terça-feira, agosto 19, 2008

À paposseco

-"Vai caminhar? Está todo à paposseco..." Dou comigo a usar a expressão antiga, enquanto o meu pai ajeita uma camisa verde, que deve ter vindo da Venezuela ou da Brasil, oferecida por alguém da família, e que lhe fica bem, ainda o faz parecer mais novo.
Que eu saiba a expressão só é utilizada em relação aos homens. Um homem "à paposseco" é um homem bem vestido, bem arranjado, de boa aparência.
O meu tio ouve a conversa e tenta lembrar-se de uma cantiga sobre o assunto, entoa o som, mas as palavras da cantiga estão algures a descansar na memória e a minha mãe também não se recorda no momento, atarefada à volta dos tachos do almoço e com mais em que pensar.
De onde terá nascido a expressão? O meu tio lembra-se de terem aparecido os primeiros papossecos, e de como eram coisa fina, em casa dos meus avós só se comia pão preto. Talvez tenha nascido daí a expressão paposseco para se referir a um homem bem apresentado. Ou teria sido ao contrário?

segunda-feira, agosto 18, 2008

história de uma aposta

Dois homens fizeram uma aposta: um apostou que conseguia enganar o outro, e esse que nunca se deixaria enganar pelo primeiro.
Um belo dia, o primeiro foi fazer um pagamento ao segundo e deu-lhe mais do que ele lhe pediu. Este aceitou.
O outro pegou então numa viola, subiu para cima de um pinheiro e começou a tocar e cantar o seguinte:

"Dizias que me esganavas
mas eu é que te esganei
pediste-me quatro patacas
cinco patacas te dei"

Nunca tinha ouvida esta história, que há dias veio a propósito a minha mãe contar. Tudo porque eu fui ao sapateiro buscar uns sapatos que lá tinha deixado para arranjar e ele teimou comigo que eu já tinha pago. Eu achava que não, mas ele insistia que sim, e dizia que tinha anotado no papelinho e, portanto, já estava pago. Insistiu até me deixar na dúvida e eu fui embora sem pagar, que remédio. Quando contei a cena, a minha mãe exclamou, rindo: "Isso quer dizer que foste enganada, como o outro da aposta". E pronto. Eis que, sem estar à espera, fiquei a saber mais esta pequena história mais antiga do que o norte.
É assim, de facto. Tudo pode ser olhado de várias perspectivas diferentes.

quarta-feira, agosto 13, 2008

A romagem do triguinho


Não cheguei a participar na romagem do triguinho, que antigamente se realizava no sábado da festa do Santíssimo Sacramento, no último fim-de-semana de Julho, no Caniço. Mas tenho esse ritual na memória, guardado através da experiência da minha mãe, que sempre nos contou esses acontecimentos do dia-a-dia do seu tempo como se fossem histórias de encantar.

Na romagem do triguinho participavam praticamente todas as crianças do sítio, cada qual levando um saquinho e trigo à cabeça, destinado às hóstias. Quando havia mais saquinhos do que crianças, eram metidos dentro de um cesto de pão, que era então levado na romagem por dois adultos, cada um segurando numa asa.

A Prima Lurdes, que deus lhe dê o Céu, trazia saquinhos da igreja, bancos e com uma cruz, e distribuía um por cada casal. Mas havia sempre mais crianças, os saquinhos não chegavam para todos e por isso a costureira, a Tia Justina Flor, juntava restos de tecido, e fazia saquinhos muito coloridos, que as crianças adoravam. Algumas levavam um saquinho à cabeça e outro debaixo do braço.

A abrir a romagem, à frente, ia um vilãozinho com um molhinho de murta, um com um barrilhinho de vinho, enfeitado com um cacho de uvas e uma folha de vinha e ainda outro com uma bandeira branca, onde estava bordado o cálice e a hóstia. A seguir vinha o grupo das viloas, com saias coloridas feitas para a ocasião, e depois as outras crianças.

