terça-feira, novembro 07, 2006
Boieiros e candeeiros
Os meus dois bisavôs maternos eram boieiros. Cada um tinha uma parelha de bois, que usava para transportar produtos, sobretudo lenha, até à cidade.
O pai da minha avolita era conhecido como o Ti José Flor da Ponte ou Ti José Flor Preto, o primeiro "apelido" devido ao local onde morava e o segundo graças ao tom escuro da pele. A alcunha era obrigatória, ou uma ou outra, para o diferenciar de dois homens com o mesmo nome, o Ti José Flor da Achada e o Ti José Flor Velho, que vivia "naquela banda".
O pai do meu avolito era o Ti José Fernandes (sempre ouvi dizerem Farnandes, colocando um "a" no local do primeiro "e"), não sei se tinha alcunha, mas também devia ter porque Jose Fernandes era também um nome muito comum e havia que distinguir as pessoas.
Os dois bois eram presos um ao outro por uma parte de madeira chamada canga. Da canga partia, para trás, um pau de madeira a que estava ligada a corsa. Era sobre esta que se colocava a sarimba (ramalhos de pinheiro) e os paus de lenha, para ir entregar aos clientes da cidade.
O boeiro, dono dos bois, levava um trapo com sebo, que ia deitando no caminho para fazer deslizar a corsa; levava também a aguilhada, um pau com um prego na ponta, que servia para ir espicaçando os bois, obrigando-os a apressarem o passo.
À frente da parelha de bois seguia o candeeiro, uma rapazinho que tinha a missão de guiar os animais. Recorda o meu tio José Manuel, que foi boieiro do Ti José Guinchão: "Eu ia à frente, puxando os bois por umas rédeas de couro, que eles tinham amarradas aos cornos." Sobre a corsa seguiam não menos do que quinhentos quilos de lenha e o meu tio lembra-se de uma vez em que um dos bois o encurralou junto a um poste que havia algures no caminho do terço e a lenha foi toda ao chão.
A minha mãe recorda que praticamente todos os seus tios foram candeeiros, pois era hábito os rapazes começarem bem cedo a acompanhar o pai nas idas à cidade. Ao meu avolito também coube essa missão nos tempos de juventude.
Graças à profissão de boieiro e às frequentes idas à cidade, era mais fácil trazer mantimentos para casa e minorar as inúmeras dificuldades "no tempo da guerra".
O meu pai vai ouvindo o desfilar de memórias e depois não resiste a contar "uma passáge", que se lembra de ter ouvido o meu avolito contar, do tempo em que foi candeeiro. A história passou-se numa vez em que ele levou os bois à cidade com um cunhado, o Ti João Flor. Então é assim:
"O Ti José Fernandes ia à frente dos bois quando avistou uma carteira no chão. Pegou-lhe sem o cunhado reparar e disse que precisava de "ir acima dos pés", que era para ver se a carteira tinha dinheiro. Ele foi e o cunhado passou para a frente dos bois. Mas a carteira não tinha dinheiro nenhum e ele ficou irritado. Então, deu uma volta por detrás e jogou a carteira para o meio do caminho, lá para a frente. Daí a bocadinho, o cunhado vê a carteira, agarra nela sem o outro ver e diz que "precisava de ir acima dos pés". Ele fez a mesma coisa, para ver se alquidava o dinheiro."
Imagino o riso do meu avolito de todas as vezes que contava este episódio do seu tempo de candeeiro. Também nos rimos com a piada.