quarta-feira, outubro 27, 2004

Uma aranhinha acolá em cima

"Olha uma aranhinha acolá em cima." No corredor, junto à janela, há mesmo uma teia com uma aranha. Via-a há pouco e exclamei: "Olha uma aranhinha acolá em cima." Tinha acabado de dizê-lo e já tinha o rosto todo transformado num enorme sorriso. Acabara de usar uma das expressões-código que circulam há anos na minha família. Usamos a expressão "olha uma aranhinha acolá em cima" para mostrar que não queremos falar de um determinado assunto. Usamo-la para desviar as atenções, para distrair os interlocutores, fazendo-os esquecer temas incómodos.
A criadora desta fórmula mágica foi a minha irmã mais nova, éramos ainda crianças. Já não me lembro qual era o assunto a que queria fugir, mas exclamou: "Olha uma aranhinha acolá em cima." Acho que na altura havia mesmo uma aranhinha no local indicado. Mas a partir daí começámos a usar a expressão totalmente desacompanhada de aranhas.
"Olha uma aranhinha acolá em cima!" Tantos anos depois, a fórmula voltou a funcionar. Hoje havia mesmo uma aranha, e todos se concentraram nela e discutimos, até, a existência ou não de aranhas venenosas na Madeira. O assunto inicial, que não interessa saber qual era, ficou esquecido.

domingo, outubro 24, 2004

Segredos da laranja

Qual é a coisa, qual é ela? "De manhã é ouro, ao almoço é prata, à noite mata." A laranja, claro está. Desde pequena que ouço esta sentença popular e na minha casa sempre a seguimos à risca. Não vale a pena morrer por uma simples laranja. Há dias, voltei a ouvir a máxima da laranja. Enquanto engomava a roupa a preceito, a Madalena afiançava que a laranja "de manhã é ouro, ao almoço é prata e à noite mata."
Fiquei com saudades do tempo em que havia o tempo das laranjas. Já não há o tempo das laranjas porque durante todo o ano há laranjas no supermercado. Agora já não há o tempo de nada. O verdadeiro tempo das laranjas é o Inverno. Depois de acabar o tempo das ameixas, começávamos a olhar para as laranjeiras, a sonhar com os frutos maduros.
No nosso jardim havia três laranjeiras, plantadas mais ou menos à mesma distância umas das outras: uma à frente da porta do "quarto-de-fora", outra à frente da janela do quarto dos meus pais e a terceira à frente da porta do nosso quarto. O vento encarregava-se de colher as laranjas, deixando o terreiro coberto delas. Nós dávamos carreiras à chuva, para as trazermos para dentro de casa, e depois comíamos as laranjas partidas aos quartos, saboreando-as com prazer.
Enchíamos a barriga com esse ouro e essa prata, e éramos ricas porque não precisávamos de muito mais para sermos felizes.

sábado, outubro 23, 2004

Chapéus-de-sol

Logo nas primeiras chuvas deste Outono, a pequena ficou sem guarda-chuva. Quis exibir o guarda-chuva novo, transparente e com desenhos cor-de-rosa da barbie, e bastou uns segundos para ficar sem ele: o vento transformou-o num emaranhado de plástico e baleias tortas ou partidas. Ralhei-lhe porque, afinal, naquele momento nem sequer estava a chover. Ralhei-lhe mas por dentro sorri. Pensei: "Ela também vai ter para contar a história de um guarda-chuva, tal como eu tenho a minha. E como é bom ter histórias para contar."
A minha história é de um chapéu-de-sol porque era assim que se chamavam os guarda-chuvas quando eu era criança. "Não te esqueças do chapéu-de-sol!", dizia a minha mãe, quando íamos caminhar para algum lugar e ameaçava chover. Essa contradição sempre me intrigou: "Mãe, porque se chama chapéu-de-sol se ele serve para tapar a chuva? Porque não o chamamos tapa-chuva?" Então, a minha mãe explicava que as pessoas mais velhas usavam muito o chapéu-de-sol para se protegerem do sol, nas longas caminhadas a pé, especialmente para a missa. E eu lembro-me de ver chapéus-de-sol abertos ao longe, na vereda, nos mais quentes dias de Verão.
O meu primeiro chapéu-de-sol caiu no meu sapatinho, numa noite de Natal. As minhas irmãs também tiveram um. Era azul claro e com desenhos pretos, abstractos, que lembravam pessoas.
Levei-o para a escola toda contente e logo no primeiro dia o chapéu-de-sol desapareceu. Escorregou para trás do armário e aí ficou durante muito tempo porque eu era demasiado timida para colocar o problema à professora. Todos os dias ensaiava o que dizer-lhe mas depois não tinha coragem suficiente para salvar o meu chapéu-de-sol, embora gostasse muito dele. O pobrezinho só foi resgatado do exílio forçado atrás do armário quando a minha mãe foi à escola falar com a professora. Foi uma alegria enorme rever o meu querido chapéu-de-sol.
Quando ficou com o guarda-chuva despedaçado, a minha filha ficou chateada, mas daí a bocado já nem sequer se lembrava do guarda-chuva. Afinal, tem outro guarda-chuva, encarnado, com bonecos desenhados e com um folhinho à ponta. E não é difícil que venha a ter outro, talvez mais bonito do que qualquer um dos anteriores. Afinal, é provável que nunca venha a contar a história do guarda-chuva da barbie, que nem sequer chegou ao Inverno.
No meu tempo era diferente; não se substituía facilmente um chapéu-de-sol estragado ou perdido. Talvez por isso, tenha aprendido a dar valor às coisas. Talvez por isso nunca me tenha esquecido do meu primeiro chapéu de sol, o único que tive durante anos. Estou contente por ter esta história para contar.






