segunda-feira, maio 30, 2005
A lavadeira
Num poio cavado de fresco, junto à casa dos meus pais, vi uma lavadeira. Uma lavadeira! Olha, uma lavadeira! Parecia uma criança, de tão contente fiquei. A lavadeira era linda, com o peito amarelo, e a cauda muito comprida, sempre a balançar. Uma lavadeira, é mesmo uma lavadeira! Fez-me lembrar a primeira vez em que vi uma lavadeira, um pássaro que sempre achei especial, e talvez por isso não o mencionei quando me referi às outras aves que povoaram a minha infância.
Nunca me esqueci da primeira vez que vi uma lavadeira: foi a caminho das Amoreiras, ou do Serralhal, talvez para lavar a roupa com a minha avó, na Ribeira, ou provavelmente para comprar alguma coisa na Venda do China. Nessa vez não fomos na vereda habitual que passava atrás do palheiro do Semião. Em vez disso descemos o velho "Caminho dos Burros", que atravessava a levada dos tornos, feito de pequenos degraus empedrados, e que nos fazia retomar a outra vereda, no cabeço defronte da Venda do China. Talvez tivéssemos primeiro ido a Casa das Gregórias e depois tomado esse caminho para não dar uma volta maior.
Ou talvez não fosse com a minha avó, mas fazer alguma volta com uma das minhas irmãs. Associo a minha avó à imagem da lavadeira porque foi ela que me disse como se chamava esse pássaro bem mais raro do que os outros e que não parava de abanar a cauda comprida. A lavadeira estava pousada numa pedra, lembro-me que era do lado direito do caminho, para quem ia descer. Pensando bem, acho que a minha avó não ia comigo porque tenho a ideia de lhe ter feito uma descrição detalhada da ave, e ter aguardado com a respiração suspensa pela sentença dela: "É uma lavadeira. Elas estão sempre embalançando o rabo e dão-se perto dos lugares onde tem água, perto das levadas ou dos poços." Estava explicado, a "levada grande" localizava-se apenas um pouco acima do local onde avistei a lavadeira.
Vi uma lavadeira empoleirada no poio cavado de fresco junto à casa dos meus pais. Balançava a cauda ininterruptamente e deixou-se observar durante um bom bocado, enquanto eu tentava conter as exclamações para não a assustar. Mas ali perto não há água, a levada fica bem mais para cima. É possível que as lavadeiras também estejam a mudar de hábitos, tal como a papinha esperta que trocou os bardos pelos diabinhos do alpendre da casa dos meus pais, um local bem mais protegido dos outros animais e ainda pro cima abrigado da chuva. Se até os pequenos pássaros se adaptam às novas situações, procurando soluções novas perante novas realidades, porque terei eu às vezes tanta dificuldade em aceitar as mudanças? Porque me sentirei desadequada de tudo, tão fora do estranho mundo do cinismo em que a maioria das pessoas parece viver bem e sentir-se bem e não querer de lá sair?
Nunca me esqueci da primeira vez que vi uma lavadeira: foi a caminho das Amoreiras, ou do Serralhal, talvez para lavar a roupa com a minha avó, na Ribeira, ou provavelmente para comprar alguma coisa na Venda do China. Nessa vez não fomos na vereda habitual que passava atrás do palheiro do Semião. Em vez disso descemos o velho "Caminho dos Burros", que atravessava a levada dos tornos, feito de pequenos degraus empedrados, e que nos fazia retomar a outra vereda, no cabeço defronte da Venda do China. Talvez tivéssemos primeiro ido a Casa das Gregórias e depois tomado esse caminho para não dar uma volta maior.
Ou talvez não fosse com a minha avó, mas fazer alguma volta com uma das minhas irmãs. Associo a minha avó à imagem da lavadeira porque foi ela que me disse como se chamava esse pássaro bem mais raro do que os outros e que não parava de abanar a cauda comprida. A lavadeira estava pousada numa pedra, lembro-me que era do lado direito do caminho, para quem ia descer. Pensando bem, acho que a minha avó não ia comigo porque tenho a ideia de lhe ter feito uma descrição detalhada da ave, e ter aguardado com a respiração suspensa pela sentença dela: "É uma lavadeira. Elas estão sempre embalançando o rabo e dão-se perto dos lugares onde tem água, perto das levadas ou dos poços." Estava explicado, a "levada grande" localizava-se apenas um pouco acima do local onde avistei a lavadeira.
