quarta-feira, setembro 29, 2004

No mês de Setembro....

O mês de Setembro está no fim e este ano eu não fui às amoras. Gostaria de ter cumprido esse ritual de andar a esticar-me para os silvados à beira dos caminhos, colhendo esses frutos pequenos e deliciosos.
Da última vez que fui às amoras, eu e a minha menina, conseguimos as suficientes para fazer uma garrafinha de licor para oferecer às visitas da festa. Foi um dos licores mais apreciados, de todos os que já fiz.
"No mês de Setembro, quem vai cagar vem comendo": este ditado popular foi-me dito por gente antiga, a propósito da ida às amoras. Foi-me dito com um sorriso matreiro, a ver se eu me apercebia do duplo sentido do ditado. E depois a explicação: naquele tempo, não havia casas de banho. Um pouco afastada da casa, havia uma retrete; era uma casota de madeira improvisada, com condições mínimas, as mais luxuosas com um assento de madeira e um buraco ao meio, as outras apenas com um local para colocar os pés, e a fossa por baixo, obrigando as pessoas a agacharem-se para fazerem as suas necessidades.
Mas quando as pessoas andavam nas suas lides do campo, a cavar na fazenda, a apanhar o trigo nas chamuscas, à lenha no meio dos pinheiros, ou a caminho de qualquer sítio, não havia retretes por perto e a solução era procurar um recanto mais escondido no meio do mato. Ora, Setembro é o tempo das amoras. Quando as pessoas iam à procura de um desses recantos, o mais certo era terem ali à mão um monte de silvado carregado de amoras. Daí se explica que viessesm comendo...amoras.


terça-feira, setembro 28, 2004

Cear e caminhar

Meu Amor anda cá à noite
Tenho ceia p'ra te dar
Cafezinho e milho frito
e um beijinho ao caminhar


Foi a minha tia Salomé que se lembrou desta quadra. Já passaram quase vinte anos desde essa altura, em que andei a fazer recolhas junto de todos os elementos da família, de tudo o que estava relacionado com cultura popular: quadras, dizeres, estórias, alcunhas, jogos...
Recolhi inúmeras quadras mas, por alguma razão que não sei explicar, fixei algumas delas e outras não. Esta é uma das que não me esqueço. Lembro-a de cor, sem ir consultar os apontamentos. Tal como me lembro de cor da expressão da minha tia, que Deus a tenha.
Nessa altura já se jantava à noite em vez de cear. Mas na infância as refeições ainda se faziam a um ritmo totalmente diferente. O almoço era às 10 da manhã. O jantar acontecia às três da tarde. À noite, era a ceia. Recordo o meu avô cavando num poio perto de casa e a minha avó a chamá-lo para jantar. O sol ia alto, eram três horas.
Ao almoço, às dez da manhã, havia sempre uma cafeteira de café preto, de cevada. Havia pão e, muitas vezes, bacalhau cozido, temperado com salsa, vinagre, azeite, alho e rodelas de cebola. Ao jantar era quase sempre uma sopa daquelas que levam tudo e mais alguma coisa. Ou então uma panela de milho, que depois servia para o jantar e para o dia seguinte. A ceia era constituida, normalmente, por aquilo que sobrava do jantar. Podia muito bem ser milho frito, com café, tal como na cantiga.
Também gosto da palavra "caminhar". "Caminhar" podia ter o significado de ir embora, como na quadra, mas era usada sobretudo com o sentido de ir a qualquer sítio, fazer uma volta qualquer. "Caminhar" era sair. "Vais caminhar?" Podia ser "caminhar" para ir à missa, à venda, a casa de uma vizinha ou familiar.
Bom, agora tenho de caminhar daqui.Tenho um trabalho à minha espera.



segunda-feira, setembro 27, 2004

Passadas e passadinhas

"Ela mora acolá em baixo. Desça naquelas passadinhas." Foi assim que uma mulher do Curral das Freiras me indicou o caminho para casa de uma outra mulher do mesmo sítio que sabe "muitas histórias e cantigas". A palavra "passadinhas" ficou a bailar na minha memória como um pequeno sorriso. Gostei tanto de ouvir a palavra "passadinhas"!
A casa dos meus pais liga-se à dos meus avós por umas "passadas". E a casa dos meus avós, por sua vez, liga-se à dos meus tios por outras "passadas". E a casa dos meus tios liga-se à vereda principal do sítio por outras "passadas".
Cresci rodeada de "passadas", que para mim serão eternamente "passadas". Nos outros locais existem escadas e mais escadas, constituidas por mais ou menos degraus. Ali, existem simplesmente "passadas". A mesma palavra designa "escada" e designa "degrau".
As "passadas" que ligam a nossa casa à dos meus avós maternos eram para nós "as passadas". Dizíamos "as passadas" e não havia engano possível. Eram a essas "passadas" que nos referíamos e a mais nenhumas. Depois, íamos arranjando formas de designar as outras "passadas" conhecidas, normalmente juntando-lhes o nome das pessoas que lhes ficavam mais perto ou outra particularidade qualquer.
"Desça acolá naquelas passadinhas". A minha ida ao Curral das Freiras aconteceu já há algum tempo. Mas a palavra "passadinhas" continua a bailar-me na memória como um pequeno sorriso.





sexta-feira, setembro 24, 2004

Qu' atentação! Valha-me Deus.

