domingo, fevereiro 24, 2008

Renheta

A mulher ria-se, enquanto escolhia para o marido uma roupa interior. As empregadas da loja estavam divertidas, metiam-se com ela e também se riam.
" - Muito bem, uma senhora dessa idade e que ainda se lembra do Dia de São Valentim!" Quiseram saber se ele também lhe ia oferecer uma prenda e ela riu-se outra vez, enquanto finalmente se decidia por uns boxers: - "Ele é velho e renheta."
"- E mesmo assim a senhora compra-lhe um presente, imagine-se se ele não fosse renheta!" Novas gargalhadas encheram a loja e eu anotei de cabeça a intenção de registar o adjectivo "renheta". Renheta é um adjectivo construído a partir do verbo renhir, que segundo o dicionário da Porto Editora significa "combater com denodo, com fúria; altercar; porfiar."
Pensei com os meus botões que antigamente quase todos os maridos eram renhetas, e o pior era que essa característica geralmente se ia acentuando à medida que iam envelhecendo.
"- Ele é velho e renheta", tentei fixar a frase da velhota que aderira ao espírito consumista do famoso dia dos namorados, repetindo-a baixinho algumas vezes.
Olhei outra vez para a mulher e então percebi que ela estava contente, enquanto pagava na caixa os boxers de gosto duvidoso. Afinal, aquela frase estava cheia de carinho e de ternura, estava sim senhora. E o amor também é isso, aceitar as fragilidades do outro como quem estende a mão para aceitar uma flor.

terça-feira, fevereiro 12, 2008

Duas facas cruzadas

Duas facas cruzadas em cima da mesma mesa também não é bom.
Sempre ouvi dizer e é bem mais compreensível do que a superstição das duas luzes acesas. As facas encerram um simbolismo negativo bastante evidente.
O pior é que a violência anda por aí, em todos os cantos, mesmo sem facas cruzadas ao acaso sobre uma qualquer mesa de cozinha, por entre a azáfama de um qualquer cozinhado.

segunda-feira, fevereiro 11, 2008

Duas luzes em cima da mesma mesa

"Não é bom ter duas luzes acesas em cima da mesma mesa". Transmitiram-me esta velha máxima durante a infância, no tempo em que ainda não tínhamos luz eléctrica em casa.
Mal começava a aproximar-se a noite, era preciso confirmar se havia petróleo suficiente no velho candeeiro, com a sua barriga de vidro transparente com desenhos em relevo e o seu vidro também com barriga e pequeno rebordo em cima, em jeito de folho. Era preciso também confirmar se a torcida estava bem, às vezes era preciso aparar a parte de cima com uma tesoura.
Não sei bem como nem quando, mas a partir de certa altura passámos a ter em casa uma luz especial, um petromax, à volta da qual havia todos os inícios de noite um verdadeiro ritual. Era uma luz em metal, alta e elegante, com uma barriga de metal que também se alimentava a petróleo. Para funcionar precisava de uma espécie de pequeno saco de seda, fino e mágico, que devia estar muito bem colocado ao meio. Havia uma série de procedimentos que era preciso seguir cuidadosamente, era uma autêntica arte conseguir que os serões fossem tão luminosos. Nunca me esqueci do barulho que o petromax fazia, um barulho de fundo que acompanhou muitas cópias, ditados, contas, tabuadas e numeração romana, os deveres da minha escola primária.
Duas luzes em cima da mesma mesa não é coisa boa. Dizem que dá azar. Pois dá, ora se dá. Como compreendo a antiga e sábia expressão. Duas luzes acesas em cima da mesma mesa fazem mal, sobretudo à conta da electricidade. As luzes já não são de petróleo, mas o petróleo continua a mandar no mundo.

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