sexta-feira, novembro 24, 2006
A velha escamada
"A velha escamada, vai da rua mijar p'ra escada. A velha escamada vai da rua mijar p'ra escada..." O refrão tinha magia porque rimava e porque falava dessa velha que ia mijar para a escada, e então nós perguntávamos porque é que ela havia de fazer isso e a minha mãe respondia que ela o fazia porque tinha pouco juizo. Pois se ela estava na rua o que devia fazer era ir à retrete em vez de ir para dentro de casa, usar o bacio.
Este era um dos refrões da infância. "A velha escamada vai da rua mijar para a escada." Sem nos apercebermos, na brincadeira, aprendíamos algo essencial à vida. Aprendíamos sobre o adequado e o não adequado, sobre o lógico e o não lógico, sobre a sensatez. Aprendíamos o sentido de oportunidade, aprendíamos os critérios de proximidade. Aprendíamos tanta coisa, sem sabermos.
Este era um dos refrões da infância. "A velha escamada vai da rua mijar para a escada." Sem nos apercebermos, na brincadeira, aprendíamos algo essencial à vida. Aprendíamos sobre o adequado e o não adequado, sobre o lógico e o não lógico, sobre a sensatez. Aprendíamos o sentido de oportunidade, aprendíamos os critérios de proximidade. Aprendíamos tanta coisa, sem sabermos.
quinta-feira, novembro 23, 2006
Ensalecidos
"Eles ficaram ensalecidos!" Eles, os homens, tinham decidido ir conhecer um novo bar que abrira há poucos dias na zona. Foram tomar um copo de vinho e ficaram lá imenso tempo, seduzidos pela novidade, pelo ambiente, pelo vinho que era bom e, sobretudo, pelo dentinho que não me souberam explicar o que era, mas garantiam nunca ter provado um tão saboroso.
"Eles quase que não vinham p'ra porta, ficaram ensalecidos." A mulher continuou a observação em forma de lamento, dizendo: "Nunca vi coisa igual! Ficaram lá ensalecidos com o vinho e com o dentinho."
Eu conheço a palavra "ensalecido/a" desde sempre. A minha avó, que Dues a tenha, usava-a muito. Ficar ensalecido é ficar fascinado, maravilhado, como se não se visse mais nada à frente a não ser o objecto de admiração.
Felizmente, ainda há coisas que me deixam ensalecida. E uma delas é este rol de memórias, de palavras, de histórias antigas e curiosas.
"Eles quase que não vinham p'ra porta, ficaram ensalecidos." A mulher continuou a observação em forma de lamento, dizendo: "Nunca vi coisa igual! Ficaram lá ensalecidos com o vinho e com o dentinho."
Eu conheço a palavra "ensalecido/a" desde sempre. A minha avó, que Dues a tenha, usava-a muito. Ficar ensalecido é ficar fascinado, maravilhado, como se não se visse mais nada à frente a não ser o objecto de admiração.
Felizmente, ainda há coisas que me deixam ensalecida. E uma delas é este rol de memórias, de palavras, de histórias antigas e curiosas.
sábado, novembro 18, 2006
Siga a procissão!
Havia um homem que era tão preguiçoso, mas tão preguiçoso, que não fazia nada, mesmo nada e para continuar sem fazer nada mesmo preferiu ir a enterrar vivo.
Ele ia dentro do caixão, no cortejo fúnebre, quando alguém mandou parar o cortejo para perguntar se ele queria trigo, pois havia alguém que lho oferecia.
Ele perguntou, de dentro do caixão: "O trigo está moído, ou está em grão?" Responderam-lhe que estava em grão: "Está em grão? Então, siga a procissão".
O homem preferiu ser enterrado mesmo, só para não ter a maçada de moer o trigo que lhe ofereciam.
Esta velha história foi ressuscitada pelo meu tio, a propósito de uma qualquer situação que estava relacionada com perguiça. Não me lembrava de a ter ouvido.
Ele ia dentro do caixão, no cortejo fúnebre, quando alguém mandou parar o cortejo para perguntar se ele queria trigo, pois havia alguém que lho oferecia.
Ele perguntou, de dentro do caixão: "O trigo está moído, ou está em grão?" Responderam-lhe que estava em grão: "Está em grão? Então, siga a procissão".