Durante o percurso, desde o Chão das Eiras à Igreja do Caniço, cantavam-se diversas cantigas. O senhor padre aguardava as romagens à porta da igreja e era aí, à chegada, que se cantavam os seguintes versos. Depois, cada criança entregava o seu saquinho e recebia do senhor padre uma santinha: "Aquilo é que era uma alegria", recordam as crianças desse tempo, acalentando bonitas memórias da romagem do triguinho. "Ia-se e vinha-se a pé, para subir era muito cansativo, mas adorávamos ir na romagem do triguinho."


O trigo que nós trazemos
É oferta dos nossos pais
Se nós chegarmos ao ano
Voltamos a trazer mais

Foi semeado com fé
Regado com amor
O bom Deus abençoou
O suor do lavrador

As searas lourejantes
Onduladas pelo vento
Sentem-se muito honradas
De ao altar serem tornadas
No Santíssimo Sacramento

Viva o nosso senhor vigário
Alma de tanto valor
Deus lhe dê saúde e vida
Para servir ao Senhor

É dos sítios mais distantes
Desta nossa freguesia
Trazemos este triguinho
P'rá divina Eucaristia

O vilãozinho lembrou-se
De trazer alguns raminhos
P'ra onde Jesus passasse
Lhe enramar os caminhos

Vem-se reunidos
Cheios de fé e alegria
Com nossa oferta de trigo
P'rá divina Eucaristia

Ora viva viva
Ao nosso pastor
Que aqui nos espera
Com muito amor

Digam todos viva viva
A quem agora aqui chegou
Foi o nosso bom pastor
Nosso coração se alegrou

Digam todos viva viva
Mas digamos com amor
Quem aqui nos vem esperar
É o nosso tão bom pastor

Nós viemos com esperança
De p'ró ano cá voltar
Mas quem sabe se a morte
A vida nos vai tirar


Também viemos, ó bom Jesus
Fazer nossa despedida
P'ró ano cá voltaremos
Se nos der saúde e vida


Informações e versos recolhidos no Sítio da Ribeira dos Pretetes, a 1 de Março de 1986, junto de Justina Magna de Ornelas Fernandes, que em criança participou nas romagens do triguinho.


segunda-feira, agosto 11, 2008

A Festa da Poeira

Antigamente, tínhamos sempre um vestido novo e uns sapatos novos para a Festa de Nossa Senhora da Paz, padroeira da paróquia, seguida pela Festa do Senhor, na segunda-feira. Três dias seguidos de arraial, o único em todo o ano. Por isso demorávamos a decidir o modelo do vestido, mandado fazer na costureira normalmente com tecidos enviados de fora, pelos embarcados. No tempo dos vestidos e dos sapatos novos, o arraial fazia-se no meio dos pinheiros, atrás da casa que servia de igreja. O coreto da banda, o bazar, a barraca da carne, a barraca da bebida, o tabuleiro dos colares e suspeiros, a arca dos gelados, e tudo o mais que não pode faltar num arraial, distribuíam-se aqui e ali por entre os pinheiros. O chão era de terra e durante os três dias de arraial os vestidos novos e os sapatos novos adquiriam outra cor, variante da cor original coberta pela muita poeira que se ia levantando. Por brincadeira, começámos a chamar ao arraial "A Festa da Poeira".
Quase trinta anos depois do tempo em que eu e as minhas irmãs adolescentes éramos quase as únicas a bailar no meio da poeira ao som das músicas da banda, com os nossos vestidos novos e os nossos sapatos novos, a Festa já não tem poeira. A Igreja é nova e o adro e o largo e todos os lugares onde se faz o arraial e por onde se espalham o coreto, o bazar, as barracas e agora um palco para um conjunto, são em cimento.
No entanto, porque os nomes ficam e é a memória que vai construindo todas as histórias, o meu tio do Brasil, que gosta de vir de propósito na altura do arraial, perguntou-me se eu ia à "Festa da Poeira." Eu disse que sim e fui, embora chegando mais tarde devido ao trabalho. Não tem poeira, e eu não tive nem vestido novo nem sapatos novos. Mas aquela festa continua a ter o sabor do que nao muda, mesmo que tudo à volta pareça desabar.