Vi uma lavadeira empoleirada no poio cavado de fresco junto à casa dos meus pais. Balançava a cauda ininterruptamente e deixou-se observar durante um bom bocado, enquanto eu tentava conter as exclamações para não a assustar. Mas ali perto não há água, a levada fica bem mais para cima. É possível que as lavadeiras também estejam a mudar de hábitos, tal como a papinha esperta que trocou os bardos pelos diabinhos do alpendre da casa dos meus pais, um local bem mais protegido dos outros animais e ainda pro cima abrigado da chuva. Se até os pequenos pássaros se adaptam às novas situações, procurando soluções novas perante novas realidades, porque terei eu às vezes tanta dificuldade em aceitar as mudanças? Porque me sentirei desadequada de tudo, tão fora do estranho mundo do cinismo em que a maioria das pessoas parece viver bem e sentir-se bem e não querer de lá sair?
Sei um ninho de papinha....
"Sei um ninho de papinha atrás da casa de minha madrinha". Tantas vezes repeti esta frase durante a infância. Os ninhos de papinha, feitos nos bardos, eram os que mais interessavam as raparigas, enquanto os rapazes se deliciavam com os de melro preto, que exigiam subir a pinheiros altos, com os de toutinegro ou de tentilhão, também construídos em árvores, embora muito mais frágeis. Para todos os casos havia um refrão. "Sei um ninho de melro preto atrás da casa de João Barreto." "Sei um ninho de tentilhão atrás da casa de meu irmão." "Sei um ninho de "tintonegro" atrás da casa do João Pedro."
Tantas Primaveras depois, volto a saber um ninho. Sei um ninho de papinha, que alegria. E no meio do contentamento, repito e ensino à minha menina, as frases quase esquecidas. "Sei um ninho de tentilhão atrás da casa de meu irmão." E pelo meio vou tentando explicar as diferenças entre os pássaros. "Sei um ninho de melro preto atrás da casa de João Barreto". E entretanto também lhe explico as diferenças entre os ninhos de cada espécie. "Sei um ninho de papinha atrás da casa de minha madrinha." O ninho de papinha que sabemos na Primavera presente não é atrás da casa de nenhuma madrinha. Também não é em nenhum bardo, como seria de esperar de qualquer ninho de papinha.
O ninho de papinha que sabemos foi descoberto ao acaso pela minha mãe e está num sítio incrível: no meio de uns diabinhos que crescem junto ao alpendre da casa, que a minha mãe poda de vez em quando e nós dizemos que tem a forma de uma girafa. Começa mais rasteiro e depois sobe pelo alpendre e foi na parte mais alta, quase junto ao zinco, na parte que dizemos ser a cabeça da girafa, que a papinha se lembrou de fazer o ninho. Enfim, é uma espécie de equivalente aos apartamentos modernos, substituindo as antigas casas nos bardos.
A minha mãe estava a arranjar a nossa girafa quando se apercebeu de um monte de matos e folhas e ficou com medo de ter estragado o ninho. Então, pegou nas pontas dos diabinhos e amarrou-as, na tentativa de o salvar. Nessa altura ela ainda não imaginava que a dona do ninho era uma papinha. Foi o meu pai que a viu várias vezes na sua lida diária, a entrar e a sair da casa, e por isso garantiu que se tratava mesmo de uma papinha. É tão moderna esta papinha que deu mais um arranjo ao ninho e não o enjeitou.
Tantas vezes vi as papinhas enjeitarem os ninhos. Tantas vezes eu e as minhas irmãs ficámos com sentimentos de culpa. Bem nos avisavam que elas enjeitavam o ninho se alguém tocasse nos ovos mas o desejo de lhes tocar era mais forte, e tínhamos esperança que ela não notasse, uma vez que não estava a ver. Mas cumpria-se sempre, e víamos os ovos ficarem abandonados e frios, já sem nada podermos fazer para remediar a situação. Outra coisa que nos avisavam para não fazer era dizer a localização de um ninho à frente do lume, pois era certo que as formigas o assaltariam. Nós acreditávamos e tentávamos seguir a regra, mas um dia, de tanta excitação com um dos primeiros ninhos de papinha que a minha mãe descobriu para nós, falámos dele à volta da mesa do jantar, estanto a panela ainda ao lume. Foi sem querer e na nossa inocência tivemos esperança que a falha nos fosse perdoada, mas no dia seguinte os passarinhas estavam cobertos de formigas e todos mortos. Chorámos tanto!
