sexta-feira, novembro 10, 2006

Endireição

É cada vez mais raro termos de enviar uma carta. E é cada vez mais raro recebermos uma carta mesmo, um envelope que não traga lá dentro uma conta para pagar.
Perante a necessidade, rara, de escrever uma carta, dei por mim com saudades do tempo em que o carteiro passava quase todos os dias na vereda, trazendo cartas de vários cantos do mundo, que se reconheciam logo pelos tracinhos de cores à volta do envelope e pela letra no lugar do destinatário.
Lembro-me tão bem desse tempo em que toda a vida parecia girar à volta de uma carta que chegava ou demorava, da alegria ou da tristeza que traziam as cartas, das conversas que alimentavam nos dias seguintes, ou semanas, dependendo do assunto em causa.
Revejo a minha mãe preocupada com uma carta atrasada, da Austrália ou da Venezuela, os dois destinos de emigração do meu pai, tentando disfarçar o desgosto, mas nós percebendo muito bem e sofrendo também.
Revejo a minha tia chegando ao canto do terreiro para, uma vez mais, perguntar à minha mãe se tinha a "endireição" de alguma das minhas tias ou tios, porque esta tinha mudado e ela não se lembrava do local onde, com muito cuidado, guardara o envelope mais recente. A endireição. Era assim mesmo que ouvia dizer e acho que ainda há pouco tempo voltei a ouvi dito assim, tal e qual.
Que engraçada este síntese de palavras! Julgo que "endireição" deverá ser uma mistura de duas palavras: endereço e direcção. Tem piada.
Ao recordar esta palavra, apertam ainda mais as saudades. Saudades da passagem do carteiro, cuja figura se ia desenhado ao longe à medida que crescia a angústia: traria carta ou não? Recordo o som da corneta, que retirava de dentro da bolsa de couro castanha, para avisar as pessoas de que deveriam vir até à vereda principal, ao encontro de uma carta.
As pessoas recebiam e mandavam cartas sem nunca terem ido a um correio. Aquelas que não sabiam ler pediam aos vizinhos para escreverem cartas e desvendarem os mistérios das que tinham acabado de chegar. Trocavam-se confidências e às vezes faziam-se bilhardices. Trocavam-se, solenemente, informações sobre "endireições" novas. A minha tia Salomé tentava soletrar Warrawong. Estávamos no canto do terreiro da casa dela e ela repetia que era mesmo assim, com dois Ms ao contrário.

Comments:
Que saudades... Apesar de na altura ser um miudo, um pequeno... Ainda me recordo das minhas tias estarem na Inglaterra enviarem cartas e com uma nota lá dentro... era uma felicidade...

Lembro-me de ver a minha mãe escrever uma carta para os irmãos na Venezuela e em Jersey... Enfim... Agora nem sentimos o papel... aquele tocar do papel... não sentimos o perfume que traz a carta... enfim... Saudades...
 
;)

O teu blog continua muito fixe =)

Aprendemos sempre coisas novas :)***
 
Muitas endireições e muitas cartas escreveram a minha avó e a minha mãe. Era um momento em que tínhamos de saír do quarto para não ouvir as novidades que seguiam.
 
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