domingo, agosto 10, 2008

Aniversário

O rabo do gato faz hoje 4 anos. Obrigada a todos os que têm partilhado este sonho.

sábado, agosto 09, 2008

Pegar de galho

Numa conversa entre várias pessoas, que não era nada comigo mas eu estava ao lado e acabei ouvindo mesmo sem querer, ouvi pelo menos três vezes a expressão "pegar de galho".
"- Se isto pegar de galho, vai ser bonito!" Falavam do assunto do momento, do assalto com reféns ao banco em Lisboa. - "Oxalá não pegue de galho!"
"Pegar de galho" é tornar-se habitual, vulgar. Há plantas que se reproduzem com dificuldade, precisam de muitos cuidados, de técnicas apuradas. Outras são exactamente ao contrário: basta meter um galho na terra para que criem raízes, cresçam a bom ritmo e até alastrem mais do que o desejável.
Normalmente são as plantas mais vulgares, as menos valiosas, que mais facilmente pegam. Assim é também em muitas coisas do mundo. As piores são as que pegam de galho. As melhores, as verdadeiamente grandiosas, demoram a cultivar, levam um interminável tempo a crescer, é preciso esperar muito pelos resultados.
A minha alma de jardineira ensinou-me que vale sempre a pena tentar e esperar, não importa quantas vezes as plantações sejam destruídas. Continuo a acreditar que, um dia, os melhores sentimentos também hão-de "pegar de galho".

sexta-feira, agosto 08, 2008

Um mamolhão

Com grande pena minha, a falta de tempo tem-me obrigado a estar um pouco mais afastada do blog. Escrevo com menos regularidade, mas não o abandono. Este projecto continua com o mesmo espirito, guiado pela simplicidade e pelo desejo de partilhar memórias.
Nos poucos minutos que agora tenho, aproveito para contar que fiz um mamolhão na cabeça. Dói um bocado, mas até acho piada. Aos anos que não tinha um mamolhão. Em criança eram tantos, não havia criança que não fizesse mamolhões de vez em quando, fruto das brincadeiras de outros tempos, em que ninguém se importava de cair e voltar a cair, e de esfolar os joelhos e de dar topadas. E de ficar com mamolhões de vez em quando.
Para quem não sabe, um mamolhão é uma espécie de alto, um pequeno inchaço provocado normalmente por uma pancada. O meu mamolhão no alto da cabeça foi provocado - podem rir-se à vontade, que rir é das melhores coisas da vida - pela porta do porta-bagagem do carro, que caiu sem aviso quando eu estava a tirar as compras.

quinta-feira, agosto 07, 2008

Jogo da correia quente

Neste Verão deliciosamente movimentado, com cinco crianças à volta para tentar entreter, lembrei-me do jogo da correia quente. Ensinei-lhes. Joguei também. E todos nos rimos, maiores e mais pequenos, nesse jogo de esconde e encontra, no terreiro dos meus pais de repente tornado pequeno e com recomendações para não estragar as flores. É muito simples o jogo:
Começa-se por escolher um objecto para esconder. Um dos jogadores é escolhido para ser o primeiro a esconder, com a garantia de que todos os outros estão bem longe da vista e sem possibilidade de espreitarem. Depois são todos chamados para procurar o objecto - a correia quente - e cabe à criança que o escondeu ir dando orientações sobre a proximidade ou distância da sua localização.
Quando uma das crianças está perto, diz-lhe que está quente. Se estiver muito distante diz que está frio ou gelado. Se estiver mais ou menos, diz que está morno. O jogo vai correndo assim até alguém encontrar o objecto e ficar com o direito de ser o próximo a escondê-lo. E foi assim, com um jogo de antigamente, que passámos uma tarde agradável. Só com um senão: o dito objectivo já foi necessário e nunca mais apareceu.

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