Não sei quantos ovos tem o ninho da papinha feito nos diabinhos, nem se já tem passarinhos, talvez tenha. Quem me poder fazer como antigamente e ficar ali tempos esquecidos a vigiar a papinha, a ver se ela regressa a casa com alguma minhoca no bico. O ninho permanece escondido entre os diabinhos. Continua a encerrar o seu segredo, embora tenhamos conhecimento dele. Apontamos para cima e as crianças seguem o nosso indicador, fixando os olhos curiosos no amontoado de folhas e matos. "Sei um ninho de papinha junto à casa da avozinha". A papinha adaptou-se aos tempos, pois há cada vez menos bardos cobertos de ervas e de isabelinhas, e eu decidi também adaptar o antigo refrão e ensiná-lo às crianças da família: "Sei um ninho de papinha junto à casa da avozinha".
Tantas Primaveras depois, volto a saber um ninho. Sei um ninho de papinha, que alegria. E no meio do contentamento, repito e ensino à minha menina, as frases quase esquecidas. "Sei um ninho de tentilhão atrás da casa de meu irmão." E pelo meio vou tentando explicar as diferenças entre os pássaros. "Sei um ninho de melro preto atrás da casa de João Barreto". E entretanto também lhe explico as diferenças entre os ninhos de cada espécie. "Sei um ninho de papinha atrás da casa de minha madrinha." O ninho de papinha que sabemos na Primavera presente não é atrás da casa de nenhuma madrinha. Também não é em nenhum bardo, como seria de esperar de qualquer ninho de papinha.
O ninho de papinha que sabemos foi descoberto ao acaso pela minha mãe e está num sítio incrível: no meio de uns diabinhos que crescem junto ao alpendre da casa, que a minha mãe poda de vez em quando e nós dizemos que tem a forma de uma girafa. Começa mais rasteiro e depois sobe pelo alpendre e foi na parte mais alta, quase junto ao zinco, na parte que dizemos ser a cabeça da girafa, que a papinha se lembrou de fazer o ninho. Enfim, é uma espécie de equivalente aos apartamentos modernos, substituindo as antigas casas nos bardos.
A minha mãe estava a arranjar a nossa girafa quando se apercebeu de um monte de matos e folhas e ficou com medo de ter estragado o ninho. Então, pegou nas pontas dos diabinhos e amarrou-as, na tentativa de o salvar. Nessa altura ela ainda não imaginava que a dona do ninho era uma papinha. Foi o meu pai que a viu várias vezes na sua lida diária, a entrar e a sair da casa, e por isso garantiu que se tratava mesmo de uma papinha. É tão moderna esta papinha que deu mais um arranjo ao ninho e não o enjeitou.
Tantas vezes vi as papinhas enjeitarem os ninhos. Tantas vezes eu e as minhas irmãs ficámos com sentimentos de culpa. Bem nos avisavam que elas enjeitavam o ninho se alguém tocasse nos ovos mas o desejo de lhes tocar era mais forte, e tínhamos esperança que ela não notasse, uma vez que não estava a ver. Mas cumpria-se sempre, e víamos os ovos ficarem abandonados e frios, já sem nada podermos fazer para remediar a situação. Outra coisa que nos avisavam para não fazer era dizer a localização de um ninho à frente do lume, pois era certo que as formigas o assaltariam. Nós acreditávamos e tentávamos seguir a regra, mas um dia, de tanta excitação com um dos primeiros ninhos de papinha que a minha mãe descobriu para nós, falámos dele à volta da mesa do jantar, estanto a panela ainda ao lume. Foi sem querer e na nossa inocência tivemos esperança que a falha nos fosse perdoada, mas no dia seguinte os passarinhas estavam cobertos de formigas e todos mortos. Chorámos tanto!
Não sei quantos ovos tem o ninho da papinha feito nos diabinhos, nem se já tem passarinhos, talvez tenha. Quem me poder fazer como antigamente e ficar ali tempos esquecidos a vigiar a papinha, a ver se ela regressa a casa com alguma minhoca no bico. O ninho permanece escondido entre os diabinhos. Continua a encerrar o seu segredo, embora tenhamos conhecimento dele. Apontamos para cima e as crianças seguem o nosso indicador, fixando os olhos curiosos no amontoado de folhas e matos. "Sei um ninho de papinha junto à casa da avozinha". A papinha adaptou-se aos tempos, pois há cada vez menos bardos cobertos de ervas e de isabelinhas, e eu decidi também adaptar o antigo refrão e ensiná-lo às crianças da família: "Sei um ninho de papinha junto à casa da avozinha".
terça-feira, maio 24, 2005
Fazer figuinhas
Ensinei a minha sobrinha a "fazer figuinhas" e senti-me contente por ter sido eu a ensinar-lhe um ritual que me fartei de repetir em criança e que as crianças das gerações anteriores também tinham repetido, e por isso é que a minha mãe e a minha avó ma ensinaram.
