terça-feira, janeiro 24, 2012
o despacho de Dezembro
A meio da manhã começou a cair uma chuvinha miúda mas persistente. Retiro a roupa do estendal. Delicio-me com o cheiro a terra. Reparo nas folhas lavadas das plantas, brilhantes. Já era mais do que tempo, a chuva é tão necessária e tardava. Penso nisto e alegro-me com a benção que cai do céu.
Penso nisto tudo mas falha-me um pormenor importante, ressuscitado por uma conversa dos meus pais.
- "Hoje é o despacho de Dezembro". Então não é? Os meus pais olham para o céu cinzento e para a chuvinha miúda e têm a certeza de que é este o tempo que deverá caractarizar o mês de Dezembro deste ano. Mas quando começamos a descer para o Funchal, já não chove, apesar do cinzento do céu, coberto de núvens. - "Aqui não chove, mas no Norte deve estar a chover bem!" Não se sabe.
O que se sabe é que segundo a tradição popular os primeiros doze dias de Janeiro representam os requerimentos para o tempo respeitante a cada um dos meses do ano e os doze dias seguintes representam os despachos, ou seja o tempo que realmente deverá caracterizar cada um dos doze meses. Seguindo este raciocínio, o dia 24 de Janeiro é de facto o despacho de Dezembro.
Dezembro de 2012 deverá ser um mês de céu cinzento, com algum chuva miudinha, mas pouca, muito pouca para aquilo que deveria ser no primeiro mês do Inverno.
Penso nisto tudo mas falha-me um pormenor importante, ressuscitado por uma conversa dos meus pais.
- "Hoje é o despacho de Dezembro". Então não é? Os meus pais olham para o céu cinzento e para a chuvinha miúda e têm a certeza de que é este o tempo que deverá caractarizar o mês de Dezembro deste ano. Mas quando começamos a descer para o Funchal, já não chove, apesar do cinzento do céu, coberto de núvens. - "Aqui não chove, mas no Norte deve estar a chover bem!" Não se sabe.
O que se sabe é que segundo a tradição popular os primeiros doze dias de Janeiro representam os requerimentos para o tempo respeitante a cada um dos meses do ano e os doze dias seguintes representam os despachos, ou seja o tempo que realmente deverá caracterizar cada um dos doze meses. Seguindo este raciocínio, o dia 24 de Janeiro é de facto o despacho de Dezembro.
Dezembro de 2012 deverá ser um mês de céu cinzento, com algum chuva miudinha, mas pouca, muito pouca para aquilo que deveria ser no primeiro mês do Inverno.
quarta-feira, janeiro 11, 2012
o balanço
Sinto ainda a alegria que senti no dia em que o meu avôlito nos fez um balanço no tronco da ameixeira de damasco que ficava por cima do terreiro, entre a porta da cozinha e o poço de lavar. Parecia mentira! Em alguns minutos apenas o meu avôlito fez-nos um balanço com uma corda muito grossa que foi buscar ao palheirinho.
Lembro-me de o ver a escolher bem o ramo adequado, não só o mais forte, mas também aquele que ficava no melhor lugar e tinha a altura ideal. Depois vi-o a tomar balanço, com o corpo inclinado para trás e em seguida para a frente e de repente a corda estava a voar sobre o ramo e no instante seguinte já estava cá em baixo. O meu avôlito amarrou-a bem, experimentou o peso, e disse que podíamos brincar no balanço.
O balanço ficava a meio do terreiro dos meus avôlitos. Uma de nós sentava-se, outra ia para trás e empurrava. Com mais força, mais, mais, até quase voarmos e tocarmos com uma ponta do pé num ramo da ameixeira branca. O cabelo voava. Sentíamos um frio na barriga. Era tão bom. - "Vamos se embalançar?" Não precisávamos de mais nada.
O balanço não se manteve ali por muito tempo, pelo menos na minha memória não foi muito longo o tempo desse balanço. Talvez estivesse a forçar demasiado o tronco da ameixeira, certo é que atrapalhava quem queria passar no terreiro. Durou pouco tempo esse balanço, mas foi o único que me ficou gravado na memória com esta nitidez.
