quarta-feira, outubro 26, 2005

A Tia do Pão

Antigamente toda a gente tinha uma alcunha e era bem mais fácil reconhecer as pessoas pelas alcunhas do que pelos seus verdadeiros nomes. Na minha terra chamava-se apelido à alcunha: "Puseram-lhe o apelido e nunca mais ninguém o tirou." O apelido, que depois comecei a ver escrito sobretudo em impressos para preencher era afinal o que eu chamava de sobrenome, e o que eu sempre considerara apelidos eram na realidade alcunhas.
Todas as alcunhas têm uma razão de ser: uma característica própria da pessoa, física ou emocional, um hábito, bom ou mau, uma qualquer história em que esteve envolvida, alguma reacção tida perante um determinado acontecimento, ou coisas mais exteriores, como o local de residência, pormenores relacionados com a profissão, e não sei mais que razões, uma infinidade delas.
Há alguns anos fiz uma recolha muita engraçada das alcunhas do meu sítio e das respectivas explicações. Com o tempo talvez venha a referir-me a algumas delas neste blog. Mas hoje quero falar de uma alcunha que surgiu graças a mim. Quando era criança, baptizei uma tia da minha mãe e ela nunca mais se livrou desse nome até ao dia em que morreu, Deus lhe dê o Céu.
Acho que o verdadeiro nome dela era Maria Cardoso, não tenho a certeza, pois sempre a conheci com a Tia Maria do Pão. Eu, a minha família e as outras pessoas do sítio e até de outros sítios, acho que na Camacha também sabiam quem era a Tia Maria do Pão.
Ela não era padeira nem nada que se parecesse. A única coisa que a ligava ao pão, para além de o consumir no dia-a-dia, como toda a gente, era o facto de, numa determinada altura, ter ficado combinado de o padeiro deixar em casa dela o nosso pão. Dava-lhe mais jeito e a nós não nos custava nada subir cinco minutos a pé, até lá, para ir buscar o pão. Isto foi quando ainda éramos demasiado pequenas para ir todos os dias buscar o pão à venda do Bilho, que ficava no Pinheirinho, ao lado da nossa escola primária.
Um certo dia, era eu bem pequena, quis referir-me a ela, mas não encontrei forma de a diferenciar das outras tias a não ser esse pormenor do nosso pão ficar em casa dela. "Qual tia?" "A Tia do Pão." Lembro-me que toda a gente se riu e achou imensa piada à forma rápida como solucionei aquele problema de identificação. Quando dei por mim todos se referiam a ela como Tia Maria do Pão.
Sempre gostei de ir a casa dela, que mais tarde e durante muitos anos, foi o local mais perto da nossa casa onde existia um telefone. Gostava de apreciar os móveis diferentes, um cão que abanava a cabeça e que ela tinha no quarto-fe fora em cima de um tripé, o telefone, a cozinha de madeira, com um fogão a lenha, o quarto de trabalho, onde fazia obra de vimes, e o jardim onde cresciam, nas respectivos épocas, rainúnculos, açucenas brancas, laços de rainha, gladíolos e diferentes variedades de saudades ou crisântemos.
Nas imensas voltas e reviravoltas que a vida dá, vim a morar na casa da Tia Maria do Pão, a quem tinha dado a alcunha em criança. Foram felizes esses anos em que vivi numa casa. Como é mágico viver numa casa de pedra, com um forno na cozinha e umas escadas para o sotão, com o quarto do poco, com o balcãozinho por cima da sala, com o poço de regar atrás da casa, com os seus inúmeros cantos e recantos do Jardim, sempre com ervas a crescer por todo o lado, sempre com folhas a voarem e a cairem no terreiro, sempre com plantas a precisarem de cuidados.
Que saudades tenho desses anos em que vivi na casa da Tia do Pão. Que saudades da velha casa de pedra, apesar de ser tão velha, de ter a tinta toda desbotada, de ter alguns buracos no soalho, e de ter tanta humidade que durante a noite a roupa parecia tornar-se molhada. Tenho saudades do barulho da água que corria sempre na pequena levada ao lado da casa, do barulho do vento nos pinheiros ao lado, e dos passarinhos que cantavam por entre a folhagem do enorme loureiro, que ficava em frente da porta da cozinha. Tenho saudades dos junquilhos que cresciam nos bardos, tenho saudades das marilhas e dos mimos e das açucenas que plantei, dos meus cãntaros de azáleas, dos cântaros das orquídeas, das inúmeras plantas que plantava de galho e pegavam sempre.

