazem as boganguinhas pecar", explicou o meu pai, quando quis explorar o assunto, perante um lamento que ouvi em relação às consequências de uma trovoada.
E como é que eu não sabia isso, ainda por cima eu que adoro boganguinhas, pequeninas e tenras, cozidas e só com um pouco de azeite por cima? As bogangas são mais comuns e não precisam de tantos cuidados como as abóboras, mas eu tenho um certo espírito de contradição e prefiro as bogangas.
Às vezes digo que gostava de ser agricultora, para estar sempre rodeada de terra, de Natureza, de ciclos repetidos e de conhecimentos antigos, e não sabia que os relâmpagos pecam as bogangas. Tenho andado desatenta de tantas coisas, afinal. E isso é imperdoável.
Que me fique de lição este conhecimento essencial sobre o futuro das boganguinhas quando surgem relâmpagos. Bogangas com b, sim senhora. Na minha terra, sempre ouvi falar em bogangas e não mogangas como já vi escrito. Sempre disse bogangas e vou continuar a dizer.
E vou ficar preocupada sempre que surgir no céu a luz de um relâmpago. "Pecar" é uma coisa muito mal injusta, até para uma simples boganguinha, que nunca fez mal a ninguém e a mim havia de me fazer bem.

sexta-feira, março 25, 2005

Arranjar os jardins e comer inhame

Assim mandava a tradição e era o que fazíamos todos os anos, na sexta-feira santa. Tínhamos de arranjar os jardins, os quintais e as veredas que circundavam a casa: tirar todas as ervas daninhas, as folhas velhas, os galhos quebrados. Era um trabalho que fazíamos com gosto, mesmo nos bocadinhos de caminho empedrados, em que custava muito, mesmo com a ajuda da foice ou de facas afiadas, retirar a erva rija que se instalava entre as pedras.
Fazíamos com prazer esse trabalho que lembrava a semana santa e a preparação para as visitas do Espírito Santo. O que nos fazia falta era a música. Durante a sexta-feira santa a minha mãe não nos deixava ligar o rádio, e era uma frustração não poder ouvir a música pedida, no Posto Emissor ou no Cambado. Se decidíamos cantar, como alternativa, nova resonda: na sexta-feira santa não se deve cantar, nem fazer jogos de roda, nem brincadeiras que nos façam rir, explicava a minha mãe.
Era o dia do ano que mais custava a passar, embora fosse agradável passá-lo a mexer na terra, nas ervas, nas plantas. Às três da tarde, parávamos e ficávamos, em silêncio, muito atentas, porque nos diziam que a essa hora o céu escurecia sempre, a assinalar a hora da morte de Jesus na Cruz. O almoço sempre foi igual: semilhas, batatas e inhame, acompanhados de um pouco de bacalhau cozinho, com molho de azeite, vinagre, alho, salsa e cebola.
Este ano sinto-me a condizer com a tristeza do dia. Se ao menos tivesse um jardim, de onde pudesse retirar todas as ervas, ou caminhos estreitos e empedrados para limpar!
Ninguém me criticará se ligar o rádio, ou a televisão, nem sequer se cantar ou dançar. Mas não me apetece nada disso. Talvez o almoço, exactamente igual ao das outras trinta e seis sextas-feiras santas da minha vida, ajude a salvar este dia.

