sábado, fevereiro 25, 2006

Uma chapa!

No mesmo corredor com macas e cadeiras e doentes e gente a passar e nomes a serem chamados e pessoas a entrarem e a sairem, no mesmo local, não me lembro se foi antes ou depois de a senhora de camisa com flores e rendinhas ter dito que o médico que acabara de passar não era de deitar água a pintos, anotei na memória outra conversa que pensei logo aqui registar.
Junto à parede do lado direito havia um homem também bastante idoso deitado numa maca. Acho que tinha sobre um pés um saco com a roupa que tinha trazido no corpo, da fisionomia pouco posso dizer uma vez que eu estava mais para trás, mal consegui ver-lhe a cara. Mas ouvi quando um médico jovem, com um sorriso bonito e paciente, veio falar com ele. Perguntou-lhe se ele vivia sozinho e ele disse que sim e acrescentou a quantidade de anos, que eram muitos, e o médico perguntou-lhe porque é que ele não arranjava outra mulher. Não percebi o que é que o senhor respondeu, mas depois riu-se de um riso já com poucos dentes e o médico também se riu com a sua boca cheia de dentes.
Continuaram nessa conversa descontraída, e ainda bem, pouco há que consiga alegrar um pouco o corredor das urgências de um Hospital. Até que chegou a altura de o médico perguntar ao senhor se ele já tinha feito a radiografia que havia sido requisitada. Primeiro acho que foi a palavra raio-x que me pareceu que ele ia dizer, depois a que saiu foi radiografia. Mas a palavra parecia nada ter a ver com aquilo tudo e o jovem médico apercebeu-se e emendou de imediato, da seguinte forma: "O senhor já fez a chapa?" É claro que ele percebeu logo e, sem a mínima hesitação, disse que sim, e a conversa acho que ficou por aí, com o médico a rematar com um pedido para que esperrasse então mais um bocadinho porque haveriam de chamá-lo sem grande demora.
Uma chapa! Eu também estava à espera para fazer uma chapa, como muitas outras pessoas. E dei outro pequeno sorriso que, junto com o pequeno sorriso gerado pela expressão deitar água a pintos, totalizou um meio sorriso. Ao tempo que não ouvia a palavra chapa! Mas era mesmo assim que se dizia antigamente. "O doutor já me mandou fazer uma chapa." "Já fiz duas chapas das costas!"
O mais engraçado é que desta vez, nas urgências do hospital, ninguém me devolveu um envelope pardo, grande, contendo as ditas chapas. Agora pode-se dizer que já não há chapas que se levantem um pouco à luz, para ver todos os nossos ossos. Agora basta clicar num botão do computador, esperar um pouco, se estiver lento um pouco mais, e pronto: no pequeno écran aparece o desenho de como nós estamos por dentro e dispensam-se as chapas de antigamente, assim é muito mais fácil.

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Deitar água a pintos

No meio de uma confusão de macas com doentes aguardando para serem vistos por algum médico de uma especialidade qualquer, ou aguardando para fazerem radiografias, ou análises, ou o resultado de umas ou de outras, e de outros em cadeiras de rodas também aguardando, mais outros nas cadeiras de plástico da sala e ainda alguns de pé junto às paredes por não haver mais espaço, sobressaiu a conversa de uma mulher e eu retive-a, provavelmente por me ter feito esboçar o primeiro e penso que único sorriso da tarde.
Era uma senhora muito idosa, cheia de inúmeras rugas, magrinha mas espevitada, apesar da doença. Deitada na maca, com a cabeceira um pouco levantada, exibia uma camisa de noite com florinhas e rendinhas à ponta das mangas e da gola, que imaginei de um dote de antigamente, e a abafar-lhe a parte de baixo estava um robe fofinho, com rosas cor-de-rosa. Estava atenta a tudo. E não lhe escapou um médico que passou apressado, abrindo caminho entre as macas: "Então, não se cumprimentam os vizinhos?" O doutor não teve remédio se não dar três passos atrás e cumprimentá-la de forma rápida, estendeu-lhe a mão e perguntou-lhe como estava, com um sorriso que no instante seguinte já tinha desaparecido ao fundo do corredor.
A senhora, encolhendo um pouco os ombros magríssimos, dirigindo-se aos inúmeros presentes, explicou: "É meu vizinho, mas é faz de conta que não é. Não fala com ninguém. É bom dia, boa tarde, mais nada. Não é de deitar água a pintos. " Nao foi preciso mais nenhuma explicação para que todos percebessem o significado de tão genuína expressão popular. "Não é de deitar água a pintos. Mas eu também não sou. Fica tudo pago!"
Esbocei um sorriso, leve e breve. Com os meus botões, que nada tinham a ver com as marquinhas perfeitas da camisa da noite de renda à ponta e com ar de ter sido feita por uma boa costureira, fiquei a pensar em como gostaria de ter, como a senhora à minha frente, este género de airosas saídas das situações.

