segunda-feira, novembro 07, 2005

A mulher do bucho encostado

Vamos a casa da mulher do bucho encostado. O meu pai ainda não embarcou e leva-me a cavalo. De lá de cima, com as mãos apoiadas na cabeça dele, e ele a segurar-me as pernas, é tão diferente a perspectiva das coisas.
É longa a vereda; cruza pinhais, uma levada, poios, uma ribeira com agriões e conchinhas. Que linda, a paisagem vista daqui! Para sul há retalhos de mar. O que é o mar, mãe?
Quase me passam as dores de barriga, de tanta alegria. Esqueço as dores e canto a cantiga que me ensinaram: "Oh Maria calças as botas/que vem ali um brinquinho/de machetes e violas/castanholas de cabinho". Sorriem.
Chegamos. O meu pai põe-me no chão, enquanto a minha mãe apupa no canto do terreiro. A mulher espreita à porta da cozinha. É muito velha, curvada, toda vestida de preto. À primeira vista mete medo, a mulher do bucho encostado. Deve ter nome mas nunca o soube. Ficou assim baptizada e mais não era preciso.
"Entre, traga a menina pr' aqui" - dizia, limpando as mãos na saia comprida. O quarto é pequeno e escuro; tem um cheio estranho. Que me vai acontecer, mãe? Tu sorris, não há-de ser nada.
A velhinha sobe-me o vestido para cima, apalpa-me a barriga com cuidado, abana a cabeça. Depois pega em qualquer coisa, que estava pousada em cima da cómoda. Com esse objecto na mão, começa a dar-me massagens na barriga, com força e num determinado sentido, até pôr o bucho no seu lugar. A gordura que fica na barriga cheira mal, é escorregadia.
E agora, mãe? Continuas com o teu ar sossegado, não há-de acontecer nada de mal. Chegou a vez da atadura. A mulher pega num pano branco e enrola-o à volta da minha barriga, tão apertado que parece que não vou poder respirar. Prende-o com um alfinete.
Já está. Se mantiver a atadura durante uma semana e não pular, passar-me-ão as dores de barriga. Quem me dera que fosse tudo assim, tão simples. Quem me dera que qualquer dor passasse com uma ida à mulher do bucho encostado.
Lembro-me de lá voltar com as minhas irmãs, já com o pai emigrado. Íamos as três à frente da minha mãe, em fila indiana, porque a vereda é bastante estreita. Usávamos aquela atadura apertada até ela ficar quase castanha, de tanto brincarmos na terra. O certo é que as dores de barriga passavam.
A mulher do bucho encostado devia existir para sempre. Morreu há muitos anos, eu sei. Imagino-a no céu, a dar massagens na barriga dos anjos e a pôr-lhes ataduras, recomendando-lhes que não pulem tanto em cima das nuvens para o bucho não voltar a virar-se.

Comments:
Ainda me lembro de ir curar o bucho,com a sra.Horácia...dava-me sempre qualquer coisa quando lá ia,porque eu fazia o maior dos dramas para deixá-la tocar na minha barriga...

tenho de admitir que tens uma imaginação muito fértil,mas acho que os anjos não devem virar o bucho :)
 
Também virei o bucho muito antes da Lilia! Quem mo endireitava era a «Estrelinha», uma especialista dos lados do Castelo, que era cliente da mercearia da minha mãe e que lá me deitava num banco, vestido para cima e azeite no sítio. Acabada a massagem, era aquecida uma folha de couve na chaminé do candeeiro a petróleo, aceso para o efeito. A folha era posta na barriga e atada.Assim ficava, mas não muito tempo, que a couve arrefecia e secava (bom sinal estava a puxar a febre para fora) e incomodava.
Essa Estrelinha era mãe do Lhilha o tal por causa dequem nâo me chamei Lilia.
Não sei se havia lombrigas pelas Eiras. Cá mais para baixo, eram de arrepiar os tratamentos, como o de se lhes cortar as cabeças, antes de chegarem à fase adulta! Enfim....
Sim senhora a minha mãe também sabe do «Bertoldo»,, disse-me ela ontem mas só me contava como João Pateta.
Boa noite da Idalina
 
Felizmente não tínhamos de andar muito (eu e os primos). Lá em casa quem fazia isso era a saudosa avó Maria. Quando o "bucho estava virado" lá vinha a avó Maria, estendia-nos em cima da cama e toca a massajar, regra geral com óleo Fula (sim, é sério porque as posses nessa altura não chegavam para o óleo de bébé). Depois, após um ou dois dias já estávamos prontos para andar novamente aos pulos.
E curar de olhado? Certamente a D. Lília também tem alguma história.
Um grande bem haja por este reavivar de memórias.

Henrique Freitas
 
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