quarta-feira, abril 26, 2006

Cramar

A mulher estava deitada numa maca, com aspecto de estar em grande sofrimento, mas calada. A senhora sentada ao meu lado, olhou-a e exclamou: "Coidada da rapariga. Vê-se que tem dores, mas não é de cramar. Coitadinha!"
Daí a momentos a mulher da maca não aguentou mais e começou a cramar. Era tal a cramação que pedimos ajuda para ela e um médico a veio buscar de imediato. Empurraram a maca para outra sala e não voltámos a ouvi-la cramar das pontadas no peito, que a não deixavam respirar.
A palavra cramar, sinónimo de queixar-se ou lamentar-se, é ainda de uso corrente. Há pessoas que têm razões para cramar e não cramam. Outras que cramam sem grandes razões para isso, pelo menos na perspectiva dos outros. O acto de cramar é determinado por inúmeras condições externas, alheias à vontade do indivíduo, mas também está relacionado com uma questão de feitio.
Algumas pessoas não cramam de nada para não darem o braço a torcer, por uma questão de orgulho. Outras cramam quase sem necessidade, mais por hábito do que por outra coisa, porque o ser humano é um ser de hábitos e habitua-se a tudo, até a isso.
Cramar é uma das situações mais comuns num país como o nosso, considerado dos mais pessimistas da europa, em que a maioria das pessoas até tem razões para cramar, desde os ordenados baixos, à burocracia que vai moendo e matando, sem esquecer os custos da educação, da saúde, de tudo.
Depois de a mulher da maca ter entrado para a sala de onde já não a vi sair, a mulher que chamou a atenção, primeiro para o seu silêncio e depois para a sua cramação, começou a descrever a doença do pai, falecido há mais de dezoito anos. Enquanto ela cramava, dirigindo-se a um senhor e a uma senhora muito idosos, eu não abri a boca. Fiquei no meu canto, e de mim todos os que ali estavam poderiam afirmar que não sou de cramar. Fiquei calada, a ouvir e a pensar.
Entre esses pensamentos, estava a consciência de que, afinal, sou uma grande cramadeira, muitas vezes com razão, outras talvez nem tanto, muitas sem necessidade. Prometi a mim mesma que ia tentar cramar menos e viver mais, aceitar as coisas como elas são e não questionar tanto, não desejar tanto, não sonhar tanto, e não desesperar tanto com a impossibilidade desses sonhos.
Daí a pouco, chegou a minha vez de ser atendida e depois disso vim embora com a certeza de que passaria a cramar menos. Poucas horas depois, perante uma determinada situação, desatei numa cramação capaz de irritar um morto. Talvez tenha o hábito de cramar na massa do sangue. E talvez esse defeito só piore com o correr do tempo. Mesmo assim, vou tentar cramar menos e viver mais, tentar limitar-me a amar o que tenho em vez de desejar o que não posso ter.

Comments:
Não, não venho cramar...
Quero apenas felecitá-la pelo blog.
Achei interessantíssimo, dei uma vista de olhos e fiquei cheia de vontade de ler todos os textos / histórias.
Vou andar por cá...
 
Então ama-me a mim,pois eu amo-te muito.
Beijo para ti,cramadeira
 
Ainda me lembro da frase: "Ele tá sempre cramando" ou, "Aquilo é uma crapideira", que significa o mesmo cramar=crapir.
Camacheiro
 
deviam era cremá-la
 
Wonderful and informative web site. I used information from that site its great. » »
 
Eu que estou de momento no estrangeiro, tambem cramo porque estou longe da minha terra e da minha familia e amigos....
 
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