Todos os nossos balanços foram semelhantes àquele, feitos com uma corda grossa atada ao tronco de uma árvore. Os balanços da minha mãe foram bem diferentes, pois nesse tempo eram as próprias crianças que os faziam, entrançando cascas de vime verde. Os balanços eram ainda mais preciosos para as crianças dessa geração porque só existiam em Junho, o mês dos balanços.
Em Fevereiro e Março era a altura de podar os vimes. Estes eram amarrados aos molhos e colocados de pé em poças de água junto às ribeiras, para rebentarem. Aos poucos, durante cerca de três meses, os vimes iam criando raízes e ficando com folhas. Depois de retirados da água, a base dos molhos era colocada sobre uma pedra e malhada com o malho. Era por aí, pela parte da casca que tinha ficado meio desfeito, que se começava a descascar o vime branco.
As crianças rodeavam os adultos eufóricas e iam recolhendo as cascas para os balanços. Basicamente faziam uma trança, com vários molhinhos de vimes, tendo o cuidado de ir acrescentando mais vime ao longo da trança, gradualmente para ficar bem seguro. Depois elas próprias procuravam um ramo e atiravam a trança ligando cuidadosamente as duas pontas, com outras cascas de vime.
Se eu só me lembro do balanço do terreiro dos meus avôlitos, já a memória admirável da minha mãe conseguiu guardar todos os balanços da sua infância. Um balanço que a Ti Filomena deixou fazer num ramo de nespereira que se estendia por cima da vereda que ia para as Eiras; um balanço no ramo do carvalheiro que ficava em cima do bardo e se estendia sobre o caminho ao pé da casa da Tia Carolina do Pinheirinho; um balanço na pereira que existia em casa do Ti Noé; um balanço na nespereira que havia à frente das casas da Turquia; um balanço em casa do Ti José Mirando, que acabou por ser mudado para outro local, abaixo do ribeiro.
- "Traz-me uma cartinha!" Era assim que as crianças pediam a quem se embalançava que tentasse agarrar, com as mãos ou com os pés, pequenas folhas de árvore, para provar o quão alto tinham conseguido ir.
Junho era o mês dos balanços, o mês em que se descascavam os vimes verdes. Quando os balanços começavam a secar, ainda tentavam salvá-los, metendo-os em água para amolecerem, mas mais tarde ou mais cedo acabavam-se os balanços. Até ao ano seguinte, na época dos vimes.
Ouço estas memórias e sinto beleza em tudo. Nos objectos, nos gestos, nas emoções e nas palavras. Fico contente por sempre ter usado a palavra balanço. A palavra baloiço foi uma novidade aprendida muito mais tarde e nunca me soou tão bem.
Lembro-me de o ver a escolher bem o ramo adequado, não só o mais forte, mas também aquele que ficava no melhor lugar e tinha a altura ideal. Depois vi-o a tomar balanço, com o corpo inclinado para trás e em seguida para a frente e de repente a corda estava a voar sobre o ramo e no instante seguinte já estava cá em baixo. O meu avôlito amarrou-a bem, experimentou o peso, e disse que podíamos brincar no balanço.
O balanço ficava a meio do terreiro dos meus avôlitos. Uma de nós sentava-se, outra ia para trás e empurrava. Com mais força, mais, mais, até quase voarmos e tocarmos com uma ponta do pé num ramo da ameixeira branca. O cabelo voava. Sentíamos um frio na barriga. Era tão bom. - "Vamos se embalançar?" Não precisávamos de mais nada.
O balanço não se manteve ali por muito tempo, pelo menos na minha memória não foi muito longo o tempo desse balanço. Talvez estivesse a forçar demasiado o tronco da ameixeira, certo é que atrapalhava quem queria passar no terreiro. Durou pouco tempo esse balanço, mas foi o único que me ficou gravado na memória com esta nitidez.
Todos os nossos balanços foram semelhantes àquele, feitos com uma corda grossa atada ao tronco de uma árvore. Os balanços da minha mãe foram bem diferentes, pois nesse tempo eram as próprias crianças que os faziam, entrançando cascas de vime verde. Os balanços eram ainda mais preciosos para as crianças dessa geração porque só existiam em Junho, o mês dos balanços.