Estávamos a brincar e quase sem notar dei por mim a ensinar-lhe esse antigo gesto. Segurei-lhe nas mãozinhas muito pequenas, do tamanho das mãos das meninas de quatro anos, e fi-la passar o indicador direito sobre o indicador esquerdo, fazendo os movimentos obrigatórios das "figuinhas": "Figuinhas, tu não tens!" Ela fez um sorriso enorme, enquanto fixava os dedos pequeninos a fazerem "figuinhas" à prima, por ter algo que a prima não tinha, que sorte!
São tantos os gestos pequenos como este de fazer "figuinhas"! Tantos pequenos gestos, todos com diferentes significados, que tenho guardados na memória. Esses gestos não teriam o mínimo sentido se não pudesse ensiná-los, segurando numas pequeninas mãos de uma linda menina de quatro anos. Deve ser só para isso que algumas coisas existem. Poder ensiná-las e ver um riso enorme e uns olhos a brilhar de espanto perante algo tão simples, porém novo.
Não tenho por hábito "fazer figuinhas" a ninguém, a não ser nalguma brincadeira mutuamente consentida, nem me julgo possuidora de coisas que possam "fazer ramelas" (ou seja, causar inveja) a alguém. Não tenho muito mais do que este meu estranho gosto pelos pequenos momentos, por tudo o que encerra a estranha magia do que pode continuar a existir, a partir de uma simples memória e de um simples gesto. Esta alegria do insignificante enche-me como se fosse uma alegria grande. Mariana, gostei tanto de te ter ensinado a "fazer figuinhas"!
Estávamos a brincar e quase sem notar dei por mim a ensinar-lhe esse antigo gesto. Segurei-lhe nas mãozinhas muito pequenas, do tamanho das mãos das meninas de quatro anos, e fi-la passar o indicador direito sobre o indicador esquerdo, fazendo os movimentos obrigatórios das "figuinhas": "Figuinhas, tu não tens!" Ela fez um sorriso enorme, enquanto fixava os dedos pequeninos a fazerem "figuinhas" à prima, por ter algo que a prima não tinha, que sorte!
São tantos os gestos pequenos como este de fazer "figuinhas"! Tantos pequenos gestos, todos com diferentes significados, que tenho guardados na memória. Esses gestos não teriam o mínimo sentido se não pudesse ensiná-los, segurando numas pequeninas mãos de uma linda menina de quatro anos. Deve ser só para isso que algumas coisas existem. Poder ensiná-las e ver um riso enorme e uns olhos a brilhar de espanto perante algo tão simples, porém novo.
Não tenho por hábito "fazer figuinhas" a ninguém, a não ser nalguma brincadeira mutuamente consentida, nem me julgo possuidora de coisas que possam "fazer ramelas" (ou seja, causar inveja) a alguém. Não tenho muito mais do que este meu estranho gosto pelos pequenos momentos, por tudo o que encerra a estranha magia do que pode continuar a existir, a partir de uma simples memória e de um simples gesto. Esta alegria do insignificante enche-me como se fosse uma alegria grande. Mariana, gostei tanto de te ter ensinado a "fazer figuinhas"!
quarta-feira, maio 18, 2005
O olho-de-boi
Um dia destes, à noitinha, numa rua da cidade por onde passo à saída do trabalho, vi um vulto de mulher curvado para o chão. Fiquei espantada com a posição em que se encontrava, com a cabeça baixa, à altura da cintura, e os braços caídos, a alguns centímetros do chão. Reparei melhor. Usava um vestido enramado e na mão direita segurava um olho-de-boi. Um olho-de-boi. Foi a palavra de que me lembrei para identificar o objecto que usava para iluminar o chão, coitada da mulher, o que teria perdido? Com certeza alguma coisa valiosa, se não fosse não estaria a procurá-la de olho-de-boi. Não lhe vi o rosto, escondido por um cabelo grisalho e despenteado, mas devia ter uma expressão algo angustiada, dependendo do objecto em causa.