segunda-feira, março 21, 2005

Os filhos da Coruja

Era uma vez uma coruja, que tinha como comadre uma águia. Uma dia a coruja precisou de sair, deixando os filhotes no ninho e foi pedir à comadre que os poupasse. A águia concordou, mas quis saber como identificar os filhos da comadre. Então a coruja respondeu: "Olhe, comadre, os meus são os mais bonitos de todos." E foi embora, muito descansada, fazer o que tinha a fazer, com a promessa da águia de que respeitaria o acordo.
Entretanto, a águia saiu à procura de almoço e quando chegou ao ninho da comadre, olhou para aqueles seres horrivelmente feios e pensou: "Tão feios que são, não são os filhos da minha comadre." E toca a comê-los para o almoço. Foi uma desgraça quando a coruja voltou e viu que a comadre lhe tinha comido os filhos. Foi pedir-lhe explicações, ao que ela respondeu, desculpando-se: "A comadre disse-me que eles eram bonitos, mas aqueles eram tão feios, que nunca julguei serem os seus."
A minha avó contava esta história e sempre que a contava dava muitas gargalhadas e ficava um bocado perdida naquele riso, era o jeito dela rir-se assim quando achava piada a alguma coisa. A minha também a conta, mas não se ri tanto como a minha avó, cada uma com o seu feitio.
Lembro-me desta história sempre que digo a alguém que a minha filha é a mais bonita de todas. "Nada tem a ver com a história da coruja, a minha é realmente a mais bonita de todas", acrescento. "É mesmo." Para a reconhecer na escola, entre mais de duzentas crianças, basta olhar atentamente e descobrir qual é a mais bonita.

quinta-feira, março 17, 2005

A gargantilha

Estava a ver a montra de uma ourivesaria, para fazer tempo, quando entrou uma mulher e pediu uma gargantilha. Uma gargantilha. As minhas tias tinham gargantilhas de ouro, sim senhora, e uma delas, bordadeira muito esperta acho que tinha até uma gargantilha e um cordão, que dava muitas voltas, igual ao que a minha avó mantinha ao pescoço da pequena imagem do menino Jesus, com uma fotografia do meu avô quando era jovem.
O homem da ourivesaria apontou para um local específico na montra, mas não, a gargantilha não era daquelas. A mulher queria uma gargantilha com pingentes maiores, e com uma flor grande ao meio, com pedras, exactamente igual às de antigamente. Eu já ia sair mas demorei-me mais, a ouvir a conversa e a imaginar em que situação, hoje em dia, uma pessoa usaria uma das tais gargantilhas e em que figura ficaria. A mulher não desistia da gargantilha e o senhor da ourivesaria disse que podia encomendar, daqui a um mês já a teria. "E é muito dinheiro?" "Uns mil e tal euros, já viu a quantidade de ouro, a grossura dela?" "Ena, c'a carroçaria" - rematou a mulher e saiu da loja, sem eu ter percebido se a encomenda tinha ficado assente ou não.

quarta-feira, março 16, 2005

Dente mouro, dente mourão....