Em Fevereiro e Março era a altura de podar os vimes. Estes eram amarrados aos molhos e colocados de pé em poças de água junto às ribeiras, para rebentarem. Aos poucos, durante cerca de três meses, os vimes iam criando raízes e ficando com folhas. Depois de retirados da água, a base dos molhos era colocada sobre uma pedra e malhada com o malho. Era por aí, pela parte da casca que tinha ficado meio desfeito, que se começava a descascar o vime branco.
As crianças rodeavam os adultos eufóricas e iam recolhendo as cascas para os balanços. Basicamente faziam uma trança, com vários molhinhos de vimes, tendo o cuidado de ir acrescentando mais vime ao longo da trança, gradualmente para ficar bem seguro. Depois elas próprias procuravam um ramo e atiravam a trança ligando cuidadosamente as duas pontas, com outras cascas de vime.
Se eu só me lembro do balanço do terreiro dos meus avôlitos, já a memória admirável da minha mãe conseguiu guardar todos os balanços da sua infância. Um balanço que a Ti Filomena deixou fazer num ramo de nespereira que se estendia por cima da vereda que ia para as Eiras; um balanço no ramo do carvalheiro que ficava em cima do bardo e se estendia sobre o caminho ao pé da casa da Tia Carolina do Pinheirinho; um balanço na pereira que existia em casa do Ti Noé; um balanço na nespereira que havia à frente das casas da Turquia; um balanço em casa do Ti José Mirando, que acabou por ser mudado para outro local, abaixo do ribeiro.
- "Traz-me uma cartinha!" Era assim que as crianças pediam a quem se embalançava que tentasse agarrar, com as mãos ou com os pés, pequenas folhas de árvore, para provar o quão alto tinham conseguido ir.
Junho era o mês dos balanços, o mês em que se descascavam os vimes verdes. Quando os balanços começavam a secar, ainda tentavam salvá-los, metendo-os em água para amolecerem, mas mais tarde ou mais cedo acabavam-se os balanços. Até ao ano seguinte, na época dos vimes.
Ouço estas memórias e sinto beleza em tudo. Nos objectos, nos gestos, nas emoções e nas palavras. Fico contente por sempre ter usado a palavra balanço. A palavra baloiço foi uma novidade aprendida muito mais tarde e nunca me soou tão bem.
terça-feira, janeiro 10, 2012
ter um pai nosso nas coisas
Percorremos a casa com solenidade, guardando o silêncio a que parecem convidar-nos alguns espaços importantes. Admiramos a decoração, a limpeza extrema, o bom gosto.
Os donos da casa não disfarçam o orgulho. Aqui e ali comentam pormenores sobre a construção, sobre decisões que tomaram, escolhas difíceis, procuras complicadas ou até opções inicialmente erradas.
Reparamos nos tapassóis de madeira com dobradiças de ferro, admiramos o alpendre, experimentamos os sofás da sala. A dona da casa abre armários, explica a origem de alguns objectos, mostra o jogo de panelas, retira copos do aparador, abre panos e toalhas bordadas para melhor os admirarmos, chama a atenção para a poupança de espaço na cozinha.
Depois da agradável visita, a minha mãe vira-se para mim e exclama: "Ela tem um pai nosso nas coisas!" Foi esta a sua maneira de dizer que as coisas estavam todas extremamente organizadas, incrivelmente limpas, sem merecerem o mínimo reparo. Ter um pai nosso nas coisas é isto, é uma capacidade que algumas pessoas possuem e outras nunca conseguem alcançar, ainda que sejam católicas fervorosas e rezem o pai-nosso diariamente.
Os donos da casa não disfarçam o orgulho. Aqui e ali comentam pormenores sobre a construção, sobre decisões que tomaram, escolhas difíceis, procuras complicadas ou até opções inicialmente erradas.
Reparamos nos tapassóis de madeira com dobradiças de ferro, admiramos o alpendre, experimentamos os sofás da sala. A dona da casa abre armários, explica a origem de alguns objectos, mostra o jogo de panelas, retira copos do aparador, abre panos e toalhas bordadas para melhor os admirarmos, chama a atenção para a poupança de espaço na cozinha.
