sexta-feira, abril 18, 2008

Um quarto de dia

- "Mais um quarto de dia!" A expressão é dita sempre num tom preocupado. Eu traduziria "mais um quarto de dia" como "mais um problema para resolver, que chatice!" Um problema inesperado, normalmente quando se está com pressa e não se conta com contratempos, ainda que sejam pequenos.
Uma criança que se suja na hora de sair para uma festa, para a qual já estávamos atrasados, é "um quarto de dia". O carro ficar sem gasolina e a próxima bomba estar distante é um "quarto de dia". Todos os dias deparamo-nos com "quartos de dia", os exemplos não teriam fim.
"Um quarto de dia" refere-se a um quarto de dia trabalho e foi a forma encontrada pelo povo para dar relevância a esses imprevistos. Mesmo que seja de resolução fácil e relativamente rápida - como acontece normalmente neste caso - a dimensão do problema é automaticamente ampliada com o uso desta expressão.
Também já ouvi a expressão usada em tom irónico, divertido, denunciando o exagero nela contido.

terça-feira, abril 15, 2008

Até já foi ao boi...

Deste lado do telefone, mal conseguia ouvir a irmã, à distância de mares e continentes. Explicou-lhe que ouvia mal, estava ficando meia mouca. Do outro lado, para lá de vários mares e continentes, a irmã responde prontamente: "O quê? Já 'tás como o ti Antôine da venda?" De um lado e do outro, com mares e continentes pelo meio, riram-se as duas, muito se riram elas da graça.
O ti Antôine da venda, coitado, ouvia muito mal, podia-se dizer que o pobre do homem estava mesmo ficando mouco.
Certa vez, adoeceu-lhe a vaca e, em simultâneo, a mulher. Claro que se sabia tudo no sítio, e bem mais depressa no que nesta era da internet e dos telemóveis. Por isso, cruzando-se algures no caminho com o ti Antôine da venda, alguém o cumprimenta e pergunta-lhe pela saúde da esposa.
O ti Antôine responde sem qualquer hesitação: - "Já 'tá boa. Hoje até já foi ao boi." Claro que se referia à vaca e não à mulher. O episódio ter-se-à devido à quase surdez do Ti Antôine da venda, coitado. Mas também não me admirava nada que ele estivesse mais interessado na saúde da vaca do que na da mulher, nunca se sabe.
O certo é que aquele episódio se espalhou e foi contado e recontado e tornado anedota talvez para sempre. Ora dizer que a mulher já tinha ido ao boi, ninguém inventaria melhor anedota. O Ti Antôine já há muito deixou este mundo e este pequeno episódio ainda arranca gargalhadas a duas irmãs separadas há quase quarenta anos.. E o curioso é que foi a irmã emigrada a lembrar-se da história do ti Antôine, por vezes quem está longe, à distância de mares e continentes, lembra-se mais deste tipo de coisas.

sábado, abril 12, 2008

Já morreu Adelaidinha

Já morreu Adelaidinha
Já lá vai no seu caixão
A quem deixaria ela
O seu bonito cordão?

O seu bonito cordão
Deixou ela à sua tia
Para que ela lhe rezasse
Por alma uma Avé-Maria

Já morreu Adelaidinha
Já lá vai ela a enterrar
A quem deixaria ela
O estojo de bordar?

O estojo de bordar
Deixou ela à sua mãe
Para que ela lhe rezasse
Por sua alma também.

Já morreu Adelaidinha
Já lá vai ela p'ró céu
A quem deixaria ela
O seu bonitinho véu?

O seu bonitinho véu
Deixou à sua madrinha
Para que ela lhe rezasse
Mais uma Salve-Rainha.