O homem preferiu ser enterrado mesmo, só para não ter a maçada de moer o trigo que lhe ofereciam.
Esta velha história foi ressuscitada pelo meu tio, a propósito de uma qualquer situação que estava relacionada com perguiça. Não me lembrava de a ter ouvido.
sexta-feira, novembro 17, 2006
Não está pedindo pão!
"Ah pequena, acaba o bordado. Quemássim ele não ficar aí te pedindo pão."
O bordado, uma mimosa colcha de bebé em ponto de cruz, ia mais ou menos a meio e destinava-se ao bebé dos meus primos da Venezuela. Eu tinha abrandado o ritmo depois de saber que um senhor do nosso sítio embarcara recentemente e não se sabia de mais ninguém que seguisse viagem em breve e pudesse levar a encomenda até ao seu destino.
Indagámos junto de conhecidos e familiares mas não descobrimos mais ninguém com viagem marcada. O bordado começou a ficar um pouco esquecido, no meio do emaranhado das linhas e da revista de onde estava a copiar o desenho.
"- Acaba, quemássim ele não vai ficar te pedindo pão."
Eu nunca tinha ouvido esta expressão. "Não está pedindo pão" quer dizer que não está a incomodar. Esta forma de definir "incomodar" lembra-me um bando de crianças pela casa, puxando as saias da mãe para pedir um bocado de pão com manteiga. Tal como nós fazíamos.
Hoje é ao contrário. São os adultos que "incomodam" as crianças, fazendo-as comer demais, talvez para compensar as memórais de uma infância em que havia tudo de menos. As crianças já não puxam as saias das mães, pedindo um bocado de pão com manteiga. Agora imploram para que as deixem comer um pouco menos.
O bordado não vai ficar pedindo pão, não senhora. Segui o conselho e não só já acabei o desenho a ponto de cruz, como costurei toda a colcha, com forro de cor a combinar, tecido fofinho por dentro, renda de bordado suiço à volta e fita com laços nos cantos. Está pronta e ainda não conseguimos um portador. Mas se aparecer algum, sem se esperar, ao menos está pronta. Não está pedindo pão!
O bordado, uma mimosa colcha de bebé em ponto de cruz, ia mais ou menos a meio e destinava-se ao bebé dos meus primos da Venezuela. Eu tinha abrandado o ritmo depois de saber que um senhor do nosso sítio embarcara recentemente e não se sabia de mais ninguém que seguisse viagem em breve e pudesse levar a encomenda até ao seu destino.
Indagámos junto de conhecidos e familiares mas não descobrimos mais ninguém com viagem marcada. O bordado começou a ficar um pouco esquecido, no meio do emaranhado das linhas e da revista de onde estava a copiar o desenho.
"- Acaba, quemássim ele não vai ficar te pedindo pão."
Eu nunca tinha ouvido esta expressão. "Não está pedindo pão" quer dizer que não está a incomodar. Esta forma de definir "incomodar" lembra-me um bando de crianças pela casa, puxando as saias da mãe para pedir um bocado de pão com manteiga. Tal como nós fazíamos.
Hoje é ao contrário. São os adultos que "incomodam" as crianças, fazendo-as comer demais, talvez para compensar as memórais de uma infância em que havia tudo de menos. As crianças já não puxam as saias das mães, pedindo um bocado de pão com manteiga. Agora imploram para que as deixem comer um pouco menos.
O bordado não vai ficar pedindo pão, não senhora. Segui o conselho e não só já acabei o desenho a ponto de cruz, como costurei toda a colcha, com forro de cor a combinar, tecido fofinho por dentro, renda de bordado suiço à volta e fita com laços nos cantos. Está pronta e ainda não conseguimos um portador. Mas se aparecer algum, sem se esperar, ao menos está pronta. Não está pedindo pão!
quinta-feira, novembro 16, 2006
Desadormenta-me pé...
A minha menina diz que gosta da sensação de ter os pés dormentes. O quê? Que pena! Assim nunca vai repetir a fórmula mágica que eu e as minhas irmãs usávamos em crianças, para tentar acabar o mais rapidamente possível com aquelas picadas nos pés.
Sentávamo-nos muitas vezes com os pés debaixo de nós e inevitavelmente eles ficavam dormentes. Então, descalçando os sapatos, repetíamos o ritual que nos tinha sido ensinado já não sei por quem, um ritual vindo de antigos tempos, que a minha mãe definia como "uma brutidade", mas que nós levávamos muito a sério.
