segunda-feira, junho 26, 2006

Ir com o comer

"Quando se ia com o comer..." Muitas histórias começavam assim.
Em vez dos tradicionais "era uma vez ...." ou "há muito, muito tempo", na nossa família muitas histórias começavam com esta fórmula mágica.
O meu avô era lenhador, "fazia negócio de pinheiros". Saía de casa de madrugada, sempre para locais diferentes, e os filhos tinham de ir levar-lhe o comer.
A memória da minha mãe e dos meus tios está recheada de factos passados durante as idas com o comer. Começavam bem pequenos a cumprir essa tarefa, às vezes por volta dos cinco, seis anos. As raparigas, por norma, iam acompanhadas de irmãos mais novos ou vizinhos.
Iam sempre descalços, fizesse sol ou chuva. Mas preferiam o Inverno, quando patanhavam poças de água e lameiro todo o caminho, em vez de terem de fugir da poeira quente que lhes queimava os pés. "No Verão, dava-se uma carreira e parava-se de árvore em árvore, para descansar os pés na terra com sombra", recorda o meu tio José Manuel, num dos seus regressos à ilha. "Quando se dava uma topada, que levantava a cabeça do dedo, deitava-se terra para sarar."
Num exercício de memória, com a ajuda da irmã que não emigrou, recorda os locais onde iam com o comer: Quinta da Relva, Quinta do Matraca, Quinta da Carmelita, Pico do Infante, Pico da Silva, Chão da Marcela, Quinta da Miss Garton, Terra Chã, Casa do Estado, Caminho do Meio, Venda do Mestre Manuel e Vereda do Ti João Miranda, Balancal. O local mais distante de casa era a Quinta das Cermelitas: "Talvez se demorasse duas horas para lá e duas para cá."
No Verão, os homens almoçavam às 10 da manhã e no Inverno às 9. O jantar era às 3 da tarde no Verão e às 2 no Inverno.
Às vezes, quando os sítios eram muito distantes, o meu avô já levava o almoço e as minhas tias, ou a minha mãe, só tinham de ir com o jantar. Quando era mais perto, levavam almoço e jantar dentro da cesta. Pão para o almoço e uma sopa de massa ou milho para o jantar. Mas o meu avô preferia comer o comer ainda quente para o almoço e deixava o pão para o jantar, para comer com café que fazia no local, colocando um tacho num pau por cima de uma fogueira.
No regresso da ida com o comer, as crianças nunca vinham de mãos a abanar. Ele colocava-lhes sempre um molho de lenha à cabeça, porque a lenha fazia muita falta falta em casa: gastalhos de pinheiro, cascas, pinhas...
O meu tio José Manuel tinha um lugarzinho especial onde gostava de descansar o molho. A minha mãe tinha medo dos cães de uma quinta onde tinham de passar e também de um homem que gostava de passear a cavalo pela levada e fingia que atirava o cavalo aos miúdos. Todos têm histórias para contar. E eu gosto de ouvir as histórias das idas com o comer. Gosto, apesar da voz triste com que são contadas, devido aos sacrifícios que eram exigidos às crianças nesse tempo. Contem-me mais. Contem-me história de quando iam com o comer ao avolito.

Comments:
Olá, boas tardes! Nunca fui com o comer pois o meu pai vinha a casa almoçar todos os dias, mas foi uma expressão que me lembro perfeitamente de ouvir "amiúde". Há muito que não a ouvia!
 
Muitas vezes ajudei minha mãe a levar o comer aos "homes" que tavam da fazenda. Ela levava a "giga" á cabeça dentro da qual ia o alguidar de barro cheio de "sopa grossa" (couve, feijão, semilhas, inhame, carne de porco salgada e gorda, massa, batatas)e eu levava o garrafão forrado a vimes, cheio de vinho. Com o passar dos anos, já era eu, que ao lado dos "homes" a cavar não via a hora de chegar minha mãe com o comer.
 
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