Estou atentada! Mas que atentação! Estas palavras de antigamente dizem mais sobre a forma como me sinto do que as de hoje. "Preocupada" e "preocupação" não descrevem tão exactamente o meu estado de espírito como os termos que os meus avós e os meus pais me ensinaram. Até ir para a escola, não sabia que existiam o substantivo "preocupação" e o adjectivo " preocupada".
"Atentar" era o verbo que usávamos com o sentido de "chatear". "Ah pequena, não me atentes mais. Sossega um bocado!" "Estas pequenas passaram o dia me atentando."
"Atentada" e "atentação" desviavam-se para o lado da preocupação, para algo bem mais sério. A doença de um familiar era uma "atentação", as bebedeiras dos maridos eram uma "atentação", o futuro de um filho emigrado era uma "atentação", tudo a merecer rezas à Senhora do Monte ou a Santa Rita, talvez o cumprir das primeiras sextas-feiras do mês.
"Qu' atentação! Valha-me Deus." A minha avó acrescentaria, sem dúvida, este "Valha-me Deus".


sexta-feira, setembro 10, 2004

Saias, saiotes e saias-de-vestido

A minha filha não sabe o que é uma "saia-de-vestido", nem um "saiote". Só sabe o que é uma saia, uma mini-saia e uma saia-comprida. Já não existem saias como as que eu usei com a idade dela.
Quando dizíamos simplesmente "saia" referíamo-nos a uma combinação, uma espécie de vestido simplificado, de alcinhas e franzido, branco e com uma rendinha na ponta, de vestir por dentro do vestido-de-andar-em-casa, do vestido-da-missa, ou de uma saia-de-vestido, com blusa a condizer. Àquilo que agora são as saias normais, chamávamos saias-de-vestido. Era a forma de as diferenciarmos das saias que eram afinal combinações. Combinação era uma palavra fina; nós usávamos as palavras do povo.
Na adolescência, as saias foram substituídas por saiotes, que eram apenas da cintura para baixo. Nenhuma menina, jovem ou mulher se atrevia a sair de casa sem uma saia ou um saiote, para que não luzissem as pernas ou o tronco nas possíveis transparências da roupa. Muitas vezes usava-se uma saia inteira (combinação) e um saiote por cima.
Hoje, para além de diversos pares de calças, tenho apenas algumas saias vulgares e alguns vestidos. Não tenho saias-de-vestidos, não tenho saias-de-dentro (lembro-me de ter ouvido chamarem assim às combinações), não tenho saiotes, não tenho vestidos-da-missa, nem vestidos-de-andar-em-casa. Tanta variedade reduzida a duas ou três saias e a dois ou três vestidos. Olho para estas memórias e sinto-me mais pobre.

quarta-feira, setembro 08, 2004

Cebola fritada

Há anos que não como "cebola fritada". E que saudades tenho desse prato da infância! A minha mãe enchia uma frigideira de cebola cortada, juntava-lhe bocadinhos de chouriço, colorau, massa de tomate, sal, um pouco de vinho e água para fazer molho. Deixava cozer em lume baixo. Era um rico petisco para comer com milho, ou com pão. Eu adorava cebola fritada com pão ou com bocados de milho frio.
Cebola fritada. Milho fritado. Chicharros fritados. Arroz com couves fritado. Antigamente era tudo fritado. Não se dizia milho frito, nem peixe frito. Dizia-se fritado. Hoje digo como toda a gente: peixe frito, milho frito. Em casa dos meus pais, só ali, continuo a dizer como antes. Não os emendo. Pergunto: "Hoje tem milho fritado? E porque é que nunca mais fez cebola fritada, mãe?"

quarta-feira, setembro 01, 2004

Merecia uma malha

Minha mãe mandou-me à lenha
Eu fui ao mar me lavar
Minha mãe deu-me uma malha
C' agulha d' arremendar


Quando era pequena, tinha uma certa inveja desta criança da cantiga que "comia uma malha" com uma agulha. Que era uma agulha comparada ao vergasto que a minha tinha reservado para as nossas malhas, pendurado num prego, na parede da cozinha? Lembro-me de imaginar a mãe da criança da cantiga a tentar dar-lhe uma malha com a agulha. A agulha caía e perdia-se, nem sequer chegava a haver malha. Muito menos os vergões nas pernas e nos braços. Antigamente, os mais pequenos "comiam malhas" quase todos os dias. Muitas vezes não as merecíamos, mas era assim que as coisas funcionavam. Hoje é que merecia realmente uma malha. Merecia uma malha bem dada. Afinal, vou amanhã de férias. Devia estar contente!

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