Era exactamente assim: molhávamos o dedo indicador com cuspo e com ele íamos desenhando uma cruz no peito do pé, primeiro num e depois no outro, repetindo o seguinte: "Desadormenta-me pé/ que eu vou p'ra a ervilha/ vem um bicho/p'ra te comer a grilha."
Sentávamo-nos muitas vezes com os pés debaixo de nós e inevitavelmente eles ficavam dormentes. Então, descalçando os sapatos, repetíamos o ritual que nos tinha sido ensinado já não sei por quem, um ritual vindo de antigos tempos, que a minha mãe definia como "uma brutidade", mas que nós levávamos muito a sério.
Era exactamente assim: molhávamos o dedo indicador com cuspo e com ele íamos desenhando uma cruz no peito do pé, primeiro num e depois no outro, repetindo o seguinte: "Desadormenta-me pé/ que eu vou p'ra a ervilha/ vem um bicho/p'ra te comer a grilha."
quarta-feira, novembro 15, 2006
Está-lhe tão bem que parece que é seu!
Esta frase é a que usamos no nosso círculo familiar para denunciar um emprétimo. Claro que é cada vez mais raro usá-la porque também é cada vez mais raro emprestar roupa a alguém. Naquele tempo é que era normal. Lembro-me até de contarem que os meus tios não podiam ir todos à mesma missa porque tinham de usar o mesmo casaco, ou o mesmo par de sapatos, que passavam a outro irmão quando se cruzavam, um no regresso a casa, o outro a caminho da missa seguinte.
Uma certa vez, uma vizinha dos meus avós emprestou a um cunhado o casaco do irmão, para ele o levar à missa ao Caniço. Aconteceu que ela estava no adro da igreja quando ele saiu da missa. Ela olhou para ele e, sem se importar com o facto de muitas pessoas estarem a ouvir, exclamou: "Ah cunhado, esse casaco está-lhe tão bem que até parece que é seu!"
As minhas tias e tios e se calhar toda a gente que ouviu, acharam imensa piada e nunca mais se esquerceram daquilo. De tal forma, que passaram a repetir a frase sempre que viam alguém com uma peça emprestada, mesmo quando eram elas próprias que pediam ou emprestavam.
Ontem lembrámo-nos. Mas foi só para nos rirmos. Ninguém usava roupa emprestada.
Uma certa vez, uma vizinha dos meus avós emprestou a um cunhado o casaco do irmão, para ele o levar à missa ao Caniço. Aconteceu que ela estava no adro da igreja quando ele saiu da missa. Ela olhou para ele e, sem se importar com o facto de muitas pessoas estarem a ouvir, exclamou: "Ah cunhado, esse casaco está-lhe tão bem que até parece que é seu!"
As minhas tias e tios e se calhar toda a gente que ouviu, acharam imensa piada e nunca mais se esquerceram daquilo. De tal forma, que passaram a repetir a frase sempre que viam alguém com uma peça emprestada, mesmo quando eram elas próprias que pediam ou emprestavam.
Ontem lembrámo-nos. Mas foi só para nos rirmos. Ninguém usava roupa emprestada.
terça-feira, novembro 14, 2006
Quase que eu dizia!
Com a presença do meu tio José Manuel, do Brasil, mais facilmente se revivem memórias. Não é preciso perguntar, nem voltar a insistir, porque as histórias surgem naturalmente e sempre acompanhadas de boa disposição.
Eu já conhecia este episódio mas, tal como o meu tio e os meus pais, voltei a rir-me com gosto à medida que ele era recontado.
Quando era jovem, uma das características do meu tio Fortunado era a dificuldade em guardar um segredo. Era uma coisa que fazia parte dele. Se lhe pedissem muito para não revelar um qualquer facto, parecia que ainda era pior.
Ora, um dia ele foi com o meu tio Vicente a casa do avôzinho. O Ti Agostinho, que era poucos anos mais velho do que eles, decidiu ir tomar banho no poço do Ti José Valente e levou os sobrinhos. Mas é claro que os pais não o queriam a nadar nos poços e ele estava avisado.