Continuei o meu caminho, fascinada pela imagem do olho-de-boi, embalada pelas memórias de outros olhos-de-boi.
O meu tio 14, que Deus lhe dê o Céu, tinha um olho-de-boi que sempre atraiu as atenções por ser enorme. Não tenho a certeza, mas talvez lhe tenha sido trazido por algum emigrante da família, da Venezuela, do Brasil ou da Austrália. Era um olho-de-boi enorme, com a parte de cima um pouco desproporcional, o corpo elegante. Tantas escuridões tentou aquele olho-de-boi iluminar!
Em nossa casa também havia um olho-de-boi, que talvez tenha sido trazido pelo meu pai, no seu primeiro regresso da Austrália. Durou tantos anos, esse olho-de-boi. Era de tamanho normal, mas metalizado como o do meu tio. Quantas vezes a minha mãe me foi alcançar ao autocarro levando esse olho-de-boi porque já era noite. Quantas vezes saiu à rua apenas por instantes, acompanhada desse objecto mágico. Para juntar alguma peça de roupa esquecida no arame, para investigar algum barulho estranho, sei lá que mais.
Quando o meu tio morreu, o meu pai ficou com o olho-de-boi gigante, mas ele durou pouco. Avariou-se sem explicação, talvez só conseguisse funcionar com o calor da mão do meu tio, ao lado de quem viveu imensos anos. Depois disso, já lá vão dois. Os olhos-de-boi das lojas dos trezentos são uma porcaria.
E porque se chama olho-de-boi? A minha mãe sorri, e o meu pai também. Os primeiros olhos-de-boi não eram como os de agora, nem como o tal do meu tio, nem como o que me lembro de ver em casa a vida toda. Os primeiros olhos-de-boi eram pequenos, qudrados, e com a parte da frente saída para fora, "tal e qual um olho de boi".
Continuei o meu caminho, fascinada pela imagem do olho-de-boi, embalada pelas memórias de outros olhos-de-boi.
O meu tio 14, que Deus lhe dê o Céu, tinha um olho-de-boi que sempre atraiu as atenções por ser enorme. Não tenho a certeza, mas talvez lhe tenha sido trazido por algum emigrante da família, da Venezuela, do Brasil ou da Austrália. Era um olho-de-boi enorme, com a parte de cima um pouco desproporcional, o corpo elegante. Tantas escuridões tentou aquele olho-de-boi iluminar!
Em nossa casa também havia um olho-de-boi, que talvez tenha sido trazido pelo meu pai, no seu primeiro regresso da Austrália. Durou tantos anos, esse olho-de-boi. Era de tamanho normal, mas metalizado como o do meu tio. Quantas vezes a minha mãe me foi alcançar ao autocarro levando esse olho-de-boi porque já era noite. Quantas vezes saiu à rua apenas por instantes, acompanhada desse objecto mágico. Para juntar alguma peça de roupa esquecida no arame, para investigar algum barulho estranho, sei lá que mais.
Quando o meu tio morreu, o meu pai ficou com o olho-de-boi gigante, mas ele durou pouco. Avariou-se sem explicação, talvez só conseguisse funcionar com o calor da mão do meu tio, ao lado de quem viveu imensos anos. Depois disso, já lá vão dois. Os olhos-de-boi das lojas dos trezentos são uma porcaria.
E porque se chama olho-de-boi? A minha mãe sorri, e o meu pai também. Os primeiros olhos-de-boi não eram como os de agora, nem como o tal do meu tio, nem como o que me lembro de ver em casa a vida toda. Os primeiros olhos-de-boi eram pequenos, qudrados, e com a parte da frente saída para fora, "tal e qual um olho de boi".
sexta-feira, maio 13, 2005
A malhada
Parece mentira mas é verdade. Nunca tinha ouvido semelhante coisa e assusto-me com a minha distracção, eu que sempre me julguei atenta a todos os pormenores da cultura popular. Ouvi pela primeira vez a palavra "malhada" no último domingo, dia da Ascensão. A meia tarde, íamos a passar no Chão das Eiras de carro, quando a minha mãe, olhando com espanto para o largo deserto e para as vendas fechadas, exclamou: "Meu Deus, o que isto era antigamente no Dia da Ascenção!"
O Dia da Ascensão é o último dia das visitas do Espírito Santo, que percorrem os vários sítios da paróquia nas semanas a seguir à Páscoa. Este ano a visita do Espirito Santo à minha casa calhou precisamente nesse dia.