segunda-feira, outubro 24, 2005

O Lavrador da Arada


O Lavrador da Arada
encontrou um pobrezinho
o pobrezinho lhe disse
leva-me no teu carrinho
deu a mão o lavrador
no seu carrinho o metia
levou-o p'ra sua casa
p'ra melhor sala que tinha
manou-lhe fazer a ceia
do melhor manjar que havia
sentou-o na sua mesa
mas o pobre não comia
Mandou-lhe fazer a cama
da melhor seda que havia
por cima damasco roxo
por baixo cambraia fina
daquela noite em diante
o pobrezinho gemia
levantou-se o lavrador
a ver o que o pobre tinha
achou-o crucificado
numa cruz de prata fina
Meu Deus se eu soubera
o que a minha casa hoje tinha
mandara fazer preparos
do melhor que encontraria
- Cala-te ai lavrador
não fales com fantasia
no céu te tenho guardado
a cadeira de prata fina
tua mulher a teu lado
que também a merecia


Esta história foi-me relatada pela minha mãe no dia 28-10-1993. Era um dos textos do livro da terceira classe do meu tio João, o irmão mais novo da minha mãe. Ele frequentou a terceira classe em 1952, tinha a minha mãe doze anos. Registei-o sem potuação porque nunca vi o texto escrito, nem sei sequer se ele tinha esta forma ou não, fui formando os versos ao ritmo da declamação da minha mãe.
A minha mãe adorava a história do lavradaor da arada e decorou-a até hoje. Tem piada as coisas que escolhemos para guardar nos quartos ilumiados da memória, enquanto outras, à partida parecendo bem mais importantes, permanecem para sempre em quartos escuros e escondidos.

Cruz de pau, cruz de ferro...

Lembro-me de uma época, algures na infância, em que fazíamos juramentos por tudo e por nada. Vejo três meninas com vestidos de chita, correndo de cabelos ao vento, brincando entre poios e pinhais, ou então mais quietas, segurando com gestos solenes brinquedos invisíveis. Subitamente, a propósito de uma qualquer afirmação ou promessa, uma delas vira-se para outra e ordena: "Jura".A resposta era uma espécie de pequena lengalenga e talvez por isso gostássemos tanto de a repetir: "Cruz de pau, cruz de ferro, se eu mentir vou para o inferno."Jurávamos com uma rima e ficava jurado. Não púnhamos sequer a hipótese de não cumprir o juramento.Mas nesse tempo mentir era a excepção e não a regra. Quem mentia ia para o inferno e o inferno era um lugar para onde as pessoas não queriam ir.Quem mentia, mais tarde ou mais cedo era apanhado e ficava logo com uma fama que mais ninguém lhe conseguia tirar. Eram apontados os mentirosos porque ainda eram menos do que os outros.Nesse tempo longínquo mentir era o desvio à norma e não o contrário. Mentir é que era feio. Quem mentia caia-lhe os dentes. Quem mentia tinha de confessar ao senhor padre no dia da confissão, que vergonha! "Quem mente uma vez, fica por mentiroso toda a vida", dizia a minha mãe, ensinando as três meninas a nunca mentirem. "Mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo", dizia a minha mãe, ensinando às três meninas um dos valores mais importantes para uma vida honrada e conforme aos ensinamentos de Deus.Assim ouvimos, assim aprendemos, assim cumprimos: "Cruz de pau, cruz de ferro, se eu mentir vou p'ró inferno."As meninas cresceram e a fase dos juramentos a torto e a direito passou, como qualquer outra fase. Há que tempo não digo a pequena lengalenga com rima! Mas não foram em vão os ensinamentos da minha mãe. Não repito a lengalenga mas respeito o princípio tal como nesse tempo. Não me adaptei aos tempos em que a mentira é a regra e não a excepção. E quem não se adapta, seja ao que for, sofre sempre.Nunca mais ouvi os ditados que a minha mãe repetia, na sua tarefa de educadora, como o do mentiroso apanhado mais depressa do que o coxo e do mentiro que assim ficava sendo todaa a vida. O ditado mais conhecido agora é "Quem mais jura mais mente." Mas até este vai ficando ultrapassando porque já ninguém jura mas quase toda a gente mente. Já ninguém vai para o inferno por mentir. O inferno é nesta vida e para os que insistem em não se adaptar às novas regras.