segunda-feira, outubro 18, 2004

Amexigueiras


"Eu subi à amexigueira
Para apanhar uma ameixa
Arranjei um pechãozinho
O pai quer, a mãe não deixa."


Fixei esta quadra na memória há muitos anos, quando despertei para a literatura oral e, em geral, para todas as tradições da minha terra.
Talvez tenha sido tão fácil decorá-la por conter duas palavras que acho um mimo. A primeira é "amexigueira". Em casa dos meus "avolitos" (os meus avós maternos) havia várias "amexigueiras", de diferentes qualidades, que para mim continuam a ser "amexigueiras" e não ameixeiras ou ameixieiras, como dizem os dicionários.
Trato desta forma correcta todas as outras árvores do mundo que dão ameixas. Mas aquelas, as que me acompanharam a infância e a adolescência com o seu sabor único, serão sempre "amexigueiras". À frente da cozinha, havia uma "amexigueira branca" ou francesa, e outra mais para lá, à frente da antiga gabana do porco.
Entre estas duas, crescia uma "amexigueira de damasco", que cobria com a sua sombra grande parte do terreiro, incluindo o poço de lavar, onde a minha avó lavava ajoelhada.
Num poio encostado ao extremo oeste da casa, para trás, havia uma "amexigueira de São João", quer era a primeira a dar frutos, os mais pequenos de todos, no mês de Junho.
Para leste, como que a demarcar o espaço útil do quintal, havia uma "roda" cheia de "amexigueiras inglesas", de frutos duros e do "tardo". Um pouco abaixo, no bardo à frente da casa dos meus tios, era o local da "amexigueira de sangue", ou "braba", cujos frutos serviam essencialmente para fazer "marmelada de ameixa". As ameixas de São João, primeiro, as de damasco, a seguir, e as inglesas, no fim do Verão, eram as minhas preferidas. Muitas das ameixas brancas caíam ao chão, formando pastas amarelas, e aí se perdiam. Eram demasiado doces. A minha mãe, as minhas tias e a minha avó às vezes comiam dessas ameixas com milho; era um conduto que tinha sido adoptado nos tempos difíceis da guerra. Não se comparava ao peixe, mas ficara-lhes no sabor das memórias e às vezes gostavam de fazer o tempo voltar atrás. Também eram usadas para fazer marmelada, que ficava com um tom acastanhado e bastante doce. A minha "marmelada" preferida era a vermelha, feita com ameixas de sangue, que ficava com um azedinho característico. Uma delícia!
A outra palavra especial desta quadra é "pechãozinho". Um "pechão" é um rapaz que vale a pena, um bom partido, um borracho. Belos tempos aqueles, em que bastava subir a uma "amexigueira" para avistar um "pechãozinho".

quarta-feira, outubro 13, 2004

A Chagodias

A venda da "Chagodias" era um ponto de referência. Localizada a meio caminho entre a nossa casa e a Camacha, e apenas uma ladeira antes da paragem do horário, praticamente em todas as conversas que envolviam percursos se falava nela. "Encontrei a senhora Maria na Chagodias." Talvez: "Começou a chover quando se vinha um pedacinho acima da Chagodias." "Ainda íamos abaixo da Chagodias, à hora que o horário sai da Camacha." Chagodias para cá, Chagodias para lá. Muito raramente entrávamos para comprar alguma falta, pois a venda onde fazíamos as compras da semana era outra. Lembro-me de pensar, intrigada, sobre qual seria o significado de "Chagodias", uma palavra que não se parecia com nenhuma outra.
Depois de passar a infância e a adolescência a dizer e a ouvir Chagodias, eis que o mistério foi desvendado. Chagodias é, afinal: Achada Diogo Dias. É o local e não apenas a mercearia, a que também chamavam do "Vermelho".
Achada Diogo Dias. Chagodias: três palavras resumidas numa, à boa maneira da economia popular. Hoje até existe uma placa pintada com o nome da rua: Rua Achada Diogo Dias. Fiquei contente com a solução deste mistério. Mas também fiquei triste. De cada vez que vejo resolver-se um mistério, por mais pequeno que seja, sinto-me assim. Com lágrimas nos olhos, deixo que a vida me afaste mais alguns passos da infância.