Recebi os homens das capas e bandeiras vermelhas, seguindo o antigo ritual. Coloquei flores numa pequena bandeja que foi da minha avó, ocultando uma nota de cinco euros. Na mesa antiga, onde provavelmente a minha vó também colocou oferendas para o Espírito Santo, dispus ainda um jarro com vinho e copos, uma garrafa de licor também com os respectivos copos e uma bandeja com bolo doce. A completar a mesa, uma jarra com flores.
E fiquei toda a manhã à espera, tal como fazíamos antigamente na casa dos meus pais, tentando adivinhar se estavam perto ou longe pela intensidade dos foguetes, que assinalam a chegada a uma casa diferente. Foi estranho vê-los percorrer as escadas do bloco de apartamentos. É muito mais bonito vê-los chegar a um terreiro e depois partir subindo umas passadas ou descendo uma antiga vereda, conforme o percurso combinado entre eles.
Apesar destas diferenças, o ritual manteve-se. O festeiro tirou as flores e o dinheiro para dentro do saco de veludo encarnado e deixou na bandeja algumas pétalas de outras flores, que tinha recolhido noutra casa qualquer. Lembro-me de guardarmos religiosamente essas pétalas, para atirá-las a alguma árvore que teimasse em não dar fruto. Era remédio santo e o resultado via-se logo no ano seguinte, quando a respectiva árvore se cobria de frutos. Ainda lá tenho, na bandejinha azul, as pétalas de rosa já murchas, e tenho pena de não ter nenhuma árvore a necessitar delas.
Os outros dois senhores de capa vermelha pousaram o pendão e a bandeira junto à mesa da sala, conversaram um pouco e ainda provaram um pouco do meu vinho e uma pequena fatia de bolo doce. Foi quase tudo como antes. Mas pouco depois, quando passámos no Chão das Eiras, houve aquela falta, da qual eu não fazia ideia. "O que isto era antigamente no Dia da Ascensão!" E a voz da minha contou que as raparigas do sítio faziam vestidos novos de propósito para esse dia, para irem assistir à "malhada".
Durante a tarde, o povo ia-se juntando no Chão das Eiras. As pessoas ficavam ali, apreciando e comentando os vestidos novos, os olhares que os rapazes deitavam às raparigas, e de certeza conversando sobre outras coisas da vida, como o viço das culturas ou as desgraças do tempo. Iam vendo o grupo do Espirito Santo percorrer as últimas casas do Sítio, as que ficavam ali ao pé, mesmo no Chão das Eiras, ao som dos foguetes, e já de algumas bebedeiras. Havia cantigas, de certeza. Para o fim, ficavam as vendas. O Espirito Santo também ia às vendas. Depois, quando não restava nenhuma casa nem nenhuma venda para visitar, no meio da festa que era a "malhada", os três homens das capas vermelhas davam por terminada a tarefa desse ano. O ritual que assinalava o fecho das visitas do Espirito Santo era o cruzamento da bandeira e o pendão. Assim era a "malhada", de que eu não me lembro, embora deva ter assistido a alguma, algures na minha primeira infância. Nunca tinha ouvido falar na palavra "malhada", que distracção a minha. Vou andar mais atenta.
O Dia da Ascensão é o último dia das visitas do Espírito Santo, que percorrem os vários sítios da paróquia nas semanas a seguir à Páscoa. Este ano a visita do Espirito Santo à minha casa calhou precisamente nesse dia.
Recebi os homens das capas e bandeiras vermelhas, seguindo o antigo ritual. Coloquei flores numa pequena bandeja que foi da minha avó, ocultando uma nota de cinco euros. Na mesa antiga, onde provavelmente a minha vó também colocou oferendas para o Espírito Santo, dispus ainda um jarro com vinho e copos, uma garrafa de licor também com os respectivos copos e uma bandeja com bolo doce. A completar a mesa, uma jarra com flores.
E fiquei toda a manhã à espera, tal como fazíamos antigamente na casa dos meus pais, tentando adivinhar se estavam perto ou longe pela intensidade dos foguetes, que assinalam a chegada a uma casa diferente. Foi estranho vê-los percorrer as escadas do bloco de apartamentos. É muito mais bonito vê-los chegar a um terreiro e depois partir subindo umas passadas ou descendo uma antiga vereda, conforme o percurso combinado entre eles.
