sábado, março 05, 2011

Pensava que já tinha morrido!

Um grande sorriso iluminou-me o rosto quando, numa longa espera no centro de saúde, vejo quase a meu lado a senhora Maria José do Ti Germano. Ela sorriu também e trocámos palavras simples, porque as palavras complicadas são sempre dispensáveis.
Ela ficou espantada com o tamanho da minha menina e até disse que parecíamos irmãs e eu agradeci-lhe o elogio com outro sorriso.
Sentada numa cadeira do corredor, mesmo à entrada do gabinete para onde fazíamos fila, uma mulher olhava atentamente para a minha interlocutora. De repente, exclamou: - Não é a senhora Maria José de lá de cima, mãe do José, que trabalha nos carros do Caniço?
O senhora Maria José abanou a cabeça, exibindo outro dos seus simpáticos sorrisos.
- Sou sim senhora. Dele e de outros. Tenho mais filhos.
A mulher sentada, sem mais demora, continuou: - Ah, eu pensava que já tinha morrido. Ainda hoje quando fosse comprar o passe, tinha a ideia de perguntar ao seu filho se já tinha morrido.
A senhora Maria José não levou a mal e continuava sorrindo: - Quem já morreu foi o meu marido, já há mais de vinte anos.
E a outra, mesmo depois destas explicações, insistia: - Pois eu cá pensava que a senhora já tinha morrido!
Acho que a conversa ficou por aí. E mesmo que tenha continuado, eu já não ouvi mais nada porque chegou à minha vez.
Passei o resto do dia a pensar na naturalidade com que ali se falou da morte. Algo que só as pessoas sábias e antigas conseguem fazer. Antigamente, a morte era enfrentada de forma muito mais natural.
Lembro-me que os velórios dos bebés eram autênticas festas, onde as pessoas se divertiam durante toda a noite.
Lembro-me de a minha avó me ter levado pela mão, ainda bem pequena, a casa do Ti José Miranda, onde o homem estava deitado dentro do caixão, vestido com o seu melhor fato, meias negras com ar de novo, mas sem sapatos.
Lembro-me de ter sido levada pela mão a casa de uma amiga da minha avó, no Cabeço, onde ela tinha ido de visita com o bordado. A certa altura a mulher, idosa, abriu uma caixa de madeira e mostrou-lhe a roupa que tinha guardada para quando morresse. Mostrou a roupa cmo se mostrasse um tesouro. Era um longo vestido branco, como se fosse um vestido de noiva, porque essa senhora nunca tinha casado e merecia entrar no céu vestida de branco.
Tudo isto mostra como a morte era mais natural. Porque toda a gente acreditava em Deus e acreditava no céu.
Por isso é que as pessoas aceitavam a morte com serenidade, e preparavam-se para ela. É urgente voltar a acreditar para viver sem medo.

Comments:
'Optimo texto. Primeiro causou-me irritacao, depois aceitei com naturalidade. A naturalidade da morte... (Desculpe a falta de acentos, teclado ingles).
 
Excelente! É assim mesmo que deve ser, com menos tabus e com a morte enquanto facto vivencial inserida na cultura de todo um povo, como coisa natural e não um medo. Na terra da minha avó também íamos todos aos funerais... De outra forma não poderia ser, pois com quem iriam as mães e as avós deixar os filhos e netos numa altura em que as crianças não iam para creches? E tudo o que vi de morte em pequenina ficou gravado em mim com serenidade. Com a naturalidade própria que ora falta.

Beijinhos
 
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