"Dente mouro, dente mourão, toma lá este podre e dá-me outro são." As palavras deviam ser ditas enquanto se atirava o dente para cima do telhado , ou para cima do cu do forno, se fosse uma casa como a dos meus avós, com o forno saído para um dos lados da casa, de forma arredondada e coberto de telha. "Dente mouro, dente mourão, toma lá este podre e dá-me outro são."
A minha menina queria uma história antes de dormir e eu recorri ao velho truque: "Queres uma história de um livro ou uma história de quando eu era pequena?" Resulta sempre: "Uma de quando tu eras pequena, por favor." "Está bem, vou te contar a história dos primeiros dentes que me caíram." "Fixe, mãe. Como é que foi?" Eu contei e rimo-nos tanto as duas, que foi uma sorte os vizinhos do andar de baixo não terem reclamado. Contei-lhe do susto que apanhei quando percebi que tinha um dente a abanar, afinal eu era a criança mais velha da família, ainda não tinha visto aquilo acontecer com ninguém.
Contei que a minha avó amarrou à volta desse dente uma linha do bordado e ensinou-me a ir dando pequenos puxões na linha. Eu fazia o gesto, mas na verdade não dava puxão nenhum porque eu não queria perder um dente, assim sem mais nem menos. Mas perdi, ao dar uma dentada com vontade num bocado de pão com manteiga. Não engoli o dente por sorte e, assim desconsolada a olhar para ele, levaram-me até ao canto da casa e ensinaram-me a fórmula que se deve dizer quando se atira o dente para o telhado, ou para cima do cu do forno, neste caso. "Dente mouro, dente mourão, toma lá este podre e dá-me outro são." "Mas, mãe, não havia nesse tempo a fada dos dentes? Então foste tu que me puseste o meu presente debaixo da almofada, sua aldrabona?! Diz lá, foi ou não foi?" "Mas não queres ouvir o resto da história? Então ouve."
Depois dessa primeira perda, decidi que aquilo não voltaria a acontecer, não permitiria que mais nenhum dente saísse do lugar. Quando percebi que outro começou a bolir, guardei segredo, até ele ficar preso por uma simples pontinha de raiz, de tal forma que eu já nem conseguia falar normalmente. Mas nem pensar de alguém me tirar aquele dente do sítio. Então, o meu paai e a minha mãe combinaram que não passava daquele dia e desataram os dois a correr atrás de mim. Fugi tanto à frente deles, que parecia ter ganho asas, como o Peter Pan. Eles ficavam parados, a tomar fôlego, e eu continua a voar por entre veredas, poios, pinheiros, terreiros e bardos. Acabou o dia e eles não conseguiram tirar-me o dente. (Nesta parte da história, já estávamos as duas a rir às gargalhadas.)
No dia seguinte, a minha mãe decidiu levar-me ao médico: alguém tinha de tirar-me aquele dente. Eu ia atrás dela, pela vereda que nos conduzia à paragem do horário, sempre a choramingar e, de minuto a minuto, a confirmar se ainda tinha o meu dente. Numa dessas confirmações, tive a sensação de quase ter ficado com o dente na mão, mas voltei a pô-lo quietinho no sítio, como se ele fosse ficar colado com saliva. Desatei numa tal choradeira que a minha mãe, irritada, voltou para trás, dizendo que eu não ia fazer aquelas figuras à frente do médico.
Eu fiquei aliviada e passei o resto do dia quase sem comer, para não arriscar. Dormi muito descansada e assim que acordei, no dia seguinte, o meu primeiro gesto foi confirmar a presença do precioso dente. Dei logo um grito, o dente não estava lá. "Quem sabe foi o travesseiro? É melhor procurares." Levantei o travesseiro e lá estava ele. Voltei a atirá-lo para cima do cu do forno, repetindo: "Dente mouro, dente mourão, toma lá este podre e dá-me outro são."
É claro que fiquei com medo daquele travesseiro. Quer dizer, ele devia ganhar vida durante o meu sono, senão como teria conseguido tirar-me o dente? O meu travesseiro era um monstro, ai que del rei. Claro que tinha sido a minha mãe a tirá-lo e da forma que ele estava foi a coisa mais fácil, bastou tocar-lhe. E pronto, acabou-se a história dos primeiros dentes que perdi. "E os outros? Como é que foi o terceiro? Conta mais, mãe." A história dos outros já não me lembro, mas tenho a certeza absoluta de que os atirei todos para cima do cu do forno da casa da minha avó, enquanto dizia: "Dente mouro, dente mourão, toma lá este podre e dá-me outro são."