Depois da agradável visita, a minha mãe vira-se para mim e exclama: "Ela tem um pai nosso nas coisas!" Foi esta a sua maneira de dizer que as coisas estavam todas extremamente organizadas, incrivelmente limpas, sem merecerem o mínimo reparo. Ter um pai nosso nas coisas é isto, é uma capacidade que algumas pessoas possuem e outras nunca conseguem alcançar, ainda que sejam católicas fervorosas e rezem o pai-nosso diariamente.
sábado, janeiro 07, 2012
nem fome nem frio
"Até à Festa não há fome nem frio!"
Respondem, com esta expressão, a uma queixa minha de que está muito frio, como ainda não tinha estado este Inverno. Já não é possível andar com roupas leves.
"Até à Festa não há fome nem frio!"
Explicam-me que o rigor do Inverno só começa realmente em Janeiro, altura em que chega a maior força do frio, e altura a partir da qual escasseiam os produtos da terra, frutos ou legumes.
Está mais frio do que antes, o ditado confirma-se.
Está frio mas não chove, como deve acontecer no Inverno. No meio de tantas anormalidades, até a chuva anda distraída e não vem no tempo certo.
Respondem, com esta expressão, a uma queixa minha de que está muito frio, como ainda não tinha estado este Inverno. Já não é possível andar com roupas leves.
"Até à Festa não há fome nem frio!"
Explicam-me que o rigor do Inverno só começa realmente em Janeiro, altura em que chega a maior força do frio, e altura a partir da qual escasseiam os produtos da terra, frutos ou legumes.
Está mais frio do que antes, o ditado confirma-se.
Está frio mas não chove, como deve acontecer no Inverno. No meio de tantas anormalidades, até a chuva anda distraída e não vem no tempo certo.
terça-feira, janeiro 03, 2012
história da bicha fera
Os pequenos eram espertos e em vez de meterem o dedo na fechadura da caixa, metiam um rabo de lagartixa e conseguiam enganar a bruxa. Esta era a nossa parte preferida de uma das histórias que mais vezes ouvimos durante a infância, a história da Bicha Fera.
A cena do rabinho de lagartixa representava uma espécie de pausa ao meio da história, era a parte em que podíamos descontrair, a parte em que sorríamos e respirávamos fundo, pois todo o resto era assustador.
Sempre que a minha mãe contava a história da Bicha Fera, eu tinha esperança que ela dissesse que os dois pequenos se tinham perdido acidentalmente na floresta. Mas a minha mãe contava sempre a história tal como ela era, era assim mesmo nesse tempo.
Os dois pequenos protagonistas desta história comportavam-se mal. Por isso, a madrasta pediu ao pai deles que os abandonasse na floresta. O pai levou-os para a floresta com o pretexto de irem à lenha e quando lá chegaram sugeriu que eles fossem para um lado e ele para o outro, reunindo-se depois no ponto e partida.
Já carregados com dois molhinhos de lenha, os dois pequenos voltaram ao local combinado mas não viram o pai de ponta nenhuma. Esperaram mas ele não chegou. Então, começaram a chamar: "Traz, traz, quanta lenha meu pai faz! Truz, truz, quanta lenha meu pai fez!" Nesta parte, a minha mãe chamava várias vezes, imitando o eco da floresta.
A certa altura, eles lembraram-se de que tinham comido tremoços pelo caminho e decidiram seguir as cascas. Mas a certa altura já não havia mais cascas para seguir e eles continuavam perdidos e estava já a anoitecer. Foram andando, andando, andando, até que avistaram uma luzinha no escuro.
Andaram até chegarem junto a uma pequena casa, onde uma velha estava a fazer malassadas. A velha colocava as malassadas no parapeito da janela e os pequenos, esfomeados, iam-nas tirando sem que ela se apercebesse. A velha tinha um gato cego de um olho e pensando que o roubo era obra sua, ia dizendo: " Sape gato de olho torto, cego-te um e tiro-te o outro. Sape gato de olho torto, cego-te um e tiro-te o outro."
