quarta-feira, março 08, 2006

O comerinho

Há pouco, numa rua do Funchal, ouvi uma mulher estar dizendo a outra mulher, a propósito de uma terceira mulher, talvez familiar da primeira : "Ela faz o comerzinho...." Não ouvi o resto da frase porque vinha com pressa, e elas ficaram lá atrás, paradas no passeio, a falar dessa mulher que imagino idosa e doente, mas que que ainda consegue cozinhar.
Lembrei-me da palavra "comerinho". Antigamente dizia-se "o comerinho", como diminutivo de comer, não o verbo mas sim substantivo, embora o comer dessa altura fosse sempre pouco em quase todas as casas.
Dizia-se: "Vou fazer um comerinho para o jantar".
As mulheres diziam, sobre os maridos: "Ele dá o comerinho para casa, não é dos piores."
O homem trabalhava para o comerinho e era isso o que dava para casa. A mulher fazia o comerinho, ouvia o homem reclamar do comerinho, dava o comerinho aos filhos, por vezes não ficava comerinho para ela, mas não fazia mal, lavava as panelas onde tinha feito o comerinho, lavava os pratos onde tinha sido comido o comerinho, e depois ia apanhar couves para outro comerinho, e fazia muitas outras coisas, entre elas engomar com um ferro de brasas e lavar num poço onde era preciso ficar de joelhos, e espalhar roupa e esfregar o chão e muitas vezes apanhar nas ventas.
Às vezes não apanhavam porrada fisicamente, mas outra mais violenta, a porrada psicológica, ou outra ainda pior, apanhavam com indiferença. Mas ficavam ali, até a que a morte as levasse, cuidando do marido e lavando-lhe a roupa e fazendo-lhe o comer. As mulheres não se separavam porque não tinham forma de ganharem, sozinhas, para o comerinho.
Esta é uma das coisas de antigamente de que já não nos devíamos lembrar.
Felizes de todas nós, mulheres que não precisamos de ser escravas em troca do "comerinho" para a boca dos filhos.

Comments:
Gostei Lília da tua conclusão! Pensar no que muitas mulheres passaram por situações como tão bem as descreveste é revoltante!

Apesar de hoje em dia grande parte das mulheres já não precisar de «ser escravas em troca do "comerinho" para a boca dos filhos», penso ainda há muitas que se sujeitam a determinados comportamentos do marido, não só por causa do "comerinho", mas também pela casinha.. Infelizmente ainda é assim..
 
Tinha quase prometido aqui voltar e por isso aqui, me-eis (me-eis ! havemos de voltar a isto). O "comerinho" piis então, o "pão p'ra boca" e não só... porque isto do "comerinho" tem muito que se lhe diga a começar é que não se escreve no passado e muito menos num passado intangível do "acontecia às outras". Não! Acontece no presente, aqui e agora. E não reduzamos a expressão dum "comerinho" p'ra barriga que nos traz a todos sustentados mas antes num "comerinho" que se analisa em múltiplas vertentes tão mais inoportunas quanto mais subimos (melhor diria descemos) na escala social. Passo a explicar, a do colégio, da loja X, da sapataria Y e bem... não querendo parecer superficial muito haveria que contar sobre o nosso "comerinho". Deixo uma nota final: então e o "comerinho p´ró espírito? Aquele que traz amordaçadas tantas almas belas! Eu juro este tema está anos-luz de se esgotar. Porém quando se aproxima o final do mês, mesmo p'ra uma emancipada (ainda não totalmente mas em esperança) que dimensão toma esta tua expressão de "comerinho" e a ela tudo se reduz, afinal!
 
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