Ficar rapando

Um dia, quando o Ti Cláde era pequeno, a mãe dele mandou-o à fazenda cavar batatas, para cozer para o jantar.
Ele foi mas distraiu-se o tempo todo na brincadeira, afinal ainda era um pequeno. Quando chegou à hora de regressar a casa com as batatas, não tinha cavado nenhumas. A panela já devia estar ao lume, à espera das batatas e ele tinha de arranjar uma solução urgente.
Não teve remédio senão ir pedir. Foi a casa do Ti Menino, e pediu que lhe dessem umas batatinhas para a mãe cozer para o jantar. Mas era tanta a vergonha que, enquanto fazia o pedido e esperava as batatas dadas por caridade, foi rapando com a mão na terra de um bardo que ficava ao lado da porta da casa do tal Ti Menino.
O Ti Cláde (Cláudio) era um verdadeiro contador de histórias e sempre que contava este episódio punha toda a gente a rir à gargalhada. De tal forma, que passaram a utilizar a expressão "ficar rapando" como sinónimo de ficar envergonhado.
Lembro-me de me dizerem em criança: "Não faças isso, para não ficares rapando." E tenho na memória o tom exacto da voz do meu tio, quando nos repreendia dizendo: "Ei, ficaste rapando, eu não disse?". Esta história foi recontada ontem, a propósito de uma expressão envergonhada no rosto da minha filha e eu ri-me como há muito não me ria, ao imaginar a figura do ti Cláde, que não cheguei a conhecer, a rapar a terra do bardo, enquanto pedia as batatas para o jantar da família.

terça-feira, março 15, 2005

Casamento debaixo da Figueira do Costa

"Olha, fizemos como a ti Rosa, que eles diziam que foi casar com o Ti Libano debaixo da Figueira do Costa." A minha mãe seguia ao meu lado, depois de eu ter dado uma volta ao Funchal e ter concluído, uma vez que não encontrava estacionamento, ser melhor regressar a casa, em vez de levá-la à missa, como lhe tinha pormetido.
A minha mãe encolheu os ombros, um pouco desconsolada, e comparou aquela ida à missa de faz-de-conta com um casamento que ficou na história por causa das más línguas.
A história resume-se a isto: A Ti Rosa e o viúvo Ti Libano caminharam para o Caniço, supostamente para se casarem. Mas conta-se que ficaram um bocado fazendo tempo debaixo da figueira do Costa e depois regressaram a casa. Terão feito de conta que casaram, talvez para calar o povo.
Os antigos afiançavam que o cortejo do casamento não tinha passado de meio caminho, com um descanso debaixo da figueira do Costa. Trata-se de um local ainda hoje recordado devido à existência de uma enorme figueira, que dava sombra para um descanso na longa caminhada para o centro da freguesia e de onde colhiam figos, puxando pelos ramos com os chapéus-de-sol.
Havia outras figueiras famosas, como a do Besouro e a do Manilha, contou-me a minha mãe, enquanto fazíamos o caminho de regresso de uma missa a que não fomos. Mas fizemos de conta, sim senhora. Fomos ao Funchal e voltámos para casa, tal como, diziam as más línguas, tinham feito a Ti Rosa e o Ti Libano, no dia do casamento.

segunda-feira, março 14, 2005

As botas do Fava

O ti Fava, um homem do nosso sítio que não cheguei a conhecer, comprou certa vez umas botas, mas estas eram demasiado testas, e ele ficava irritado sempre que as calçava, porque lhe custava andar. Dizia: "Estes estupores não dobram!"
Eu não cnhecia a história das "botas do Fava" e fiquei a conhecê-la porque o comando da televisão de casa dos meus pais deixou de funcionar, vai-se lá saber porquê. Depois de mais uma tentativa frustrada para mudar de canal, a minha mãe exclamou: "Não dobra. É como as botas do Fava!" Fiquei curiosa com aquela comparação e pedi à minha mãe que ma explicasse. Foi assim que fiquei a saber da história das botas do Fava.
Fava era a alcunha, claro. Nesse tempo, as pessoas ainda se conheciam todas pelas incríveis alcunhas que se atribuíam umas às outras, muitas vezes a pretexto de pequenos episódios do dia-a-dia. Tal como derivam de pequenos acontecimentos do dia-a-dia muitas das expressões que ainda hoje se utilizam. Esta expressão, as botas do Fava, é um delicioso exemplo da capacidade que as pessoas, mesmo quase analfabetas, têm para criar metáforas.
Só é pena que nesta vida haja tantas coisas como as botas do fava, tantas coisas que "não dobram".

