terça-feira, dezembro 28, 2004

Rebentar pelo umbigo

"Deixa'tar qu'ela não vai rebentar pelo umbigo". Deixa chorar, deixa gritar, deixa espernear, deixa reclamar, deixa amuar, deixa tudo. Não vai rebentar pelo umbigo. Gosto desta expressão que ouço desde criança e ainda a uso no contexto certo. "Não te importes q'ela não vai rebentar pelo umbigo". Os bebés recém-nascidos, cujo umbigo ainda não sarou, são os únicos que correm esse risco. Quando a minha filha era bebé, o médico avisou-me para não a deixar chorar pois tinha uma hérnia no umbigo. Sempre que fazia esforço para chorar, a hérnia piorava e quase que era necessária uma operação. À custa de muito colo, muitos mimos e de fazer-lhe muitas vontades, o umbigo sarou por si, graças a Deus.
Já crescida e com o umbigo perfeitamente sarado, já não corre esse risco. Pode chorar e espernear, e gritar e amuar, que não lhe faço os baboseiras todas. Toda a gente devia conhecer esta expressão e aprender o seu antigo ensinamento. Educar bem não é dar tudo, nem é deixar fazer tudo, nem é ceder sempre à chantagem e às artimanhas. Por vezes, o melhor é encolher os ombros e exclamar: "Deixa'tar que não vai rebentar pelo umbigo."

segunda-feira, dezembro 13, 2004

Bexiguinhas

Uma das maiores alegrias do meu Natal de antigamente eram as bexiguinhas. Era assim que chamávamos aos balões de soprar. Uma bexiguinha fazia feliz qualquer criança e dava para imensas brincadeiras. Até depois de rebentar, continuávamos a brincar com as bexigas, metendo na boca os restos de borracha, para fazer bexiguinhas minúsculas. Que riqueza era, ser dono de uma simples bexiguinha! Como nos sentíamos afortunadas quando alguém nos oferecia uma!
Nos tempos mais difíceis, era com bexiguinhas coloridas que se enfeitava o pinheiro de Natal. Quando chegava o Santo Amaro e o pinheiro era retirado, as bexiguinhas que tinham sobrevivido eram distribuídas pelas crianças, e arrancavam mais sorrisos de felicidade.
As bexiguinhas ensinaram-me a ser feliz com pequenas coisas. Ainda hoje, a simples memória desse brinquedo dos pobres transmite-me alegria e dou graças por saber o que é ter pouco. Quem sempre teve muito, nem com muito se sente feliz.
E porque é que se chamavam bexiguinhas aos balões? O nome vem da bexiga do porco, que era disputada pela miudagem, no dia da morte do porco. Os rapazes grigavam para ficar com a bexiga do porco, que era dos poucos brinquedos que, com sorte, podiam ter. Com uma pequena cana ou com o troço de um folha de aboboreira, sopravam para encher a bexiguinha, que deixavam depois secar ao sol. Era um brinquedo perfeito.

segunda-feira, dezembro 06, 2004

Partir o inhame da porta

"Olha lá ele nã vá me partir o inhame da porta!" Desta forma figurada, fica dito: "Não tenho medo dele; as ameaças não me assustam."
Ouvi esta expressão há poucos dias e perguntei o que é o inhame da porta. Pensei que seria, talvez, a maneira de o povo se referir a alguma componente da porta, quem sabe algum tipo de fechadura. Mas não. Inhame refere-se mesmo à planta de que se comem os tubérculos, e que constitui o prato tradicional da sexta-feira santa.
Não sei que história terá estado na origem desta expressão, usada perante casos concretos de ameça. Terá alguém, de forma vingativa, destruído uma plantação de inhame à porta de outrem? Perguntei à minha mãe, momentos após tê-la ouvido repetir a expressão, mas ela não sabe. Só sabe que não lhe vão "partir o inhame da porta." Ainda bem.

