quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Deitar água a pintos

No meio de uma confusão de macas com doentes aguardando para serem vistos por algum médico de uma especialidade qualquer, ou aguardando para fazerem radiografias, ou análises, ou o resultado de umas ou de outras, e de outros em cadeiras de rodas também aguardando, mais outros nas cadeiras de plástico da sala e ainda alguns de pé junto às paredes por não haver mais espaço, sobressaiu a conversa de uma mulher e eu retive-a, provavelmente por me ter feito esboçar o primeiro e penso que único sorriso da tarde.
Era uma senhora muito idosa, cheia de inúmeras rugas, magrinha mas espevitada, apesar da doença. Deitada na maca, com a cabeceira um pouco levantada, exibia uma camisa de noite com florinhas e rendinhas à ponta das mangas e da gola, que imaginei de um dote de antigamente, e a abafar-lhe a parte de baixo estava um robe fofinho, com rosas cor-de-rosa. Estava atenta a tudo. E não lhe escapou um médico que passou apressado, abrindo caminho entre as macas: "Então, não se cumprimentam os vizinhos?" O doutor não teve remédio se não dar três passos atrás e cumprimentá-la de forma rápida, estendeu-lhe a mão e perguntou-lhe como estava, com um sorriso que no instante seguinte já tinha desaparecido ao fundo do corredor.
A senhora, encolhendo um pouco os ombros magríssimos, dirigindo-se aos inúmeros presentes, explicou: "É meu vizinho, mas é faz de conta que não é. Não fala com ninguém. É bom dia, boa tarde, mais nada. Não é de deitar água a pintos. " Nao foi preciso mais nenhuma explicação para que todos percebessem o significado de tão genuína expressão popular. "Não é de deitar água a pintos. Mas eu também não sou. Fica tudo pago!"
Esbocei um sorriso, leve e breve. Com os meus botões, que nada tinham a ver com as marquinhas perfeitas da camisa da noite de renda à ponta e com ar de ter sido feita por uma boa costureira, fiquei a pensar em como gostaria de ter, como a senhora à minha frente, este género de airosas saídas das situações.

Comments:
Tenho estado à sua espera. Tem-me feito falta. Tenho muitas coisas para lhe dizer, na altura certa, quando me sentir preparada e não seguramente por "não ser de deitar água a pintos".
 
Há muito tempo não ouvia essa expressão(lia neste caso),mas confessa lá,tu também não és de deitar água a pintos ;)
 
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