Uma das cantigas da infância e da juventude. Uma cantiga que me faz ter soidades do tempo em que bastava uma cantiga para alegrar a alma, do tempo em que tudo fazia sentido e nada era complicado. Por exemplo, os bens da Adelaidinha foram deixados por ela a quem quis e aceites em paz, suponho, coisa rara nos dias que correm. Hoje em dia não há heranças divididas sem brigas. O estojo de bordar, o cordão, o véu: até os objectos mais simples tinham valor, e isso era tão bonito.

terça-feira, abril 08, 2008

Presumida

A minha avolita, que Deus a tenha no Céu, nunca usava a palavra "vaidosa". Dizia antes "presumida".
Parece que estou a vê-la contar, por entre gargalhadas, que era muito presumida quando era nova: gostava de andar sempre com os vestidos à moda, tinha o cuidado de os mandar fazer segundo os ditames mais recentes e tinha adorado a primeira blusa sem manga da sua vida, nos tempos em que ia à missa já com o sentido no meu avolito.
A minha avolita foi sempre presumida e gostava de ver pessoas presumidas, que se arranjassem bem e tivessem gosto nisso, pessoas despachadas e seguras de si.
Lembrei-me agora da minha avó e demoro-me a acarinhar estas memórias simples. Lembrei-me dela por causa da palavra presumida.
É verdade: estou presumida! Afinal, este blogue já tem 450 textos, uma meta cumprida com o post anterior.

Ninguém diga o que não sabe

"Alto da Serra das Neves
Onde o penedo caiu
Ninguém diga o que não sabe
Nem afirme o que não viu"

Quadra recolhida no Sítio da Ribeira dos Pretetes, Caniço

Um mandado

Há bem poucos dias presenciei o espanto de alguém perante a palavra "mandado", utilizada no sentido de recado. A palavra sempre me foi familiar.
Todas as criança do meu tempo faziam "mandados" a pedido dos adultos. Íamos "fazer mandados" a casa dos vizinhos várias vezes ao dia, se fosse necessário.
Mandavam-nos, por exemplo, pedir uma agulha emprestada, uma tesoura de bicos para recortar o bordado, um qualquer ingrediente de cozinha que faltava para acabar o jantar. Talvez entregar o "modelo" da tela, ou levar as peças já feitas, ou quem sabe trocar linhas ou lãs, ou dizer a alguém que tinha ido com o bordado que regressasse mais cedo a casa por um qualquer motivo, enfim.
Nessa época não existiam ainda telefones no nosso sítio, as crianças eram muito úteis nessa tarefa de "fazer mandados". Uma das quadras que recolhi nos anos oitenta, usada sobretudo no brinco, quem sabe também no Xaramba ou durante a apanha da erva, falava dessa ideia de mandado associada às crianças.

"Se não fosse minha mãe
Já podia 'tar casado
Já podia ter um filho
Que me fizesse um mandado."

Tranquelhento e tracista

Estes dois adjectivos, de significado semelhante, parecem-me ser já raramente usados, ao contrário de outros que aqui tenho referido.
Tanto tranquelhento como tracista são adjectivos aplicados a pessoas más, reles, vingativas, que muitas vezes praticam as suas maldades "pela calada", prejudicando os outros sem dar muito nas vistas.
Diz-me uma amiga do centro da freguesia que o primeiro adjectivo seria "trinquelhento" e que derivaria do verbo "trincar", tem toda a lógica. Na linguagem oral as vogais são facilmente substituídas, dependendo da pronúncia característica das diferentes zonas ou até da forma particular de falar de uma determinada pessoa.
No meu sítio sempre dissemos "tranquelhento", pelo menos sempre foi assim que me soou, e continuamos a dizer. Na minha família ainda usamos as duas palavras e eu contribuo como posso para atrasar a morte definitiva destes termos do falar madeirense.
A única forma possível de eu desistir delas seria a certeza de que deixando de as utilzar também deixariam de existir pessoas tranquelhentas e tracistas, que é o que mais há por esse mundo fora.