sexta-feira, dezembro 03, 2004

O homem do frangaínho

Certa vez, apareceu lá em casa, vindo não se sabe de onde, um homem estranho. Era muito alto, usava óculos, e trazia uma grande bolsa na mão. Na cabeça, usava um chapéuzinho de pano.
Era raro aparecerem ali pessoas estranhas, que não fossem os adelos, a vender colchas e cobertores. Esse homem não ia vender nada, queria era comprar. Queria coisas da fazenda e insistia tanto que até fazia impressão. As pessoas acabavam por lhe arranjar o que ele queria e lembro-me que, em vez de pagar, ele convencia-as a aceitarem algo em troca. Lá em casa, deixou como pagamento uns bolos já secos.
Depois da primeira vez, parece que o homem "avezou". Passava de vez em quando, vindo da Camacha para baixo, e voltava a insistir, quase obrigando as pessoas a venderem aquilo que tinham para porem na mesa, o comer da fazenda e as galinhas do galinheiro.
Uma vez, o homem cismou que queria um "frangaínho". O homem não parava de insistir, mas a minha mãe não tinha na altura um "frangaínho" para lhe vender. Acabou por indicar-lhe a casa da Ti Carolina, ela devia ter algum. Eu e as minhas irmãs conduzimo-lo pela vereda abaixo, até a casa dela, onde ele conseguiu o que queria, por um preço muito baixo. Afinal, as pessoas do campo deitavam ovos, tiravam bisalhos, criavam-nos e depois comiam-nos em caldo de massa ou em canja, nos dias especiais. Nunca ninguém tinha comprado um "frangaínho", por isso não faziam ideia do preço justo.
A cena do homem da cidade a insistir na compra do "frangaínho" ficou-nos na ideia e foi assim que o baptizámos: "o homem do frangaínho". - "Mãe, vem acolá em cima o homem do frangaínho!" A minha mãe já ficava irritada, por ele ir para lá tirar tempo às pessoas e tentar intrujá-las. O homem deixou de passar depois de uma avisa do meu tio mas aindo hoje nos lembramos do "homem do frangaínho". Anos depois, numa rua do Funchal, vi-o de bolsa na mão e com o seu chapéuzinho de pano na cabeça. Estava apenas mais velho, o resto era tudo igual. Lembro-me de ter sentido uma certa irritação, só de pensar que, em tempos, ele nos tinha considerado pessoas menores, ingénuas, só porque vivíamos no campo.
Esta história surge aqui a propósito da palavra "frangaínho". O diminutivo de frango é franguinho e o de franga é franguinha. Mas nós sempre dissemos "frangaínho" e "frangaínha".




quinta-feira, dezembro 02, 2004

Uhuuu

"Uhuuu." Antes da época das campaínhas, era assim, com um apupo no canto do terreiro, que se alertava as pessoas para a nossa presença em sua casa. "Uhuuu." E imediatamente se ouvia de dentro de casa, um "Quem é que venha." Ou então: "Venha sempre." Alguns: "Venha vindo."
Ontem repeti esta forma de campaínha humana, agora tão estranha. Fui visitar a senhora Maria e ao chegar ao canto do terreiro, já debaixo da latada que faz uma sombra agradável, por entre os cântaros de avencas, fetos, antúrios e manhãs-de-páscoa, apupei. "Uhuuu". Ela não respondeu logo, porque estava atrás da casa a fazer arrumações, e eu voltei a apupar: "Uhuuu". A minha filha ficou espantada, se calhar nunca me tinha visto a apupar numa casa à antiga, das que não têm campaínha. Puxou-me pelo braço e pediu-me para me calar, constrangida com aquele som estranho. Deve ter-lhe parecido uma brincadeira. Mas eu voltei a apupar, deliciada com a memória do tempo em que apupávamos à chegada a todas as casas. Todos os dias apupávamos em cantos de terreiro, era um som tão natural e bonito. Agora parecia estranho e eu espantei-me por não ter perdido o jeito. Depois a senhora maria apareceu no canto da casa, e quando nos viu ficou muito contente. Veio buscar-nos e recebeu-nos como se recebiam as pessoas antigamente. Percorremos o jardim a admirar as plantas, sentámo-nos na sala, admirámos as fotografias dos netos colocadas sobre uma mesa de metro muito antiga, conversámos, e antes de nos irmos embora ofereceu-nos bolachas e sumo, e ainda nos deu um saco com goiabas e algumas anonas para levarmos. Que saudades de uma visita assim! Veio passar-nos ao canto do terreiro e convidou-nos para voltar quando quiséssemos, e sem falta na Festa, para vermos a lapinha. E deu-me também um cântaro com um feto de que gostei muito. Um feto antigo, que me lembro de ver em casa da minha mãe e da minha avó, quando era criança.
"Até mais outra, se Deus quiser". Despedimo-nos também como antigamente. "Até mais outra, se Deus quiser."

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