Depois de algazarra no poço, o Ti Agostinho pediu-lhes que não contassem o segredo a ninguém e eles devem ter prometido, pois então.
Estavam todos a almoçar, à volta da mesa da cozinha, quando o meu tio Fortunado disse o seguinte: "Ah meu Deus, quase que eu dizia que o Ti Agostinho tomou banho no poço do Ti José Valente!"
O avôzinho e a avózinha acharam graça e foi por isso que o Ti Agostinho se livrou da prometida malha caso infringisse a regra imposta de não se lavar nos poços. Dessa vez não houve malha para ninguém e a aquela frase ficou na história. "Quase que eu dizia que...." passou a ser a expressão preferida - até eu já dei por mim a usá-la - quando em causa está algo que supostamente não seria para dizer.
Eu já conhecia este episódio mas, tal como o meu tio e os meus pais, voltei a rir-me com gosto à medida que ele era recontado.
Quando era jovem, uma das características do meu tio Fortunado era a dificuldade em guardar um segredo. Era uma coisa que fazia parte dele. Se lhe pedissem muito para não revelar um qualquer facto, parecia que ainda era pior.
Ora, um dia ele foi com o meu tio Vicente a casa do avôzinho. O Ti Agostinho, que era poucos anos mais velho do que eles, decidiu ir tomar banho no poço do Ti José Valente e levou os sobrinhos. Mas é claro que os pais não o queriam a nadar nos poços e ele estava avisado.
Depois de algazarra no poço, o Ti Agostinho pediu-lhes que não contassem o segredo a ninguém e eles devem ter prometido, pois então.
Estavam todos a almoçar, à volta da mesa da cozinha, quando o meu tio Fortunado disse o seguinte: "Ah meu Deus, quase que eu dizia que o Ti Agostinho tomou banho no poço do Ti José Valente!"
O avôzinho e a avózinha acharam graça e foi por isso que o Ti Agostinho se livrou da prometida malha caso infringisse a regra imposta de não se lavar nos poços. Dessa vez não houve malha para ninguém e a aquela frase ficou na história. "Quase que eu dizia que...." passou a ser a expressão preferida - até eu já dei por mim a usá-la - quando em causa está algo que supostamente não seria para dizer.
sexta-feira, novembro 10, 2006
Endireição
É cada vez mais raro termos de enviar uma carta. E é cada vez mais raro recebermos uma carta mesmo, um envelope que não traga lá dentro uma conta para pagar.
Perante a necessidade, rara, de escrever uma carta, dei por mim com saudades do tempo em que o carteiro passava quase todos os dias na vereda, trazendo cartas de vários cantos do mundo, que se reconheciam logo pelos tracinhos de cores à volta do envelope e pela letra no lugar do destinatário.
Lembro-me tão bem desse tempo em que toda a vida parecia girar à volta de uma carta que chegava ou demorava, da alegria ou da tristeza que traziam as cartas, das conversas que alimentavam nos dias seguintes, ou semanas, dependendo do assunto em causa.
Revejo a minha mãe preocupada com uma carta atrasada, da Austrália ou da Venezuela, os dois destinos de emigração do meu pai, tentando disfarçar o desgosto, mas nós percebendo muito bem e sofrendo também.
Revejo a minha tia chegando ao canto do terreiro para, uma vez mais, perguntar à minha mãe se tinha a "endireição" de alguma das minhas tias ou tios, porque esta tinha mudado e ela não se lembrava do local onde, com muito cuidado, guardara o envelope mais recente. A endireição. Era assim mesmo que ouvia dizer e acho que ainda há pouco tempo voltei a ouvi dito assim, tal e qual.
Que engraçada este síntese de palavras! Julgo que "endireição" deverá ser uma mistura de duas palavras: endereço e direcção. Tem piada.
Ao recordar esta palavra, apertam ainda mais as saudades. Saudades da passagem do carteiro, cuja figura se ia desenhado ao longe à medida que crescia a angústia: traria carta ou não? Recordo o som da corneta, que retirava de dentro da bolsa de couro castanha, para avisar as pessoas de que deveriam vir até à vereda principal, ao encontro de uma carta.