Peguelhar

Estou tão habituada ao verbo "peguelhar" que não o sei traduzir. Peguelhar é aquilo que fazem as pessoas peguelhentas. Boa tentativa.
Não encontro tradução nem para o verbo, nem para o adjectivo; muitos não precisarão de explicações pois apercebo-me de que são ainda muito usadas as duas palavras. Para os outros, os mais novos e os de fora, aqui fica uma possível descrição.
Uma pessoa peguelhenta está sempre a reclamar, nunca está satisfeita com as coisas, se estiverem de uma maneira, preferia da outra, se estiverem da outra, o melhor seria ao contrário, é uma pessoa que parece inventar pretextos só para poder estar sempre a criticar, a exigir, a reclamar, a dizer mal, a deitar abaixo.
Penso que não será necessário esforçar-me mais para tentar definir o adjectivo peguelhento e, em consequência, o verbo peguelhar. Com certeza todos já identificaram no seu rol de conhecidos, talvez até de familiares, pessoas que têm o hábito de peguelhar.
O que nos vale é que, tirando alguns casos crónicos, o mal é normalmente passageiro. Todos temos os nosso dias de peguelhentos, todos caímos por vezes na tentação de peguelhar, quem estiver inocente que atire a primeira pedra.

Uma resonda

"- Ainda por cima, deu-me uma resonda!"
- "Resonda?" Sim, uma resonda. Resondou-me, pois claro. Há pessoas que resondam os outros, precisamente quando lhes reconhecem razão. É uma forma de se protegerem, não é?
- "Resondam?" Sim, resondam.
Nunca deixei de utilizar o substantivo "resonda" e o verbo "resondar". Utilizo-os de forma tão habitual, que quase nem dou por eles, a não ser que o interlocutor reaja assim, como quem não percebeu.
Então lembro-me que resonda e resondar são palavras do léxico madeirense e explico, contente por serem afinal tantas as palavras particulares do nosso falar e ainda mais pelo facto de algumas delas continuarem tão vulgarmente em uso.
"Resonda" é um termo mais forte do que raspanete, do que reprimenda, talvez seja só a força do hábito, talvez, mas para mim "resonda" é a palavra certa. E sorrio, ao terminar a minha pequena lição de madeirense. Afinal, não é todos os dias que uma resonda nos consegue arrancar um sorriso sincero.

segunda-feira, abril 07, 2008

Ciranda, Cirandinha

A Ciranda me convida
P'ra eu ir ao seu serão (bis)
P´ra fiar a maçaroca
do mais fino algodão (bis)

O Ciranda, cirandinha
Vamos nós a cirandar (bis)
Vamos dar a meia volta
E outra meia vamos dar
Vamos dar a meia volta
E quem 'tá bem deixa-se estar.

Quem 'tá bem deixa-se estar
Eu não posso estar melhor (bis)
Estou ao pé do meu benzinho
Não há regalo maior. (bis)

A Ciranda quer qu'eu morra
Digo eu que morra ela (bis)
Vai-se fazer um chazinho
Nem que seja de marcela. (bis)

Ó Ciranda, cirandinha
Vamos nós a cirandar (bis)
Vamos dar a meia volta
E adiante troca o par. (bis)

Adiante troca o par
Qu'este meu já está trocado (bis)
O amor que Deus me deu
Trago aqui ao meu lado. (bis)

Dei por mim a trautear a cirandinha, e de repente já não me lembrava de todos os versos, tal como mos ensinaram, tal como os cantava no princípio dos tempos, de repente já não tinha a certeza se me lembrava e fiquei triste. Mas.
Sim, tinha-os escrito em 1986 com a minha letra redonda, igual. E aqui fica a versão que se cantava no meu Sítio durante a minha infância.
A Ciranda é uma cantiga de roda, era em roda que a cantávamos vezes sem fim, mas não só. Cantávamos a Cirandinha em qualquer ocasião, enquanto varriamos o terreiro, ou enquanto bordámos debaixo da ameixeira, ou ao serão junto à luz de petróleo ou enquanto percorríamos a vereda, numa qualquer "volta" a mando dos adultos.
Cantava-se a Cirandinha, num cirandar perfeito de tempo e de gestos, seguros e certos, ambos, e eternos também e no lugar exacto, único, do universo. Cantava-se a Cirandinha sem pensar em nada a não ser na Cirandinha que não se sabia quem era mas queríamos saber, insistíamos por vezes em desvendar os mistérios das cantigas mas depois desistíamos, acho que percebíamos que as melhores cantigas tinham de ter algo de incompreensível.