sexta-feira, março 11, 2005

Piolante singelo ou dobrado


Os campos estão cheios de pequenas flores amarelas. Estão tão bonitos! Na verdade, aquilo que os faz tão bonitos é uma simples erva, o piolante. Sempre gostei deste primeiro sinal da próxima estação. Continuo a adorar esta antecipação da Primavera. Em criança, deliciava-me a apanhar ramos dessas flores amarelas, de caule frágil, e com elas enfeitava pequenos frascos vazios e sem utilidade para os adultos, transformando-os em verdadeiras jarras.
Outra coisa que fazia ao piolante era comer-lhe os caules azedos. Mastigava-os, deliciando-me com o sabor azedo, mas não engolia o que restava do caule, quando já não passava de uma pasta verde. Era tão bom e nunca percebi que me fizesse mal comer caules de piolante. Há pouco tempo, a propósito desta recordação, a minha mãe confessou-me que também comeu piolante em criança.
Então lembrei-me que havia dois tipos de piolante, um de flores singelas e mais claras, que é o que existe agora em abundância; e outro de um amarelo mais escuro, com as flores dobradas, com pequenas rosas. Em criança, admirava mais as flores dobradas. Agora, gosto mais das singelas, apesar de serem elas as mais comuns.
Mas é na variedade que está a riqueza e ainda ontem senti o coração apertado porque ainda não tinha visto, este ano, piolante de flores dobradas. Pus-me a olhar para todos os poios e bermas de caminho por onde fui passando, e quando já estava quase a perder a esperança, julgo ter visto um pé de piolante de flores dobradas. Não sei se foi imaginação provocada pelo desejo de o ver. Espero que seja real, que ainda existam dos dois tipos de piolante, que deram um sabor diferente à minha infância e criaram em mim simpatia pelo amarelo, num sentimento de justiça apenas intuitivo, pois nessa altura ainda não sabia que quase ninguém gosta dessa cor e não percebi o espanto de toda a gente quando um dia a minha mãe foi à cidade e me perguntou, antes de sair de casa, de que cor eu queria o casaco que pretendia comprar-me. Respondi, sem a mínima hesitação: "Amarelo". Todos os adultos se espantaram e se riram com a forma decidida como eu escolhi a cor do meu primeiro casaco. A minha mãe fez-me a vontade e comprou-me um casaco amarelo-canário, que tinha pequenas galinhas desenhadas nos botões.