As pessoas recebiam e mandavam cartas sem nunca terem ido a um correio. Aquelas que não sabiam ler pediam aos vizinhos para escreverem cartas e desvendarem os mistérios das que tinham acabado de chegar. Trocavam-se confidências e às vezes faziam-se bilhardices. Trocavam-se, solenemente, informações sobre "endireições" novas. A minha tia Salomé tentava soletrar Warrawong. Estávamos no canto do terreiro da casa dela e ela repetia que era mesmo assim, com dois Ms ao contrário.
Perante a necessidade, rara, de escrever uma carta, dei por mim com saudades do tempo em que o carteiro passava quase todos os dias na vereda, trazendo cartas de vários cantos do mundo, que se reconheciam logo pelos tracinhos de cores à volta do envelope e pela letra no lugar do destinatário.
Lembro-me tão bem desse tempo em que toda a vida parecia girar à volta de uma carta que chegava ou demorava, da alegria ou da tristeza que traziam as cartas, das conversas que alimentavam nos dias seguintes, ou semanas, dependendo do assunto em causa.
Revejo a minha mãe preocupada com uma carta atrasada, da Austrália ou da Venezuela, os dois destinos de emigração do meu pai, tentando disfarçar o desgosto, mas nós percebendo muito bem e sofrendo também.
Revejo a minha tia chegando ao canto do terreiro para, uma vez mais, perguntar à minha mãe se tinha a "endireição" de alguma das minhas tias ou tios, porque esta tinha mudado e ela não se lembrava do local onde, com muito cuidado, guardara o envelope mais recente. A endireição. Era assim mesmo que ouvia dizer e acho que ainda há pouco tempo voltei a ouvi dito assim, tal e qual.
Que engraçada este síntese de palavras! Julgo que "endireição" deverá ser uma mistura de duas palavras: endereço e direcção. Tem piada.
Ao recordar esta palavra, apertam ainda mais as saudades. Saudades da passagem do carteiro, cuja figura se ia desenhado ao longe à medida que crescia a angústia: traria carta ou não? Recordo o som da corneta, que retirava de dentro da bolsa de couro castanha, para avisar as pessoas de que deveriam vir até à vereda principal, ao encontro de uma carta.
As pessoas recebiam e mandavam cartas sem nunca terem ido a um correio. Aquelas que não sabiam ler pediam aos vizinhos para escreverem cartas e desvendarem os mistérios das que tinham acabado de chegar. Trocavam-se confidências e às vezes faziam-se bilhardices. Trocavam-se, solenemente, informações sobre "endireições" novas. A minha tia Salomé tentava soletrar Warrawong. Estávamos no canto do terreiro da casa dela e ela repetia que era mesmo assim, com dois Ms ao contrário.
quarta-feira, novembro 08, 2006
Passar ao meio
Aprendi uma coisa nova, mais velha do que o Norte. Subíamos a rua calmamente, eu ao lado da minha menina, quando alguém passou entre as duas, adiantando-se a passo largo.
A minha mãe, que seguia um pouco atrás, repreendeu-nos. Que não devíamos deixar que tal coisa acontecesse: "Quando alguém passo ao meio, dizem que leva a fortuna."
A minha menina ouviu e perguntou como é que nos podiam levar uma coisa que não temos. Sorri. Já lhe expliquei que a nossa fortuna é imensa, é a saúde, a família, o carinho...Acho que ela percebeu.
A minha mãe, que seguia um pouco atrás, repreendeu-nos. Que não devíamos deixar que tal coisa acontecesse: "Quando alguém passo ao meio, dizem que leva a fortuna."
A minha menina ouviu e perguntou como é que nos podiam levar uma coisa que não temos. Sorri. Já lhe expliquei que a nossa fortuna é imensa, é a saúde, a família, o carinho...Acho que ela percebeu.
terça-feira, novembro 07, 2006
Boieiros e candeeiros
Os meus dois bisavôs maternos eram boieiros. Cada um tinha uma parelha de bois, que usava para transportar produtos, sobretudo lenha, até à cidade.
O pai da minha avolita era conhecido como o Ti José Flor da Ponte ou Ti José Flor Preto, o primeiro "apelido" devido ao local onde morava e o segundo graças ao tom escuro da pele. A alcunha era obrigatória, ou uma ou outra, para o diferenciar de dois homens com o mesmo nome, o Ti José Flor da Achada e o Ti José Flor Velho, que vivia "naquela banda".
