sexta-feira, fevereiro 10, 2006

A palheirinha agoirenta

No regresso da missa de domingo, fazíamos sempre uma pausa em casa da missa tia Ascensão e do meu tio Manuel. Sempre gostei daquela casa, em lugar muito soalheiro, e com a sombra das anoneiras criando desenhos ondulantes no terreiro.
Num desses domingos a seguir à missa passámos lá e travámos conhecimento com uma palheirinha que nos encantou porque nós tínhamos galinhas, galos e porcos, mas uma palheirinha nunca tínhamos tido.
A minha tia decidiu então oferecer a palheirinha à minha irmã mais nova e tratou de lhe amarrar as pernas e metê-la num saco, para a levarmos com jeito, na longa vereda que servia de acesso à nossa casa.
O caminho de regresso, depois dessa oferta, pareceu ter triplicado de tamanho, parecia que nunca mais acabava, tal era a ansiedade que sentíamos para mostrar à nossa mãe aquela rara prenda. Ainda vínham umas no canto do terreiro, já uma de nós corria a contar a novidade, mas a reacção da minha mãe em nada se parecia com a que esperávamos.
"Mas onde é que ela estava com o juízo para vos dar uma palheirinha? Eu não quero esse bicho aqui em casa, que vai ser só para atentar. As palheiras esgravatam tudo." Mas nós tanto gostávamos da palheirinha, em especial a minha irmã mais nova, a quem tinha sido dada especialmente, que a minha mãe acabou por ceder.
Ela tinha razão: a palheirinha esgravatava tudo. Os poios, o jardim, os caminhos de terra, acho que até os cântaros de flores. A minha mãe arreliava-se, mas nós continuávamos felizes com a palheirinha e sentíamos um desgosto quando passava algum tempo sem a vermos porque decidira alargar o território e esgravatava já no quintal da minha avó ou, ainda mais longe, no da minha tia Salomé.
A vida correu alegre até ao dia em que pareceu à minha mãe que a palheirinha tinha cantado como um galo. Eu digo pareceu porque nós nunca ouvimos, ou não quisémos ouvir, para a tentar salvar. A minha mãe e todos os outros adultos da família terão ouvido mais do que uma vez esse canto de galo, que significa mau agoiro quando emitido por uma franga ou palheira.
Apesar do nosso pranto colectivo e dos nossos apelos para que não se sacrificasse o bicho, a palheirinha foi morta, cozida e colocada na mesa para o almoço. Recordo estarmos as três irmãs mais tristes do que nunca, de lágrimas correndo pelas bochechas encarnadas, e de nos recusarmos a comer. Nunca entendemos o porquê daquela decisão drástica, que acabou de vez com os poios da verdura e os canteiros das flores esgravatados.
"A palheirinha canta como galo. É um mau agoiro." Essa sentença era para nós imcompreensível. parecia até dita numa língua estranha, pois não sabíamos o que significava a palavra agoiro, nem podíamos entender que aos adultos não importasse a tristeza dos mais pequenos, que não se deixassem comover pelos nossos apelos nem pelas nossas lágrimas.
Não tivesse sido agoirenta e a palheirinha que a minha tia Ascensão ofereceu à minha irmã mais nova, talvez tivesse ficado para sempre esquecida. O mais certo era não estar agora a falar dela.

Comments:
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Gostei desta história, mas o que é uma palheirinha?
 
Também eu tive uma palheirinha que com o mesmo "defeito", teve o mesmo destino. Jurei (apesar de pouco haver para comer), que nunca iria comer a minha palheirinha, e a partir desse dia nunca mais comi canja. Só o cheiro me agonia.
 
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