terça-feira, outubro 12, 2004

Os sapatos da Ti Carolina

Muitos anos depois de ter casado, quando toda a gente já se tinha esquecido até do marido que lhe fugira para Lisboa, deixando-a sozinha com um bando de filhos, a ti Carolina às vezes exclamava, com seriedade: "Já me arrependi de ter comprado os sapatos daquela moda." Referia-se aos sapatos do casamento e por isso é que esta história nunca foi esquecida. A ti Carolina já morreu há bem mais de vinte anos e ainda hoje, na minha família, continuamos a usar esta expressão sempre que alguém se arrepende de coisas passadas há tanto tempo que já deviam ter sido esquecidas.
Hoje estou nostálgica e caí nesse erro, o de arrepender-me de coisas passadas. Mas apercebi-me a tempo e, com um sorriso, exclamei para os meus botões: "Pois é, os sapatos da ti Carolina, tal e qual." A ti Carolina deve estar contente. Nunca foi esquecida. E tudo graças aos sapatos de um casamento que nem sequer foi feliz.

segunda-feira, outubro 11, 2004

Burra do cisco

Há anos que não ouço a palavra "cisco". Na minha infância, o cisco era o lixo. Qualquer lixo era cisco. "Já varreste o cisco?" "Esta casa está cheia de cisco!" "Vai deitar isto num instante à poça do cisco."
Um pouco abaixo do quintal, à frente de um poio e antes do corador, tínhamos a "poça do cisco." Atirávamos tudo para lá e de vez em quando a minha mãe transformava o cisco numa fogueira. Só devo ter aprendido a palavra "lixo" nalgum texto do livro da escola, ou mais provavelmente nalgum programa de televisão, quando finalmente tivemos também direito ao aparelho mágico que trazia pessoas dentro.
"Sua burra do cisco!" Quando me queriam mostrar que tinha feito alguma asneira, chamavam-me "burra do cisco." Não havia nada pior do que ser uma "burra do cisco". Era a forma de os adultos mostrarem que estavam zangados com os meus comportamentos de criança.
Hoje ninguém me chama "burra do cisco" mas às vezes sinto-me uma. Com várias escolhas pela frente, ou fico perdida na indecisão, ou decido-me pelas erradas.
Era tudo tão fácil quando havia alguém a orientar-me no caminho certo, ainda que fosse dizendo apenas: "Não faças isso, sua burra do cisco!".





domingo, outubro 10, 2004

Fazer arroz na missa

Nunca mais fizeram arroz na missa. Agora, quase sempre é o grupo de jovens que canta e muito afinadinho. Acabou-se o arroz e eu confesso que tenho algumas saudades. "Fazer arroz" significa desafinar. Antigamente, havia arroz todos os domingos. Havia sempre alguém que levantava a voz mais do que os outros, como para sobressair, ou alguém que não conseguia acompanhar o grupo, ao som do órgão, e o resultado era drástico.
As pessoas que assistiam à missa olhavam umas para as outras, e nessa troca de olhares manifestavam uma cumplicidade geral. Às vezes esboçavam um sorriso, de outras vezes um encolher de ombros, ou apenas um levantar de sobrancelhas e uma espécie de careta. Algumas mais afoitas atreviam-se a sussurrar algo ao ouvido da vizinha mais próxima. Ou então sentiam vergonha, como eu, e tentavam disfarçar, fixando algum pormenor da Igreja.
Lembro-me de ouvir perguntar a quem acabava de chegar a casa, vinda da missa, ainda afogueada pelo cansaço da longa caminhada, se tinham feito muito arroz. A resposta era deliciosa, pois de cada vez a imaginação transformava o simples arroz num prato mais elaborado: "Uh se houve...e desta vez o arroz até era com couves e feijão!"
Talvez as pessoas estivessem mais atentas à missa, na tentativa de se aperceberem bem de todo o arroz. E talvez a memória da missa se mantivesse viva durante mais tempo. Talvez as pessoas se sentissem mais unidas, numa cumplicidade que não precisava de muitas palavras.
Como terá nascido a expressão "fazer arroz"? Nem sequer sei se é usada em toda a ilha, ou até noutros locais do país. Ouço-a desde pequena na boca das pessoas da minha paróquia e não sei mais nada. Perguntei à minha mãe e ela tentou encontrar uma explicação. "O arroz cru quando é atirado ao chão, faz um barulho...vês? É desafinado!" E exemplificou com um punhado de grãos.

quarta-feira, outubro 06, 2004

Reles como um cachorro

Sempre me interroguei sobre a oportunidade desta comparação popular. "Reles como um cachorro" porquê? Apesar da minha pouco experiência com cães, não os julgo animais maus. Sempre ouvi dizer que são os melhores amigos do homem e muito fieis. Por isso mesmo, nunca uso a expressão. Mas há dias, perante um caso concreto, saiu-me: "Reles como um cachorro!" E a minha mãe acrescentou: "É merdinha de cachorro só por si". Esbocei um sorriso, apesar da indignação e da revolta que não conseguia disfarçar e que são os sentimentos que qualquer forma de maldade me desperta.
Há pessoas assim. "Merdinha de cachorro só por si". Esta expressão já é mais adequada, mas ainda assim fica aquém da realidade. A "merdinha de cachorro" pode incomodar mas é fácil de lavar. A maldade, pelo contrário, está tão entranhada que não há detergente capaz de a fazer desaparecer.

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