O pai do meu avolito era o Ti José Fernandes (sempre ouvi dizerem Farnandes, colocando um "a" no local do primeiro "e"), não sei se tinha alcunha, mas também devia ter porque Jose Fernandes era também um nome muito comum e havia que distinguir as pessoas.
Os dois bois eram presos um ao outro por uma parte de madeira chamada canga. Da canga partia, para trás, um pau de madeira a que estava ligada a corsa. Era sobre esta que se colocava a sarimba (ramalhos de pinheiro) e os paus de lenha, para ir entregar aos clientes da cidade.
O boeiro, dono dos bois, levava um trapo com sebo, que ia deitando no caminho para fazer deslizar a corsa; levava também a aguilhada, um pau com um prego na ponta, que servia para ir espicaçando os bois, obrigando-os a apressarem o passo.
À frente da parelha de bois seguia o candeeiro, uma rapazinho que tinha a missão de guiar os animais. Recorda o meu tio José Manuel, que foi boieiro do Ti José Guinchão: "Eu ia à frente, puxando os bois por umas rédeas de couro, que eles tinham amarradas aos cornos." Sobre a corsa seguiam não menos do que quinhentos quilos de lenha e o meu tio lembra-se de uma vez em que um dos bois o encurralou junto a um poste que havia algures no caminho do terço e a lenha foi toda ao chão.
A minha mãe recorda que praticamente todos os seus tios foram candeeiros, pois era hábito os rapazes começarem bem cedo a acompanhar o pai nas idas à cidade. Ao meu avolito também coube essa missão nos tempos de juventude.
Graças à profissão de boieiro e às frequentes idas à cidade, era mais fácil trazer mantimentos para casa e minorar as inúmeras dificuldades "no tempo da guerra".
O meu pai vai ouvindo o desfilar de memórias e depois não resiste a contar "uma passáge", que se lembra de ter ouvido o meu avolito contar, do tempo em que foi candeeiro. A história passou-se numa vez em que ele levou os bois à cidade com um cunhado, o Ti João Flor. Então é assim:
"O Ti José Fernandes ia à frente dos bois quando avistou uma carteira no chão. Pegou-lhe sem o cunhado reparar e disse que precisava de "ir acima dos pés", que era para ver se a carteira tinha dinheiro. Ele foi e o cunhado passou para a frente dos bois. Mas a carteira não tinha dinheiro nenhum e ele ficou irritado. Então, deu uma volta por detrás e jogou a carteira para o meio do caminho, lá para a frente. Daí a bocadinho, o cunhado vê a carteira, agarra nela sem o outro ver e diz que "precisava de ir acima dos pés". Ele fez a mesma coisa, para ver se alquidava o dinheiro."
Imagino o riso do meu avolito de todas as vezes que contava este episódio do seu tempo de candeeiro. Também nos rimos com a piada.
segunda-feira, novembro 06, 2006
Ementes...
"Ementes vai-se tomar um copinho de vinho e comer um dentinho". Ementes era o tempo de ficar pronto o jantar. De modo que os homens se sentaram à volta da mesa da cozinha, conversando sobre os assuntos habituais - o plantio da semilha, a rega das couves, a monda dos nabos, o crescimento do porco e a Festa que se aproxima - e ocupando o tempo que faltava para o jantar.
"Ementes" é a palavra mandeirense para entretanto. Ao contrário de outras que, aos poucos, vão desaparecendo, "ementes" é uma palavra ainda muito usada e eu gosto dela.
Gosto da palavra "ementes" talvez por ter a sensação de que toda a minha vida se desenrola nesse período de tempo que fica antes de qualquer coisa acontecer. E que, no meu caso, nunca acontece.
"Ementes" é a palavra mandeirense para entretanto. Ao contrário de outras que, aos poucos, vão desaparecendo, "ementes" é uma palavra ainda muito usada e eu gosto dela.
Gosto da palavra "ementes" talvez por ter a sensação de que toda a minha vida se desenrola nesse período de tempo que fica antes de qualquer coisa acontecer. E que, no meu caso, nunca acontece.
domingo, novembro 05, 2006
Tomar amores
"Laranjeira de pé d'ouro
Deita refilos de prata
Tomar amores não custa
Deixá-los é que me mata"
Recolhida em 1986.
Deita refilos de prata
Tomar amores não custa
Deixá-los é que me mata"
Recolhida em 1986.