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

Os dois mil e quinhentos da Maria da Tia Agostinha

Há muito, muito tempo, quando era ainda solteira, a minha mãe foi ao Hospital ver duas das minhas tias que tinham sido operadas, uma a um quisto, outra ao apêndice.
Porque não queria ir sozinha, convidou a Maria da Tia Agostinha para a acompanhar. A prima, alguns anos mais nova, ia radiante nessa ida à cidade. Afinal, ir à cidade era um acontecimento!
Por ser um dia importante e para o caso de necessitar, a Maria levou uma moeda de dois mil e quinhentos (25 centavos), dentro de um porta-moedas, imagino eu, pois esse pormenor da história escapou-me quando ma contaram.
Levava a moeda com muita estimação e alegria, mas deixou-a cair, não sei como, quando passavam no local conhecido por Cabôco das Eiras. Imagino a aflição que sentiu e as tentativas para encontrar a moeda por entre as ervas, as pedras e a terra da vereda, onde anos mais atrde, também passei muitas vezes.
Vejo-as debruçadas ou de cócoras, com os olhos muito fixos no chão, escurecido pelo tecto de pinheiros, cujos ramos mal deixavam passar a luz do sol. Mas vejo-as também preocupadas com a hora do horário que tinham de apanhar bastante mais abaixo, nas Figueirinhas. Tiveram de optar pelo horário e a viagem prosseguiu, apesar da inquietação visível no rosto e nos gestos da Maria da Tia Agostinha.
Conta a minha mãe que durante todo o percurso na cidade, a Maria aludiu vezes sem fim aos dois mil e quinhentos perdidos. Fazia-o sempre que via alguma coisa que lhe apetecia comprar. Como se estava no tempo das cerejas, sempre que passavam junto a um vendedor, com os frutos pequenos e vermelhos a atiçarem o apetite, dentro dos tradicionais cestos de vindima, a Maria exclamava, lamentando-se: "Se eu tivesse os meus dois mil e quinhentos...!" Teria dado para tanto, aquela simples moeda perdida.
Esta história aconteceu quase há cinquenta anos e ainda um dia destes foi recordada pela minha mãe, a propósito de uma qualquer situação do dia-a-dia. São sempre recordados os dois mil e quinhentos da Maria da Tia Agostinha quando alguém pensa fazer muito com pouco ou quando imagina as incontáveis coisas que poderia fazer se tivesse o que efectivamente já não tem. A mim, a história deixou-me com saudades de passar na vereda do Cabôco das Eiras. E deixou-me saudosa das antigas moedas de dois mil e quinhentos, de metal branco e com o desenho de uma caravela.

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Sonho americano: o porco e o chouriço

Estava a tratar de papeis numa câmara municipal, numa daquelas via-sacras que parecem não ter fim e dão cabo dos nervos de qualquer mortal. Preencheram-me uma guia de pagamento e mandaram-me pagá-la a outra secção. Quando perguntei pelo papel, a funcionária respondeu que não era preciso. Uma vez que tinha sido feito no computador, à funcionária da tesouraria bastava consultar a máquina para me cobrar a verba exacta. Ora, a primeira funcionária explicou tudo isto usando a seguinte imagem: "Isto aqui é como na América: mete-se o porco e já sai o chouriço."
Reconheci a expressão de outras ocasiões, situadas algures no tempo a que se convencionou chamar de passado, embora tantas vezes seja mais presente do que o próprio tempo que vivemos na hora. Ficámos frente a frente, como velhas conhecidas, mas um pouco embaraçadas pela longa ausência. Deu-me vontade de rir e fiquei até mais descontraída; foi com outro ar que me dirigi ao local onde devia sair "o chouriço".
Quando eu era criança em tamanho, ouvia falar da América como o local do progresso, o local onde as mais incríveis inovações aconteciam....uma espécie de paraíso do avanço tecnológico onde, por exemplo, se metia o porço num lado, e o chourico já saía no outro.
Saí da repartição sorrindo, distraída com a expressão que bailava à minha frente. Entretive-me sobretudo com dois pensamentos: um deles, a ironia da história do porco e do chouriço contada num local onde tanto se desespera por um simples papel, e depois por outro e mais outro ainda, entre requerimentos e pareceres e sei eu lá que mais. Outro, a contradição de um avanço com tantas décadas de fama, num país onde continuam a se registar interessantes casos de retrocessos civilizacionais. Um país que se sente dono do mundo, um país que financia guerras, um país que pratica a pena de morte.