segunda-feira, outubro 17, 2005

O resmate, a hérnia descala, e as dores nas cadeiras e nas arcas

"Isto parece uma dor de resmate, passa de um lado para o outro." Ainda ontem ouvi esta expressão e ri-me para dentro, baixinho. Ri-me comigo mesma de contentamento por saber ainda em uso esta forma particular de os madeirenses se referirem ao reumatismo. "Eu também sinto algumas dores mas penso que não é resmate." E assim fiquei mais contente um bocadinho por ajudar a manter viva uma palavra que sempre ouvi da boca das pessoas mais idosas.
Eu penso que não tenho "resmate", mas hoje estou com uma dor nas "cadeiras". A minha avó, coitada, passava a vida a dizer que tinha uma dor nas "cadeiras". Lembro-me de vê-la de joelhos, no poço, a lavar roupa. Terminada a tarefa tinha dificuldade em se endireitar enquanto se lavantava. Punha as mãos na altura dos rins e dizia: "Ah Jesus, dói-me as cadeiras." É essa a dor que hoje sinto, mesmo sem ter de lavar roupa ajoelhada no chão, inclinada para o poço de cimento. A dor nas "arcas" é diferente. É mais para cima, segundo dizem.
Entre estas estranhas formas de identificar dores e partes do corpo, lembro-me também da "dor no espinhaço", que é a forma de dizer uma dor no peito. E da palavra "aduela" como sinónimo de costelas.
Uma das doenças que mais me intrigava em criança era a "hérnia descala". Nunca percebi o que era isso. Ouvia os adultos dizerem: "Coitada, ela tem uma hérnia descala" e nunca entendi. Até que, já adulta e depois de muitas radiografias feitas à "espinha", percebi. E foi então que me apercebi da adaptação feita do adjectivo ao feminino da palavra hérnia, acrescentando um "a" no final. É também normal que o "i" da palavra discal me soasse "e". Não é o único "i" que nós, madeirenses, transformamos num "e". As palavras ficam um pouco estranhas, lá isso é verdade. Mas são nossas e eu gosto delas assim.

sexta-feira, outubro 07, 2005

O passo antes da passada


"Não dês o passo antes de chegar à passada". Aprendi com a minha mãe este antigo ensinamento. Perdi a conta das vezes em que, com a sua voz doce, me aconselhou assim: "Não dês o passo antes de chegar à passada." Com este simples refrão popular aprendi que tudo tem o seu tempo. Tudo deve ser feito na hora certa, nem antes nem depois. Não deve, especialmente, ser antes. Depois ainda pode ter remédio, antes é mais difícil de remediar.
"Não dês o passo antes de chegar à passada." Como parece fácil! Parece tão simples seguir o velho ditado. Demasiado óbvio, até, para merecer sequer considerações. Mas nem sempre é assim. Porque as passadas da vida não são tão claras como as passadas da infância, as passadas de cimento que ligavam a minha casa à casa dos meus avós e a casa dos meus avós à casa dos meus tios e ainda à casa da Prima Ali ou à da senhora Conceição e do senhor José Duarte.
As passadas da vida, quando as olhamos, parecem uma vezes mais perto, outras vezes mais distantes, e tantas vezes não conseguimos distingui-las bem, parecem desfazer-se à frente dos nossos olhos, parecem desfazer-se por magia debaixo dos nossos pés. Quem pode gabar-se de nunca ter dado um passo em falso?
Quem me dera ter a sabedoria necessária para nunca "dar passos antes de chegar à passada"! Mas sei que não a tenho e se calhar até é melhor assim. Se calhar não devia pensar mais nisso, se calhar não devia lamentar-me. Porque arriscar faz parte da vida e até um passo mal dado pode ser uma preciosa lição.

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