segunda-feira, maio 23, 2011

Amigados


Na infância proibiram-me a palavra amigo. Uma palavra ondulante, bonita, que aprendera no livro da primeira classe, e que eu senti orgulho em usar pela primeira vez, quando anunciei que um amigo da escola ia lá a casa brincar connosco. Planeávamos fazer manteiga a partir do polén amarelo que saía da flor do pinheiro. Planeávamos procurar ninhos, planeávamos construir uma casa com ramos de acácia e muito mais.
A minha avó e a minha mãe disseram-nos que a palavra amigo não era uma palavra bonita. A pessoa que vinha brincar nessa tarde era, sim, um colega. A palavra colega não tinha problema nenhum e podíamos dizer as vezes que quiséssemos. Amigo, porém, era uma palavra proibida. Uma palavra má.
Matutei naquele episódio durante muito tempo sem chegar a qualquer conclusão. Apalavra era bonita, e ondulava quando se dizia, todas as palavras deviam ser assim, ondulantes. Então, porquê? Mas nesse tempo não se explicava nada às crianças. Era assim e acabou-se a conversa.
A memória desta proibição e a dor de ter sido privada de uma palavra tão bonita durante anos, tornou-se mais nítida quando, há poucos dias, ouvi uma conversa entre um casal de idosos. Conversavam e eu percebi que tentavam esclarecer quem era quem, não faço ideia a propósito de quê. Era uma daquelas conversas dos velhos - velhos também é uma palavra bonita - que, de repente, sentem necessidade de se localizarem num mapa. Lembram-se dos que já morreram, dos que enviuvaram, dos que embarcaram e voltaram, dos que nunca mais viram.
- Aquele que era amigado com a Filha de não sei quem, não sei de onde?
- Esse mesmo. Deixou a mulher e amigou-se com ela, quando arranjou aquele trabalhinho lá em cima.
Amigados. Eram amigados.
Lembro-me mais desta palavra, mas as pessoas também utilizavam amancebados como sinónimo de amigados. Os amigados eram aqueles que juntavam os trapinhos sem a bênção do casamento pela igreja. Eram casos tão raros que de imediato se tornavam no assunto do momento na freguesia inteira e até fora dela, e como pude comprovar, ainda hoje são óptimas formas de identificação de conhecidos e vizinhos de outros tempos.
Uma vez, ouvi numa conversa entre adultos: " O marido da Maria arranjou uma amiga para os lados do Funchal e agora nem sequer vem a casa." Foi talvez o primeiro caso do meu sítio. E presumo que seria ainda pior se fosse ao contrário: "A Maria arranjou um amigo".
Foi por isto que me roubaram uma palavra ondulante e bonita.
Mas. Aquilo que nos tiram, cresce sempre em nós com mais vigor. Hoje, a palavra amigo e a palavra amiga sãos dos maiores tesouros que carrego para todo o lado.

Comments:
Gostei, Lília!
:-)
 
Lilia, me trazes de volta aos 8 anos. Eu vivia no interior do estado de Sao Paulo e fomos visitar minha tia no norte do estado do Rio de Janeiro, bem perto do Espirito Santo. E o mesmo aconteceu. Eu me entusiasmei com a praia, com a criancada, pipoca e coca-cola. Voltando `a casa estava mesmerizado: "aquele "amigo", "aquela amiga", "a outra amiga", "cinco amigos"... A tia me chamou de lado e disse com sisudez: Nunca repita amigo nem amiga!!! Sao todos "colegas". Exatamente pelos mesmos motivos correntes na Ilha da Madeira...
Ricardo Grillo (chicago2paris@gmail.com)
 
História bonita sobre valores bonitos. E, uma vez mais, a Madeira com coisas em comum com o Brasil, como por vezes reparo. Aqui de onde sou nunca tal coisa se disse à criançada (talvez noutras regiões do país sim, não sei; ainda assim duvido muito). Mas acredito que deva ter outro sabor reconquistar a palavra, adoptá-la por nossa e usá-la "porque sim". Tal como a amizade, que o é "porque sim" e pronto! :-) Gostei mesmo do texto!
 
Postar um comentário

<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?

Web Pages referring to this page
Link to this page and get a link back!