Apesar destas diferenças, o ritual manteve-se. O festeiro tirou as flores e o dinheiro para dentro do saco de veludo encarnado e deixou na bandeja algumas pétalas de outras flores, que tinha recolhido noutra casa qualquer. Lembro-me de guardarmos religiosamente essas pétalas, para atirá-las a alguma árvore que teimasse em não dar fruto. Era remédio santo e o resultado via-se logo no ano seguinte, quando a respectiva árvore se cobria de frutos. Ainda lá tenho, na bandejinha azul, as pétalas de rosa já murchas, e tenho pena de não ter nenhuma árvore a necessitar delas.
Os outros dois senhores de capa vermelha pousaram o pendão e a bandeira junto à mesa da sala, conversaram um pouco e ainda provaram um pouco do meu vinho e uma pequena fatia de bolo doce. Foi quase tudo como antes. Mas pouco depois, quando passámos no Chão das Eiras, houve aquela falta, da qual eu não fazia ideia. "O que isto era antigamente no Dia da Ascensão!" E a voz da minha contou que as raparigas do sítio faziam vestidos novos de propósito para esse dia, para irem assistir à "malhada".
Durante a tarde, o povo ia-se juntando no Chão das Eiras. As pessoas ficavam ali, apreciando e comentando os vestidos novos, os olhares que os rapazes deitavam às raparigas, e de certeza conversando sobre outras coisas da vida, como o viço das culturas ou as desgraças do tempo. Iam vendo o grupo do Espirito Santo percorrer as últimas casas do Sítio, as que ficavam ali ao pé, mesmo no Chão das Eiras, ao som dos foguetes, e já de algumas bebedeiras. Havia cantigas, de certeza. Para o fim, ficavam as vendas. O Espirito Santo também ia às vendas. Depois, quando não restava nenhuma casa nem nenhuma venda para visitar, no meio da festa que era a "malhada", os três homens das capas vermelhas davam por terminada a tarefa desse ano. O ritual que assinalava o fecho das visitas do Espirito Santo era o cruzamento da bandeira e o pendão. Assim era a "malhada", de que eu não me lembro, embora deva ter assistido a alguma, algures na minha primeira infância. Nunca tinha ouvido falar na palavra "malhada", que distracção a minha. Vou andar mais atenta.
sábado, maio 07, 2005
Borboletas
Uma borboleta amarela volteava no ar, junto a um pé de alecrim, na descida para a casa dos meus pais. Hipnotizou-me de leve e deixou-me nos lábios um sorriso triste. Um sorriso que depressa se transformou em memória e em pena. Foram tantas as broboletas amarelas que eu destruí sem saber!
Na infância, os brinquedos estavam todos na natureza. Pedras, paus, flores, terra, plantas....e animais. As borboletas eram os mais sublimes objectos de brincadeira. Era um tempo em que não percebíamos ainda o mecanismo inevitável da morte que sucede à vida. Apenas sabíamos da vida, e apenas a vida era real.
Por isso, quando em plena Primavera decidíamos dedicar uma tarde inteira a caçar borboletas, que íamos atirando para um saco de plástico, não sabíamos, nem sequer imaginávamos que estávamos a condená-las à morte.
As borboletas brancas e as castanhas pintadas eram as mais vulgares. Apanhávamo-las sem grande prazer. Lembro-me de andarmos nos poios das couves, que eram onde havia mais borboletas brancas. Eram as mais fáceis de apanhar e por isso eram aquelas a que dávamos menos valor.
Estou a ver-me com as asas de uma borboleta branca aprisionadas entre os meus dedos polegar e indicador da mão direita. Na mão esquerda agarro a boca do saco de plástico já com algumas borboletas. Observo-lhe os olhos, as patas que mexem e quando a atiro para dentro do saco, fechando-o rapidamente, ela tem as as asas um pouco desfeitas. Agarrei-a com força e fiquei com um pó esbranquiçado na ponta dos dedos.
As minhas irmãs repetem os gestos. As borboletas castanhas são mais rápidas e inteligentes, mas conseguimos apanhar algumas, que ficam misturadas com as brancas. Então surge uma borboleta amarela, das que eu sempre considerei as mais bonitas. Uma borboleta amarela! Dado o alarme, corremos em bicos de pés, quase voando também, pelo poio e depois pela vereda, a seguir por outro poio e depois descendo um bardo de isabelinhas, onde também crescem lírios brancos.