Até que decidiu ir à rua e encontrou os dois pequenos, que tratou muito bem e convidou para entrarem. Meteu-os na caixa do pão, uma caixa igual à que havia na cozinha dos meus avós e em todas as outras cozinhas de antigamente.
A velha ia alimentando as duas crianças pelo buraco da fechadura da caixa e de vez em quando queria saber se eles já estavam gordinhos. Mas os pequenos eram espertos e quando ela lhes pedia para meterem o dedo pela buraco da fechadura, eles metiam um rabinho de lagartixa que tinham na algibeira.
Era aqui que nós ríamos. Parávamos. Respirávamos. Que engraçado! Que bom eles terem levado a lagartixa na algibeira! Bem feito para a velha.
A velha começou a desconfiar por eles estarem sempre magrinhos, apesar de toda a comida que lhes dava e um dia decidiu abrir a caixa. Qual não foi o espanto quando os viu tão gordinhos! Então, disse aos pequenos para irem à lenha e deu-lhes um pão, uma garrafa de vinho e peixe, dizendo: "Vocês comem o pão e trazem o pão, comem o peixe e trazem o peixe, bebem o vinho e trazem o vinho."
Pelo caminho, os dois irmãos começaram a chorar por não saberem o que fazer em relação às coisas que tinham de comer e trazer ao mesmo tempo. Apareceu-lhes então Santo Antoninho, que era o padrinho de um deles, e recomendou-lhes que comessem o miolo do pão e levassem de volta a côdea, que comessem o peixe e levassem de volta as espinhas e que bebessem o vinho e levassem de volta a garrafa cheia de água. Disse-lhes ainda para não obedecerem à velha quando ela lhes dissesse para irem para a frente do forno bailar, que antes lhe pedissem para os ensinar. Os pequenos ficaram mais sossegados e pararam de chorar.
A velha ficou satisfeita com a solução encontrada pelos pequenos para as coisas que lhes tinha dado para levar e trazer e começou a aquecer o forno. Quando já estava quente, disse-lhe que fossem para a frente da porta do forno bailarem para se aquecerem, coitados, tinham vindo da serra e estavam gelados. Mas eles disseram-lhe que fosse ela primeiro para os ensinar como fazer, e assim que a mulher começou a bailar ao pé da porta do forno, pegaram na pá e empurraram-na para dentro do forno.
A mulher começou a arder e a gritar e saiu-lhe um cachorro pela boca que fugiu pela porta fora porque, afinal, ela era uma bruxa. Acabava assim a história da bicha fera, uma das histórias que mais vezes ouvi durante a infância e que nunca me tinha lembrado de contar à minha filha. Contei-lha um dia destes, fazendo pausas aqui e ali para me tentar lembrar - algumas partes tive de confirmar depois com a minha mãe.
Divertimo-nos a comparar a história de Hansel e Gretel dos livros infantis com esta versão madeirense e fizemos uma pausa para sorrir na parte em que o rabo de lagartixa metido pelo buraco da fechadura da caixa serve para aldrabar a velha. Estive tentada a começar dizendo que os dois pequenos se tinham perdido acidentalmente na floresta, mas acabei por fazer como a minha mãe fazia e contar a história tal como ela é.
A cena do rabinho de lagartixa representava uma espécie de pausa ao meio da história, era a parte em que podíamos descontrair, a parte em que sorríamos e respirávamos fundo, pois todo o resto era assustador.
Sempre que a minha mãe contava a história da Bicha Fera, eu tinha esperança que ela dissesse que os dois pequenos se tinham perdido acidentalmente na floresta. Mas a minha mãe contava sempre a história tal como ela era, era assim mesmo nesse tempo.
Os dois pequenos protagonistas desta história comportavam-se mal. Por isso, a madrasta pediu ao pai deles que os abandonasse na floresta. O pai levou-os para a floresta com o pretexto de irem à lenha e quando lá chegaram sugeriu que eles fossem para um lado e ele para o outro, reunindo-se depois no ponto e partida.
Já carregados com dois molhinhos de lenha, os dois pequenos voltaram ao local combinado mas não viram o pai de ponta nenhuma. Esperaram mas ele não chegou. Então, começaram a chamar: "Traz, traz, quanta lenha meu pai faz! Truz, truz, quanta lenha meu pai fez!" Nesta parte, a minha mãe chamava várias vezes, imitando o eco da floresta.