Chuva de Abril

Chove neste início de Abril, ninguém se espante. Chover em Abril é normal. Daí o velho ditado:

"Em Abril, águas mil."

Para além de ser normal chover em Abril, a chuva deste mês sempre foi bem vista por quem vive da terra. Veja-se mais dois provérbios, que me habituei a ouvir desde pequenina:

"Chuva em Abril, é alqueire e barril."
"A chuva de Abril é o governo do ano."

Também me lembro de ouvir inúmeras vezes outro provérbio, que é mais uma forma de lembrar que Abril é um mês molhado:

"Em Abril a velha ainda queima o canzil."

Se "a velha ainda queima o canzil" quer dizer que não há lenha para pôr a arder no lar e se não há
lenha capaz de arder é por estar tudo molhado devido à invernia. Nem mais.

sexta-feira, abril 04, 2008

Acarão

" - Vais tomar isso acarão do estômago?" Não, toda a gente sabe que faz mal tomar remédios acarão do estômago a não ser que seja mesmo recomendado, há excepções para tudo.
Acarão.
" - Não te sentes acarão da frieza. Isso faz um mal desgraçado." Sim. Está bem. Um pequeno tapete de retalhos sobre o cimento e pronto, está resolvido o problema. Alguma razão deve ter a sabedoria popular, confirmada e reconfirmada ao longo dos séculos.
Acarão.
" - Vestiste essa camisola de lã acarão do corpo?" Sim, quer dizer, ora bem. Com outra por dentro, fininha, de algodão, fica bem mais confortável.
Acarão.
A palavra acarão continua a ser muito usada, em vários contextos, para significar directamente sobre uma superfície, sem protecção.
O povo recorda constantemente as regras mais básicas: não tomar medicamenteos, nem determinadas bebidas/comidas acarão do estômago (em jejum), não se sentar acarão da pedra, se estiver fria é prejudicial, se estiver quente ainda é pior, não vestir alguns tecidos acarão da pele, atençãò às alergias.
Eu acrescento outro ensinamento, embora sem o peso das sentenças confirmadas ao longo de gerações, apenas sentida ou pressentida, sei lá, acrescento solenemente que também com o coração é preciso cuidado. Algumas emoção não deviam ser vividas acarão.

terça-feira, abril 01, 2008

Porta-me lá

" - Porta-me lá". Disse "porta-me lá" e encolheu levemente os ombros, sem pousar os gestos. Sem deixar o que estava a fazer, as mãos ocupadas com tachos de cozinha, à volta do fogão.
"Porta-me lá" é uma forma de dizer sim. Mas é um sim diferente de um sim normal. É um sim que na verdade significa não me importo, podes fazê-lo (seja lá o que for) que não me faz grande diferença, não me afecta, não me faz mal nenhum e portanto "porta-me lá".
Este "porta-me lá" é na realidade "importo-me lá", mas o povo encurtou o verbo, tornou-o mais curto, mais a jeito de usar, mais fácil de dizer. Por vezes, "Porta-me lá" vai além do tal sim dito de forma diferente, e quer dizer deixem-me em paz, seja o que for que disserem ou fizerem, seja o que for que esteja a acontecer no mundo, não quero saber.
"-Porta-me lá!" Encolhe os ombros, mantém a atenção concentrada no que está a fazer. E eu sorrio. Sorrio para o tempo que às vezes perdura, imóvel, dentro do próprio tempo. As minhas duas avós também teriam dito "porta-me lá". As minhas duas avós, ambas Maria, teriam dito "porta-me lá", e os meus dois avós, ambos José, teriam dito também "porta-me lá." Com essa certeza, sorrio para o tempo que às vezes perdura, imóvel, dentro de nós.

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