Havia também umas borboletas maiores, pretas e com pintas, muito bonitas. E outras enormes, com as asas recortadas, muito coloridas, lindas. Mas eu sempre gostei mais das amarelas. As borboletas amarelas são as mais bonitas. Que pena tenho de todas as que destruí, sem a consciência de que o fazia. Cacei borboletas pelos campos, com as tranças a saltitar ao ritmo dos meus saltos, roçando o vestido de andar em casa em folhas de couve, de onde escorriam gotas de orvalho, e enterrando os pés descalços na terra dos poios cavados de fresco.
Matei broboletas sem saber e tenho pena. No entanto, tenho também a certeza de que as minhas memórias seriam mais tristes e pobres se nunca tivesse corrido atrás de borboletas pelos campos e se nunca tivesse perseguido nenhuma borboleta amarela, que finalmente agarrava, exibindo como um troféu perante o olhar admirado das minhas irmãs, mais pequenos e menos ágeis. Sinto o macio as duas asas juntas entre os meus pequenos dedos indicador e polegar. É amarelo, o pó que me fica na ponta dos dedos.
Talvez nada exista sem estas subtis contradições. Talvez não haja alegria sem tristeza, nem coragem sem medo, nem esperança sem desespero. Talvez nada seja apenas simples como o à primeira vista possa parecer. Talvez nada seja apenas belo, como me pareceu o voo da borboleta amarela que vi junto ao pé de alecrim, na descida para a velha casa da minha infância.
Na infância, os brinquedos estavam todos na natureza. Pedras, paus, flores, terra, plantas....e animais. As borboletas eram os mais sublimes objectos de brincadeira. Era um tempo em que não percebíamos ainda o mecanismo inevitável da morte que sucede à vida. Apenas sabíamos da vida, e apenas a vida era real.
Por isso, quando em plena Primavera decidíamos dedicar uma tarde inteira a caçar borboletas, que íamos atirando para um saco de plástico, não sabíamos, nem sequer imaginávamos que estávamos a condená-las à morte.
As borboletas brancas e as castanhas pintadas eram as mais vulgares. Apanhávamo-las sem grande prazer. Lembro-me de andarmos nos poios das couves, que eram onde havia mais borboletas brancas. Eram as mais fáceis de apanhar e por isso eram aquelas a que dávamos menos valor.
Estou a ver-me com as asas de uma borboleta branca aprisionadas entre os meus dedos polegar e indicador da mão direita. Na mão esquerda agarro a boca do saco de plástico já com algumas borboletas. Observo-lhe os olhos, as patas que mexem e quando a atiro para dentro do saco, fechando-o rapidamente, ela tem as as asas um pouco desfeitas. Agarrei-a com força e fiquei com um pó esbranquiçado na ponta dos dedos.
As minhas irmãs repetem os gestos. As borboletas castanhas são mais rápidas e inteligentes, mas conseguimos apanhar algumas, que ficam misturadas com as brancas. Então surge uma borboleta amarela, das que eu sempre considerei as mais bonitas. Uma borboleta amarela! Dado o alarme, corremos em bicos de pés, quase voando também, pelo poio e depois pela vereda, a seguir por outro poio e depois descendo um bardo de isabelinhas, onde também crescem lírios brancos.
Havia também umas borboletas maiores, pretas e com pintas, muito bonitas. E outras enormes, com as asas recortadas, muito coloridas, lindas. Mas eu sempre gostei mais das amarelas. As borboletas amarelas são as mais bonitas. Que pena tenho de todas as que destruí, sem a consciência de que o fazia. Cacei borboletas pelos campos, com as tranças a saltitar ao ritmo dos meus saltos, roçando o vestido de andar em casa em folhas de couve, de onde escorriam gotas de orvalho, e enterrando os pés descalços na terra dos poios cavados de fresco.
Matei broboletas sem saber e tenho pena. No entanto, tenho também a certeza de que as minhas memórias seriam mais tristes e pobres se nunca tivesse corrido atrás de borboletas pelos campos e se nunca tivesse perseguido nenhuma borboleta amarela, que finalmente agarrava, exibindo como um troféu perante o olhar admirado das minhas irmãs, mais pequenos e menos ágeis. Sinto o macio as duas asas juntas entre os meus pequenos dedos indicador e polegar. É amarelo, o pó que me fica na ponta dos dedos.
Talvez nada exista sem estas subtis contradições. Talvez não haja alegria sem tristeza, nem coragem sem medo, nem esperança sem desespero. Talvez nada seja apenas simples como o à primeira vista possa parecer. Talvez nada seja apenas belo, como me pareceu o voo da borboleta amarela que vi junto ao pé de alecrim, na descida para a velha casa da minha infância.