quinta-feira, março 10, 2005

Como o homem de Gaula

Antigamente, durante toda a Quaresma, os jogos de roda eram proibidos e tudo o mais que envolvesse demasiada algazarra, como tocar instrumentos musicais e cantar ao desafio. Aos rapazes, apenas era permitido o jogo do pião, e às raparigas, o das pedrinhas.
Em casa dos meus avós, estas regras cumpriam-se escrupulosamente. No início da Quaresma, a minha avó mandava, e os meus tios, embora já rapazes feitos, obedeciam, que todos os instrumentos musicais, rajão, braguinha, guitarra, fossem metidos na caixa, para de lá saírem apenas no Dia de Páscoa.
Era um sacrifício terrível, recordam os meus tios. Às vezes, era tanta a vontade de tocar um bocadinho, para animar, que retiravam da caixa, sem a minha avó se aperceber, um dos instrumentos e começam a pontear modas, muito baixinho. Quando a minha avó reparava, voltavam a guardar o instrumento e deitavam o arremate de que estavam apenas a afiná-lo.
Isto acontecia em todas as freguesias. Ainda ontem, a minha mãe me contou a história de um homem de Gaula, que lhe foi contada por um dos meus tios emigrados no Brasil, que por sua vez a ouviu de outro emigrante, natural de Gaula, e que talvez nem sequer tivesse conhecido o personagem principal, mas apenas ouvido contar a história.
Reza assim: Durante a Quaresma, os rapazes de uma família de Gaula já não aguentavam com saudades de tocarem os seus instrumentos musicais. Foram buscá-los à caixa, às escondidas, e fecharam-se num telheiro, afastado da casa, a tocar e a cantar. Quando o pai se percebeu, pegou num vergasto e deitou vereda acima, com a promessa de lhes dar uma forte malha, por terem desafiado tão sagrada determinação, obrigando-os, de imediato, a guardarem os instrumentos na caixa.
Aconteceu, porém, que ao chegar ao telheiro, se deparou com tão animado brinco, que em vez da prometida malha, largou o vergasto e juntou-se à festa, cantando e bailando junto com os filhos.
O mais engraçado desta história é o contexto em que hoje é contada: a história do homem de Gaula é recordada quando alguém vai buscar outra pessoa e, em vez de regressar com ela, se junta ao que ela está a fazer, e passam ambas a demorar-se. A minha menina estava a ver televisão em casa dos avós. Eu, cansada de chamá-la para vir jantar, e irritada com o facto de não obter resposta, saí da cozinha para ir buscá-la, com a promessa de a trazer arrastada por um braço, porque, afinal, a comida estava na mesa.
Ora, o que foi acontecer! Em vez de a trazer por um braço como prometera, juntei-me a ela, ambas interessadas pelo mesmo assunto, a ser transmitido naquele momento já não me lembro qual, nem em que canal.
Momentos depois, a minha mãe deitou a cabeça à porta e, com um sorriso, afirmou: "Então, fizeste como o homem de Gaula?" Contou-me a história, que lhe contou o meu tio, que a ouviu de outro emigrante no Brasil, que a tinha ouvido a algum familiar, antes de ter embarcado.

quarta-feira, março 09, 2005

Bruxe! Deves 'tar! Querias!

Eu fiz uma observação qualquer, que já não me lembro qual foi, e nem interessa para o caso, e o colega que me ouvia assentiu com um leve acenar de cabeça e esta única palavra: "Bruxe!" Pois é, houve uma altura, acho que durante a minha adolescência, em que este termo foi moda. Uma maneira de dizer: "É verdade!" A mim, soava-me "bruxe", mas talvez fosse bruxo, como que a referir-se a pessoa que adivinha as coisas, por artes de bruxaria. Será esta a explicação?
Não sei. Sei é que há poucos dias, espontaneamente, alguém usou a expressão "bruxe" e eu lembrei-me de a ter usado muito também. Fiquei calada, recordando outras expressões que também tiveram a sua época alta. "Deves 'tar!" era uma delas. Outra: "Deve ser..!" E um pouco depois, na época dos primeiros programas brasileiros na televisão: "Querias! Daqui a quinze dias." E agora, qual é a palavra da moda? Às vezes, a minha menina diz-me "Adoro-te bué!" E noutras situações, acompanha um gesto com a mão à frente dos olhos, com um prolongado "Dahhhh". Soam-me estranhas estas formas de falar, mas quando eu dizia "bruxe" e "deves 'tar" a minha mãe também tentava convencer-me, lembro-me perfeitamente, a perder a manha, porque já não podia ouvir aquilo.

domingo, março 06, 2005

Estou biqueira!