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

A palheirinha agoirenta

No regresso da missa de domingo, fazíamos sempre uma pausa em casa da missa tia Ascensão e do meu tio Manuel. Sempre gostei daquela casa, em lugar muito soalheiro, e com a sombra das anoneiras criando desenhos ondulantes no terreiro.
Num desses domingos a seguir à missa passámos lá e travámos conhecimento com uma palheirinha que nos encantou porque nós tínhamos galinhas, galos e porcos, mas uma palheirinha nunca tínhamos tido.
A minha tia decidiu então oferecer a palheirinha à minha irmã mais nova e tratou de lhe amarrar as pernas e metê-la num saco, para a levarmos com jeito, na longa vereda que servia de acesso à nossa casa.
O caminho de regresso, depois dessa oferta, pareceu ter triplicado de tamanho, parecia que nunca mais acabava, tal era a ansiedade que sentíamos para mostrar à nossa mãe aquela rara prenda. Ainda vínham umas no canto do terreiro, já uma de nós corria a contar a novidade, mas a reacção da minha mãe em nada se parecia com a que esperávamos.
"Mas onde é que ela estava com o juízo para vos dar uma palheirinha? Eu não quero esse bicho aqui em casa, que vai ser só para atentar. As palheiras esgravatam tudo." Mas nós tanto gostávamos da palheirinha, em especial a minha irmã mais nova, a quem tinha sido dada especialmente, que a minha mãe acabou por ceder.
Ela tinha razão: a palheirinha esgravatava tudo. Os poios, o jardim, os caminhos de terra, acho que até os cântaros de flores. A minha mãe arreliava-se, mas nós continuávamos felizes com a palheirinha e sentíamos um desgosto quando passava algum tempo sem a vermos porque decidira alargar o território e esgravatava já no quintal da minha avó ou, ainda mais longe, no da minha tia Salomé.
A vida correu alegre até ao dia em que pareceu à minha mãe que a palheirinha tinha cantado como um galo. Eu digo pareceu porque nós nunca ouvimos, ou não quisémos ouvir, para a tentar salvar. A minha mãe e todos os outros adultos da família terão ouvido mais do que uma vez esse canto de galo, que significa mau agoiro quando emitido por uma franga ou palheira.
Apesar do nosso pranto colectivo e dos nossos apelos para que não se sacrificasse o bicho, a palheirinha foi morta, cozida e colocada na mesa para o almoço. Recordo estarmos as três irmãs mais tristes do que nunca, de lágrimas correndo pelas bochechas encarnadas, e de nos recusarmos a comer. Nunca entendemos o porquê daquela decisão drástica, que acabou de vez com os poios da verdura e os canteiros das flores esgravatados.
"A palheirinha canta como galo. É um mau agoiro." Essa sentença era para nós imcompreensível. parecia até dita numa língua estranha, pois não sabíamos o que significava a palavra agoiro, nem podíamos entender que aos adultos não importasse a tristeza dos mais pequenos, que não se deixassem comover pelos nossos apelos nem pelas nossas lágrimas.
Não tivesse sido agoirenta e a palheirinha que a minha tia Ascensão ofereceu à minha irmã mais nova, talvez tivesse ficado para sempre esquecida. O mais certo era não estar agora a falar dela.

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Os bisalhos e a lua

O tom era de desolação: "Só escaparam dois!" Escaparam dois bisalhos porque ela decidira intervir e ajudou a partir a casca do ovo, para os tirar cá para fora. Se assim não fosse, teriam azougado todos dentro do ovo. E tudo por culpa da lua. "Nã vê, c'a lua fraca cá é mesmo assim."
Eu meti-me na conversa, para tentar que ela continuasse. Estava a adorar ouvir falar nesses rituais que julgava completamente extintos.
"Mas o que é que a lua tem a ver com os bisalhos, afinal?" Três mulheres viraram-se para mim, um pouco incrédulas por eu não saber essas coisas tão óbvias da vida, e explicaram que a lua mexe com os animais todos. Os ovos tinham sido deitados no tempo certo e tudo correra bem, mas na altura de nascerem tiveram o azar da lua "estar fraca".
A primeira mulher continuou a lamentar a perda dos pobres bisalhos:"Estepilha, esta eu cá nã me esperava." E a segunda lembrou que a "lua fraca" também não presta para plantar: "Mê pai nunca plantava nada se a lua 'tivesse diminuindo. Isso cá então não. Ele preferia esperar, mesmo que depois ficasse com pouco tempo p'ra fazer tudo o que tinha a fazer." A terceira acrescentou que o tempo para os partos das vacas, bem como das mulheres, é contado pelas luas.
Eu quis dizer qualquer coisa para mostrar que também possuía ainda algum desses conhecimentos herdados do passado e lembrei-me de uma sentença que sempre ouvi: "Não se deve cortar o cabelo quando a lua está diminuindo. Corta-se quando ela está nova ou quarto crescente, para vir mais forte."
O grupo dispersou-se. Mas ainda ouvi, ao longe, a primeira senhora falar dos bisalhos que não tiveram força para se desvencilharem da casca do ovo porque a lua estava fraca. Pobrezinhos dos bisalhos. Ou teriam sido palheirinhos? Algures pelo meio da conversa, tenho a certeza de ter ouvido falar em palheirinhos.

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