A certa altura, eles lembraram-se de que tinham comido tremoços pelo caminho e decidiram seguir as cascas. Mas a certa altura já não havia mais cascas para seguir e eles continuavam perdidos e estava já a anoitecer. Foram andando, andando, andando, até que avistaram uma luzinha no escuro.
Andaram até chegarem junto a uma pequena casa, onde uma velha estava a fazer malassadas. A velha colocava as malassadas no parapeito da janela e os pequenos, esfomeados, iam-nas tirando sem que ela se apercebesse. A velha tinha um gato cego de um olho e pensando que o roubo era obra sua, ia dizendo: " Sape gato de olho torto, cego-te um e tiro-te o outro. Sape gato de olho torto, cego-te um e tiro-te o outro."
Até que decidiu ir à rua e encontrou os dois pequenos, que tratou muito bem e convidou para entrarem. Meteu-os na caixa do pão, uma caixa igual à que havia na cozinha dos meus avós e em todas as outras cozinhas de antigamente.
A velha ia alimentando as duas crianças pelo buraco da fechadura da caixa e de vez em quando queria saber se eles já estavam gordinhos. Mas os pequenos eram espertos e quando ela lhes pedia para meterem o dedo pela buraco da fechadura, eles metiam um rabinho de lagartixa que tinham na algibeira.
Era aqui que nós ríamos. Parávamos. Respirávamos. Que engraçado! Que bom eles terem levado a lagartixa na algibeira! Bem feito para a velha.
A velha começou a desconfiar por eles estarem sempre magrinhos, apesar de toda a comida que lhes dava e um dia decidiu abrir a caixa. Qual não foi o espanto quando os viu tão gordinhos! Então, disse aos pequenos para irem à lenha e deu-lhes um pão, uma garrafa de vinho e peixe, dizendo: "Vocês comem o pão e trazem o pão, comem o peixe e trazem o peixe, bebem o vinho e trazem o vinho."
Pelo caminho, os dois irmãos começaram a chorar por não saberem o que fazer em relação às coisas que tinham de comer e trazer ao mesmo tempo. Apareceu-lhes então Santo Antoninho, que era o padrinho de um deles, e recomendou-lhes que comessem o miolo do pão e levassem de volta a côdea, que comessem o peixe e levassem de volta as espinhas e que bebessem o vinho e levassem de volta a garrafa cheia de água. Disse-lhes ainda para não obedecerem à velha quando ela lhes dissesse para irem para a frente do forno bailar, que antes lhe pedissem para os ensinar. Os pequenos ficaram mais sossegados e pararam de chorar.
A velha ficou satisfeita com a solução encontrada pelos pequenos para as coisas que lhes tinha dado para levar e trazer e começou a aquecer o forno. Quando já estava quente, disse-lhe que fossem para a frente da porta do forno bailarem para se aquecerem, coitados, tinham vindo da serra e estavam gelados. Mas eles disseram-lhe que fosse ela primeiro para os ensinar como fazer, e assim que a mulher começou a bailar ao pé da porta do forno, pegaram na pá e empurraram-na para dentro do forno.
A mulher começou a arder e a gritar e saiu-lhe um cachorro pela boca que fugiu pela porta fora porque, afinal, ela era uma bruxa. Acabava assim a história da bicha fera, uma das histórias que mais vezes ouvi durante a infância e que nunca me tinha lembrado de contar à minha filha. Contei-lha um dia destes, fazendo pausas aqui e ali para me tentar lembrar - algumas partes tive de confirmar depois com a minha mãe.
Divertimo-nos a comparar a história de Hansel e Gretel dos livros infantis com esta versão madeirense e fizemos uma pausa para sorrir na parte em que o rabo de lagartixa metido pelo buraco da fechadura da caixa serve para aldrabar a velha. Estive tentada a começar dizendo que os dois pequenos se tinham perdido acidentalmente na floresta, mas acabei por fazer como a minha mãe fazia e contar a história tal como ela é.