Ontem não me apeteceu jantar e hoje não tive apetite suficiente para um almoço normal. Estou biqueira, não sei porquê. Há algumas semanas, estava em casa de uma amiga que festejava anos, e perante a insistência de uma convidada em quase não provar as diversas guloseimas preparadas para a ocasião, ouvi perguntarem-lhe: "Estás biqueira?"
Biqueira! Há que tempos não ouvia esta palavra, usada pelo povo para classificar as pessoas que por natureza comem pouco. Ora, eu nunca fui biqueira. É verdade que em criança adorava papas de farinha torrada e detestava puré, mas do que gostava comia bem. A prova disso eram as minhas enormes bochechas encarnadas, que ficaram na história devido ao comentário, acompanhado de imitação, de um miúdo nosso vizinho que durante uma missa inteira não fez mais nada senão olhar para mim, espantado com aquela menina tão rechonchuda, metida dentro de um vestidinho de renda, ao colo da mãe.
Não sou esquisita com comida, desde que consiga vê-la. Ou seja, legumes que sejam legumes, em vez de estarem triturados e misturados em qualquer indecifrável mistela , carne que se veja o que é, sem estar dissimulada em molhos com cinquenta ingredientes, peixe que se veja que é peixe. Enfim, gosto de tudo o que seja como é, sem ter de tentar adivinhar ou brincar às escondidas. Gosto das sopas sem mistério feitas pela minha mãe, daquelas sopas que levam de tudo e onde se enxergam claramente todos os ingredientes, gosto de milho cozido ou frito, gosto de espigos de couve com carne de porco, batatas, semilhas e inhame, e também gosto de comidas mais requintadas, desde que correspondam a essa característica de não se esconderem de mim.
Ao escrever, lembrei-me de numa infinidade de pratos deliciosos.
E no entanto, sinto que continuo biqueira.

quarta-feira, março 02, 2005

Apreciar

"Eu estava apreciando!" Vinha na rua cheia de pressa e registei a expressão mas não consegui localizar o autor. Era um homem que estava junto à praça de táxis do Jardim Municipal, e falava para outro, talvez fossem taxistas os dois. "Eu estava apreciando!" Ouvi o riso dos dois. A cena que o primeiro homem "estava apreciando" devia ter sido engraçada.
Tinha saudades de ouvir o verbo "apreciar" aplicado com este sentido: observar, seguir com atenção. O sentido que aparece nos dicionários para "apreciar" não é bem esse. Apreciar é dar valor, estimar. Também pode ser considerar, julgar, avaliar. É assim que usamos a palavra quase diariamente.
"Eu estava apreciando!" Continuei o meu percurso sem abrandar o passo, mas sorri sozinha. Esse foi o primeiro significado que aprendi para a palavra "apreciar". Apreciar é também olhar com atenção, ver com olhos de ver, observar. Mas penso que no fundo, pressupõe que aquilo que assim se observa seja algo divertido, agradável, interessante, ou curioso. Eu também gosto muito de "apreciar."

terça-feira, março 01, 2005

Cascas de ovos, carvão e pé de café

Visitei as minhas orquídeas, espalhadas aqui e além ao longo do quintal da minha mãe. Dezasseis vasos, no total. Os meus são diferentes dos da minha mãe e por isso as distinguimos, as minhas e as dela, no meio daquela confusão. Percorri o quintal com nostalgia e fiquei triste por vê-las apagadas, tão diferentes do que foram. Algumas estão moribundas. Mas as da minha mãe continuam bonitas, como é isso possível?
A minha mãe até tem cuidado bem delas, está claro que tem. No meio do percurso, olhando para um dos vasos, reparei num amontoado de cascas de ovos junto aos bolbos da orquídea. A inha mãe até lhes deitou cascas de ovos. Já não me lembrava que as cascas dos ovos fazem bem às orquídeas. Antigamente, também lhes deitavam carvão e pé de café. Todos os dias, a minha mãe dirigia-se até um cântaro de orquídeas e deitava-lhe o resto do café de cevada que tinha ficado no fundo da cafeteira.
Agora as minhas orquídeas até têm cascas de ovos, coisa que eu não me lembro de lhes deitado alguma vez, e no entanto nem sequer se parecem com aquilo que eram quando eu estava perto e começava o meu dia, sempre, com uma visita a todas as plantas do quintal. Não sei como conseguia tempo para isso, mas esse tempo parece que não contava. Era um tempo a mais, que existia só para os meus dias serem mais felizes. É disso que elas sentem falta. Apesar de todas as cascas de ovos, do carvão e do pé de café que possam beneficiar.

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